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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM DOM MUITO PURO…

 

Alteza Altíssima:

 

Estou novamente em Paris, conto desta vez com a companhia do Alberto, que veio a negócios. Gosto dele, da sua grande alegria de viver, como dessa melancolia tão portuguesa que sempre me lembra o cair da tarde em dias sem vento, no fim do Verão. Falei-lhe de ti, de como me habitas o coração, com a insistência que tão bem diz esse verso do Rilke: "Wie soll Ich meine Seele halten dass Sie nicht an deine rührt?"E ele logo veio com um sentimento português: "Saudade...sabes o que é a saudade? Escuta:" Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe...  ...Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha." Assim escreveu Bernardim Ribeiro, no século XVI. Já no século XIII, reza uma crónica que um frade dominicano, de regresso ao seu convento no alto de Montejunto, se lembrou da água pura que ali o saciara e "sentiu grande soledade daquela água"... É isso a saudade: é estar sozinho de alguém, e a solidão só se sente quando uma presença não nos larga." Sejamos ambos portugueses, pelo tempo deste segredo que te digo: sinto grande saudade de ti, porque me habitas. Pensossinto-te fora do tempo, do lugar e da memória. És. Assim descubro que te amo essencialmente. Não te pensossinto em função da beleza, da idade, do teu modo de ser ou da tua história. Mas tão só pela ternura que me descobriste imensa e me inunda. Para mim és, todos os dias, o amor que desperta, a alegria intensa e inesperada da revelação. "É no invisível que se produz o essencial", disse Jacques Maritain sobre a sua relação com Raïssa, mulher da sua vida, mesmo depois de morta, com quem se casou aos vinte anos e se converteu ao catolicismo. Com quem viveu sempre uma intimidade em que se confundiam, mesmo   - ainda ou talvez mais  -  depois de se terem feito voto de castidade. Penso muitas vezes neles, quando me lembro de nós e deste amor a que a renúncia dá uma dimensão intangível. Mas tenho pensado nos Maritain, também pela necessidade que senti de algum regresso a S.Tomás de Aquino. Quem os acompanhou na escalada espiritual e intelectual da conversão foi um dominicano, francês e monárquico, o padre Clérissac, que mereceu de Raïssa esta referência tão sentida e tão bonita: "Caiu sobre nós, e recebemo-lo  -  o Jacques e eu  -  o olhar estrelado e penetrante de dois olhos profundos, cheios de segredo e de conhecimento, e diante desses olhos nos sentimos totalmente novos e totalmente ignorantes". Todos os dias peço a Deus que refaça em mim essa alegria de me sentir novo por me saber ignorante e querer aprender. Seguindo o conselho do padre Clérissac quando sugeriu a Summa Theologica para aproximação racional dos Maritain à fé que procuravam: "Não andemos mais depressa do que Deus. É da nossa sede e do nosso vazio que Ele precisa,não da nossa plenitude". Curiosamente, é a judia Raïssa que entrará primeiro por S.Tomás: "Esta primeira leitura da Suma Teológica foi para mim um dom muito puro. Recebi, uma vez por todas, a certeza das verdades primeiras acerca da inteligência, e a alegria de ver esta suficientemente forte para conduzir até ao seio da noite estrelada da fé os princípios da razão. Recebia o que podia receber segundo a minha fraca capacidade, mas com plenitude. Os problemas tinham desaparecido  -  como acontece no tempo da felicidade  - para reaparecerem mais tarde. Mas mais tarde não me caberia, a mim, aplicar-me, mas ao Jacques, filósofo por vocação...Recordo o meu primeiro encontro com o casal e Vera, a irmã de Raïssa, que compunha aquela comunidade monástico-familiar a três. Tinha eu vinte e poucos anos, e embasbacava perante aquela gente cheia de rigor tomista e misticismo religioso, mas que acompanhava Satie e Stravinsky, Diaghilev e Rouault, e era amiga de Cocteau e Chagal. Voltei a vê-los, quase trinta anos depois, já Jacques Maritain terminara a sua missão de embaixador de França junto da Santa Sé, em Paris, precisamente com o Stravinsky e o Cocteau, por ocasião dum Oedipus Rex no Théâtre des Champs Élysées. A Raïssa, como sabes, era de origem russa, Oumançoff era o seu apeldido de solteira. Quando, muito novinha ainda, iniciara os seus estudos em Mariopol, junto ao Mar Negro, interessou-se muito pela literatura russa. Foi ela quem, pela primeira vez, me falou de Pushkin. E, por ser melómana, me referiu as óperas russas cujos libretos se inspiraram em obras do grande poeta, aliás com os mesmos títulos: "A Dama de Espadas" e "Eugénio Oneguin" de Tchaikovsky, "Boris Goudonov" de Mussorgsky. Através de conhecidos do Alberto, pudémos assistir a ensaios desta, na Salle Wagram, sob a direção de André Cluytens, com o Boris Christoff e o coro dos seus compatriotas búlgaros da Ópera Nacional de Sofia. Como sabes, esta ópera tem seis versões musicais: duas do próprio compositor, duas do Rimsky-Korsakoff, uma do Shostakovitch e ainda outra arranjada por dois americanos para o MET. Ouvimos a segunda versão do Rimsky, que é a mais repetida. Voltei a lembrar-me de Shakespeare  -  que Pushkin muito admirava  -  não só pelo modo de composição do drama em sucessivos quadros (ou cenas) como em "Macbeth", mas pela história contada que,mesmo com fundamento na "História do Império Russo" de Nikolai Karamzin, é muito semelhante à de "King Richard the Third" do dramaturgo inglês. Lembras-te de termos assistido, em Londres, a um inesquecível Ricardo III pelo Lawrence Oliver? Claro que te lembras,porque é mesmo inesquecível! Deixo-te esse monólogo do rei que vai morrer: "What do I fear? Myself? There´s none else by. / Richard loves Richard; that is, I am I. / Is there a murderer here? No - yes , I am. Then fly. What,from myself? Great reason why - / Lest I revenge. What,myself upon myself!”. Continuo, mas traduzindo, sem cuidados de rimas, métricas ou tónicas. Só pela força do texto, porque, fraco embora, sei que a maravilha do espírito é não ter dono. "Com pena me amo. Por que razão? Por algum bem que eu mesmo a mim me tenha feito? Ai, não! Infelizmente, antes mais me detesto pelos odiosos feitos que eu mesmo cometi! Sou um vilão; e ainda minto, não sou. Tolo, de ti falas bem. Tolo, não te vanglories. A minha consciência tinha milhares de línguas diversas, e cada língua em si traz ditos diferentes, e cada dito me condena como vilão. Perjúrio, perjúrio ao mais alto grau; assassínio, impiedoso assassínio, ao nível mais sujo; todos pecado, todos a cada passo cometidos, juntos na barreira, todos gritando ´Culpado! culpado!´ Desespero. Nenhuma criatura me ama; e se morrer nenhuma alma terá piedade de mim: e porque haveriam de ter, já que eu mesmo em mim não tenho piedade para mim?". Boris Goudonov, no fim, ainda suplica perdão... Talvez por virtude desse cristianismo ortodoxo que tanto acredita na intercessão do povo fiel, dos monges, dos santos e dos anjos. Aqui tens, minha Renúncia de mim, nascida, como Vénus, deusa do amor, do mar de contradições e paradoxos da vida, a diferença entre tormento e sofrimento: tormento é tormenta, tempestade, revolução, morte, incomunicabilidade; o sofrimento é paixão e compaixão, aceita-se como semente que germina. Aqui, no Georges V, fazem-me sempre o favor de instalarem um gira-discos no meu quarto. Talvez adormeça, mas vou ouvindo a "Paixão segundo S.Mateus" de Bach. Sei que dormirei em paz, porque, no fundo do meu coração, sempre trémulo e fiel, ficarei escutando esse paradoxo inicial da nossa condição humana. E que Deus nos veja, pois mais não posso."  Confesso que hesitei em publicar esta carta de Camilo Maria. Outras tenho traduzidas, e também não sei...

 

Camilo Martins de Oliveira 

Cohen: Dance Me to the End of Love

 

Incontornável cantor e poeta judaico-canadiano Leonard Cohen, a felicidade, o objectivo de vida, o amor, a velhice e a morte.
 

Um perpétuo regresso ao reunir ambas as partes da alma, digo.
 

Sempre que pude estive nos seus concertos por uma e outra razão também ligadas à beleza e ao consolo, termos que quase nunca utiliza e deles fala continuamente.
 

Troca-se o desejo pela paz sabendo que Ain’t No Cure for Love, e se saiba só pelo olhar que I’m Your Man seja so close to everything we’ve lost que ninguém pode sair ileso afinal depois de aceitar a proposta: Take This Waltz.


Aceitei-a sim, para a dançar na orla da floresta onde, só a minha ave me aguardava.


E diz Leonard Cohen: « Embora as pessoas mudem, o cabelo fica grisalho e caia, o seu corpo se degrade e morra, acho, ainda assim, que há algo que permanece imutável:o amor intacto, esse é o incurável.»

 

A unidade total é impossível se ambos os parceiros não partilharem a mesma atitude espiritual, afirma também Cohen com tranquilidade e melancolia.

 

Em 2011 é-lhe atribuído o prémio Principe das Astúrias das Letras. Um príncipe que à sua princesa disse:

sei que estás cansada da tua beleza e esta noite não quero que carregues esse injusto peso. Como podes carregar tanto, até mesmo o que os nossos olhos não merecem?, e do que tu sabes eu não sei. E o carrego é teu?, minha paixão, meu vocabulário religioso. Por favor pousa a tua mão no meu papel. Descansa.

 

Leonard, um segredo exposto de Agosto, uma base de trabalho ideal. Um homem de evoluções inquietas a uma poderosa força interior pois sempre soube que
 

First we take Manhattan


e o desmaio em 2009 de Leonard Cohen durante um show na Hungria, foi orlado por uma estrela a anos-luz de distância, também conhecida por visita-retribuição.
 

 

TERESA VIEIRA
Agosto 2013

 

 

SENTIDO DE ESPETACULO NA PINTURA E DESENHO DE ALMADA


Acrobatas de Almada Negreiros
"Acrobatas" de Almada Negreiros, 1947


A exposição do acervo de obras de Almada Negreiros no Museu do Chiado - Museu de Arte Contemporânea, apresentada por Paulo Henriques, diretor do Museu, para além da qualidade e mestria das obras em si, contem como que uma dimensão "de espetáculo" que é inerente a toda a obra de Almada, seja ela expressa nos formidáveis frescos e pinturas que dominam os edifícios e as cidades, seja em desenhos e quadros como aqueles que o MAC-MC agora expõe.

São oito obras de uma extrema modernidade. Tal como refere Paulo Henriques, "é uma pintura de síntese do seu (de Almada) pensamento artístico: o desenho omnipresente, figuras neo-cubistas num interior sombreado, alongadas formas expressionistas recortadas em texturas gráficas numa atmosfera de sombras e luz". Curiosamente ou talvez não, das oito obras, três relacionam-se com expressões diretas ou indiretas de espetáculo: "Arlequim com Mulher", "Bailarina Descansando de Pé", "Acrobatas".

Ora, sabemos bem como a dimensão do espetáculo a nível de personagens e ambiente surge recorrentemente na obra de Almada, e tanto na expressão plástica como na expressão poético-literária e muito particularmente na expressão teatral: e não é só no óbvio "Pierrot e Arlequim - personagens de teatro", mas também na Boneca e no Boneco, bonifrates que assumem a vida em "Antes de Começar", nas coreografias do "Deseja-se Mulher", na intervenção insólita do "Árbitro de futebol" na revolução de "S.O.S.", na companhia de teatro de "O Público em Cena"…

E surge também nos numerosíssimos textos de análise estética do espetáculo e do fenómenos teatral, que tenho aqui referido e de que citarei agora, como obra - síntese de pensamento estético, "O Pintor no Teatro - À Memória do muito querido companheiro Frederico Garcia Lorca, por excelência a vocação de teatro em nossos dias", onde se lê: "Não conheço pintor, vivo ou morto, que na palavra Teatro não fosse como em coisa sua: o Teatro é nosso, dos pintores, o escaparate de todas as artes".

São textos e exemplos que se generalizam a toda a obra de Almada. Não me canso de lembrar a interpretação admirável do vicentino "Todo-o-Mundo e Ninguém", em postura rigorosamente igual na Faculdade de Letras de Lisboa. E já agora, ainda cito, aqui no contraste, a ambiguidade entre o crime e o sonho da peça "Aquela Noite".

Afinal, todo o teatro de Almada é  como o teatro deve ser: eminentemente "espetacular", isto é, texto realizado em espetáculo, logo necessariamente plástico na sua dinâmica e no seu movimento… mesmo quando as pinturas por definição não se movem!

 

DUARTE IVO CRUZ

AINDA VERDI…

 

"Rigoletto" , uma das óperas mais cantadas em todo o mundo, situa-se cronologicamente a pouco mais do meio das compostas por Verdi (é 16ª em 27), imediatamente antes de "Il Trovatore" e de "La Traviata", ambas terminadas dois anos depois, em 1853. Na "Rigoletto" está quase todo Verdi, é como o ponto sublime das invenções já anteriormente anunciadas e, simultaneamente, o anúncio do que está para vir. Não é já só uma sucessão de cenas, pois toda a expressão dramática se traduz em música que, mesmo quando só orquestral, é também narrativa. O libreto, como sabes, foi retirado pelo Francesco Maria Piave (que também escreveu os de "Macbeth" e de "Ernâni", e o de "La Traviata" e mais outros seis) de um drama de Victor Hugo: "Le roi s´amuse" que, levado à cena vinte anos antes, em Paris, só teve uma representação, por intervenção da polícia, e esperou cinquenta anos para voltar ao teatro. Conta a história do abuso, pelo rei Francisco I de França, da filha do seu bobo Triboulet (em italiano, Triboletto e, mais tarde, Rigoletto  -  inspirado pelo francês "rigoler" ou divertir-se à custa de...). Também a censura austríaca se opôs à estreia da ópera, com a mesma história, no La Fenice, em Veneza. Após negociações várias, Piave e Verdi conseguiram a necessária autorização, mediante a mudança do título inscrito no libreto ("La Maledizione") para "Rigoletto" e, sobretudo, a mudança dos  nomes das personagens e do local do drama: ficou-se em Mântua, com um duque local, inventado. No mesmo teatro foram estreadas outras óperas de Verdi com libreto de Piave, entre elas "La Traviata" e "Ernâni", esta também inspirada numa peça de Victor Hugo: "Hernani". Ao grande francês foi, pois, o compositor do "risorgimento" buscar dois temas, tal como três a Shakespeare ("Macbeth", ainda por Piave, "Othello" e "Falstaff", ambas por Arrigo Boito). É interessante observá-lo, quando sabemos que o bardo inglês do sec.XVI/XVII era o dramaturgo preferido de Hugo como de Verdi. Pessoalmente, senti sopros shakespeareanos no "Rigoletto". Não do actor-autor teatral que, em tantas das suas obras e atuações, procurou superar com bom humor e até alguma bonomia,o clima de suspeições e desconfianças que,na Inglaterra elizabeteana,envenenava as relações entre pessoas e grupos, anglicanos, papistas, puritanos...e alimentava tensões, conspirações e conflitos, aliás com alguma tradição, por esta ou aquela razão, no reino insular. Mas senti o Shakespeare do início do século XVII, o que perde o pai e é traído no amor, e sofre o fracasso dos condes de Essex e de Southhampton: patronos do bardo, o primeiro seria executado por Isabel I, o segundo encarcerado na Torre de Londres, de onde seria libertado por Jaime I, depois da morte da Rainha-Virgem. São anos em que William Shakespeare escreve em empatia com o gosto popular pelo drama sórdido, pela violência horrível que pesa sobre os homens como uma inevitabilidade, um castigo, ou, simplesmente, pela expressão do maligno que lhes habita o coração: Hamlet, Othello, Lear, Macbeth serão, entre 1602 e 1607, os heróis dessa desumanidade ou da tragédia dos homens que se acham esquecidos de Deus... Rigoletto, feio bobo, disforme e sarcástico, é criatura de Hugo, não de William. Mas recebe deste a fé na maldição, pois quem nasceu malfeito, ridículo e repugnante, tem de ser maldito e amaldiçoar o bem dos outros e regozijar-se com o mal deles: assim, é o ódio à beleza que ele não tem que o leva a detestar o duque e a corte, sem distinção alguma, nem sequer compaixão pelos condes de Monterone e de Ceprano, cujas filha e mulher soçobraram à luxúria cúpida do duque de Mântua. E que o impele a negociar com um bandido o assassinato do duque, que lhe seduziu a filha: Gilda que, por misteriosa fidelidade ao sedutor que a enganou e abandona, em segredo o substituirá no sacrifício a que o pai dela o condenara. É-me difícil compreender tal entrega de si em tão sinistro contexto: só no grito final de Rigoletto  -  "Ah! la maledizione!"  -  talvez... Mas é belo, como oásis no deserto  -  ou esse raro brilho dos teus olhos, que tão bem conheço  -  o dueto entre pai e filha que te referi no início desta carta, quando Rigoletto, temendo o mal que paira sobre Gilda, canta que a Deus pedira que sobre si só caísse a maldição, e à filha pede que lhe chore em cima do coração: "piangi,fanciulla,piangi"... É o grande momento de grandeza humana  -  quase divina  -  da ópera, em que o bobo se transfigura em pai, por um impulso de sentida generosidade e compaixão. Nesse instante, Gilda deixa de ser um objeto de paixão possessiva, de que ele ciosamente se apropria, e transforma-se também  - ao ponto de reconhecer no pai um anjo consolador  - em ser humano desamparado que só o carinho de outro conforta. Antes, já o mentiroso duque declarara à menina reclusa que "il Dio d´amore stringeva tuo fato al mio!" O teu fado e o meu, inseparavelmente, ligados pelo Deus do amor. "É il sol dell´anima,la vita é amore,sua voce é il palpito del nostro core..." Ocorreu-me aí o tema de "La Traviata": "L´amor é palpito del universo intero...". Com as mesmas palavras se dizem, até em música, palpitações diferentes. As palavras, como os gestos e as obras dos homens, em qualquer caso, são sempre artifício. É próprio da natureza do homem comunicar com as coisas todas, e com os outros, por artifício. A "fábrica" que cada um de nós é transforma tudo aquilo em que toca. E por muito rigorosas que sejam as regras impostas ao nosso comportamento  -  e por muito convencionais que possamos parecer  -  a verdade de cada um, só os olhos de Deus a vê no fundo dos corações. O "palpito" do coração do duque de Mântua vai mudando de velocidade e estímulo consoante "la donna é mobile: qual piuma al vento,muta d´accento e di pensiero...".  O bater dos corações de Violetta e Alfredo acompanha o ritmo íntimo e misterioso do universo sem fim, para lá do visível, do imediato, do possuível. Na cena final  de "La Traviata", a morte dela levanta-se como ressurreição. Olha, Princesa, lembra-me esse verso do Ungaretti: "M´illumino d´inmenso...". Camilo Maria voltou várias vezes a Milão e ao Scalla. Quase dez anos deste "Rigoletto", passara por Lisboa e levou-me a S. Carlos, a uma inesquecível "La Traviata", com a Maria Callas e o Alfredo Kraus , dirigida pelo Claudio Scimone. Escreveu sobre isso à Princesa. Guardo essa carta para mim.

  
Camilo Martins de Oliveira 

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins
de 26 de agosto a 1 de setembro de 2013

 

Em memória de Urbano Tavares Rodrigues, lembramos hoje o algarvio «Agosto Azul» (1904) de Manuel Teixeira Gomes, um dos grandes escritores da nossa língua, que o romancista agora desaparecido tão bem estudou, dando-nos a possibilidade de conhecer melhor o nosso sul. «Eu era novo então, forte, petulante, fulgurando a miúdo em súbitas exultações, na plena fase de herói, orgulhoso, dominando a vida e gastando-a com fausto, perdulário sibarita que a sorvia, sorrindo, nas aparências luxuriantes e a sugava até à essência saborosa ou amarga...». Recordamos também a «Corografia do Reino do Algarve», escrita no século XVI por Frei João de S. José.

 

 

REINO DE NOVIDADES

Quem ler a «Corografia do Reino do Algarve» de Frei João de São José (1577) facilmente se aperceberá de que os algarvios eram vistos como gente estranha, como se povoassem lugares distantes e excêntricos. Reino de novidades, era o que o surpreendido frade encontrava neste sudoeste cheio de contrastes, que leva o nome do ocidente do Al-Andalus. E que costumes bizarros e distantes eram estes? «Quem em Portugal ou em outra qualquer parte do mundo ouve dizer que no Algarve se vareja o figo e não a azeitona e que num figueiral, andando continuamente quinze, vinte pessoas, não pode tanto apanhar que mais não madureça té se acabar, e que os figos se tocam com uns bichinhos que nascem e saem d’outros e os que assi não são tocados pequenos pecam e caem, e que o azeite o faz cada um em sua casa, pisando a azeitona com os pés, e que as uvas para o vinho ser bom, depois de vindimadas as deitam em terra, em monte, e as deixam apodrecer e depois o faz cada um em sua casa com um saco, qualquer cousa destas per si traz consigo admiração, a quem delas não tem experiência e devem ser contadas com resguardo, quando mais todas elas justas». De facto, até há bem pouco, o Algarve era algo de estranho para o resto do país. E se esta descrição tem mais de quatro séculos, o certo é que fui testemunha de tudo isto – a começar na proibição absoluta, pela minha avó, de mexermos nos figos toques e na misteriosa intervenção dos pequenos mosquitos que davam vida e sabor aos melhores figos. Tudo era ainda como Frei João diz: o varejo e a secagem dos figos, o tratamento do azeite e o ciclo das uvas, douradas, dulcíssimas, e depois de manjar dos deuses passas ou vinho… Afinal, o reino era diferente e foi-se criando esse mito, com aura de lenda, de mouras encantadas e de contos fantásticos, cheio de exotismo e mistério, alimentado pela tradição das taifas.

 

O SABOR DA TERRA

Sigo um livro magnífico, com fotografias belíssimas. Falo só do capítulo sobre o Algarve, mas a obra toda é indispensável: «Portugal – O Sabor da Terra – Um Relato histórico e geográfico por regiões» de José Mattoso e Suzanne Daveau, com as imagens de Duarte Belo (Temas e Debates / Círculo de Leitores, 1ª ed., 2010). É obrigatório ler, em complemento de Orlando Ribeiro. No Algarve, a distância e o mistério vêm da dificuldade no acesso. Era duro e perigoso passar a serra. Durante o Inverno as veredas tornavam-se intransitáveis e nem os carros de besta podiam passar. Por terra, só era possível ir-se a cavalo por Messines e S. Marcos da Serra. As melhores comunicações faziam-se por mar, ao longo da costa atlântica ou através do Guadiana, a partir de Mértola. Teixeira Gomes descreveu o périplo de caminho-de-ferro até Beja e depois a chegada a Mértola e seguir rio abaixo até Vila Real de Santo António e depois pela costa até Vila Nova de Portimão. O comboio só chegou a Faro em 1889 e a Vila Real em 1906 – e a Lagos só no início dos anos vinte. Lembro-me de viagens épicas no comboio, a começar ou a acabar na Estação de Sul e Sueste, a todas as horas do dia e da noite, com transbordos, atrasos, esperas, noites de vela no «correio» e tudo o mais – sempre com a compreensão de meu avô, que era um apaixonado desse meio de transporte. Pela estrada de Duarte Pacheco, havia trezentas e muitas curvas na serra do Caldeirão até Loulé, que conhecíamos de cor, graças a olímpicos enjoos. Frei João de São José comparou a serra a um mar «muito empolado, com grande tormenta». Daí as dificuldades de povoamento. Muito poucos nobres transferiram residência para ali. O Algarve era como uma ilha, sendo precisos privilégios foraleiros para atrair gente do norte e Alentejo para os trabalhos agrícolas. Só o rei D. João II morreu no Algarve. Ceuta atraiu os portugueses, mas a conquista não trouxe as riquezas esperadas – mesmo assim os procuradores do Algarve sempre defenderam essa presença, sobretudo aquando da prisão de D. Fernando. A antiga cidade de Silves, a Bagdad do ocidente, cabeça do reino antigo, foi perdendo influência, pelo assoreamento do rio Arade. A sede episcopal e o centro político passaram para Faro. Depois, a economia algarvia abriu-se ao exterior, procurando superar a falta de trigo. No mar, havia o atum e a sardinha. Em terra, o figo foi a principal produção da região. A colheita ia do fim de junho até setembro, com uma grande variedade de espécies e de formas de conservação e de secagem. «Muitos rendeiros e proprietários transferiam temporariamente as suas residências para as casas ou acomodações que possuíam nos figueirais», numa tradição muçulmana ancestral conhecida como «alacil» (ou mesa de Deus).

 

OS LAVORES DO FIGO

Fazia-se tudo do figo, como notava Frei João: «queijos destes figos, lavrados com amêndoas e festejados com mil lavores por cima e outras mil invenções de figuras, que estas mulheres cada dia inventam…». Nestes lavores do figo está a origem da doçaria algarvia… E havia o sequeiro e os seus manjares e ingredientes: amêndoas, passas de uva, azeitonas, alfarrobas. Vitorino Nemésio fala de «praia e pomar» e a variedade é fantástica: limões, laranjas (agras e doces), peras, maçãs, nozes, avelãs, pêssegos, marmelos, ameixas, abrunhos, castanhas e até cerejas de Monchique. E na praia, havia abundância: linguados, rascassos, pâmpanos, rodovalhos, ostras, amêijoas, lagostas e lavagantes. E havia que proteger as armações e os povos dos corsários e piratas de Marrocos. De março a julho, faziam-se muitas armações de atuns («a pescaria deste peixe não só é proveitosa, mas também de muito gosto e desenfado», diz frei João), tudo isto antes do desvio dos cardumes e da crise das pescarias do século XX. Leia-se as páginas imperdíveis de Raul Brandão e de Manuel Teixeira Gomes sobre o copejo e as almadravas. Tradicionalmente, tudo se aproveitava do atum, desde os olhos ao esqueleto, passando pelas ovas secas (mucamas) – pitéu de flamengos. Tempo houve em que o pescado era escoado para Castela através da Andaluzia. Daí ter Sebastião José criado a Companhia das Reais Pescarias (1773) para comerciar o peixe para Lisboa e para o mercado nacional. E em falando de descaminho, a serra tinha o seu quinhão, com os montanheiros ou serrenhos que traziam as madeiras, o mato, a lenha, o carvão, e até o cobre e a prata de Alte e Querença, mas também faziam a caça e extraiam o mel e a cera das colmeias, circulavam as vacas, os porcos e as cabras (daí as cercas de gado pela serra) e mantinham viva a memória das velhas tradições, das mezinhas, das benzeduras e dos romances de mouras e lobishomens. Eis o Algarve e «o seu fascínio depois de alguma busca de paciente iniciação».

 

NOTA. – Quando escrevi o texto, chegou-me a triste notícia da morte de Urbano Tavares Rodrigues. É uma perda irreparável para as culturas da língua portuguesa. E falando hoje de Algarve, devo lembrar o muito que fez por manter viva a memória do escritor algarvio Manuel Teixeira Gomes…

 

Guilherme d’Oliveira Martins

TENHO RECEBIDO CARTAS, TELEFONEMAS; MENSAGENS.

 

Tenho recebido  -  com frequência bem maior do que a minha capacidade de resposta  -  cartas, telefonemas, mensagens, em simpatia ou empatia com o desenrolar da relação entre o Marquês de Sarolea e a sua Princesa... Algumas até me lembram o Conan Doyle, que tantas recebeu a pedir-lhe que ressuscitasse o Sherlock. Mas, na verdade, eu nada posso fazer para dar outro rumo a duas vidas que encontraram, que se aconteceram  -  uma à outra, em vicissitudes várias  -  e já estão do outro lado: Camilo Maria morreu em 1979, a Princesa dele em 1994. Eu cá estou, depositário de uma correspondência vasta e por muitos anos secreta, de fotografias e outras recordações deixadas ao meu arbítrio, para publicação (ou não). Para além de poder ordená-las por qualquer critério, mesmo sem respeitar a cronologia, ou amputá-las sem lhes retirar o sentido,  não tenho sobre elas qualquer direito. Contrariamente ao que pensam alguns leitores  -  que se acham mais perspicazes  -  nas traduções seletivas que vou fazendo, não posso mudar destinos nem transpor fronteiras de discrição. Ocorre-me, pelo atalho destas observações, uma carta de Camilo Maria à sua inesquecível Princesa: "Assisti hoje, aqui na UNESCO, a uma conferência do Emmanuel Mounier, intitulada "Pour un temps d´Apocalipse". A certo passo, disse: "Se o homem foi feito para se tornar num deus, natural ou sobrenaturalmente, não se pode aceitar que a sageza seja para ele uma conformidade prudente e monótona a uma natureza definida de uma vez para sempre... O homem assim posto no seu lugar é essencialmente "artifex", criador de formas, feitor de artifício... Os cavaleiros andantes da natureza têm razão ao lembrar que a condição humana não se estica em todas as direções, e que é necessário tempo para que a humanidade se assimile as suas próprias deformações. Mas o descrédito sistemático que lançam sobre o artificial parte de uma visão radicalmente falseada do que é mesmo próprio do homem. Podemos dizer, sem forçar muito as palavras, que a natureza do homem é o artifício". Este conceito de que "la nature de l´homme c´est l´artifice" insere-se na procura de um humanismo cristão que dê sentido à "civilização do trabalho". Pode perspectivar-se pela filosofia da natureza e a antropologia de Aristóteles que, por via de Averroes, entrou no pensamento da cristandade com S.Tomás de Aquino. Ou, ainda, pela história que vai revelando o homem na natureza e na sociedade. Na natureza, da qual se vai escapando sem nunca lhe fugir; na sociedade, na qual se vai refugiando, porque nela, primeiro, com ela se defende da natureza e vai,depois, procurando a harmonia possível. O "homo artifex" é,afinal,a síntese do "homo faber" com o "homo sapiens". Ou seja: é a expressão natural da criatura que em si reúne corpo e espírito,evolução e consciência dela. Mas o homem é, ontologicamente, um ser em relação: com a natureza e com a transcendência, mesmo quando esta surge indefinida; com os outros homens, como é sempre evidente. O "homo oeconomicus" tece-se nessa rede complexa de relações sociais, que historicamente vão evoluindo. A afirmação de Karl Marx, retomada no prefácio a "Das Kapital", de que "o desenvolvimento da formação económica da sociedade é assimilável à marcha da natureza e da sua história" é verificável. E, como observará o Padre Chenu, é na tragédia contemporânea do homem escravo do seu trabalho que Marx teve a revelação do "homo oeconomicus" ...  homem que se aliena no seu trabalho. Todavia, o trabalho, ainda que sendo natureza sua, não é a essência do homem, pelo que, contrariamente à profecia de Marx, não será a sua apropriação pelo proletariado a pôr um ponto final na história. Como diz Pio XII: "Acima da distinção entre patrões e empregados, que, cada vez mais, ameaça tornar-se numa separação inexorável, está o trabalho, ele mesmo, capaz, em virtude da sua própria natureza, de verdadeira e intimamente unir os homens..." É necessário valorizar o trabalho, porque valoriza as pessoas. Pelo trabalho transforma o homem a natureza e, nesta, o natural do homem é ser artífice. Na sua etimologia latina encontramos um substantivo (feminino!) : "ars, artis" que tando significa arte como ofício, indústria, artifício, expediente, obra, produto, talento... Transformação, afinal, não será? Relembrando São Máximo: "O homem é uma oficina viva, em permanente continuidade de acção em todos os seres". União substancial de corpo e alma, o ser humano, para os cristãos, funciona na natureza como a roda da dialéctica desta com a graça de Deus que a criou e transforma até à plenitude dos tempos. Por isso, no dever e na práctica e no fruto do trabalho, a todos deve ser reconhecida a mesma dignidade. Releio o que acima escrevi e percebo que, por vezes, as visitas que te faço – mesmo as epistolares – possam ser pesadotas e parecer pretensiosas. Antes serão parte de mim. Se eu fosse o inspetor Maigret  -  e casado contigo, não com Madame Maigret  -  chegaria a casa, calçaria as pantufas e, servindo-me de um "apéro", acenderia o cachimbo... Ficaria a ruminar os meus enigmas, ali, na casa de jantar... Falar-te-ia de quê? Não consigo sequer imaginar, estarias atarefada na cozinha, se te ocorresse uma lembrança, um recado, virias, pé ante pé, cúmplice e mansa, pousar silenciosamente um papel rabiscado no tampo da mesa. Apesar de tudo, mesmo quando me tratas de "convencido", sempre sou mais comunicativo. E nunca escondo a misteriosa ternura em que te abrigo... Mas, muito embora procure para ti o modo e as palavras que te digam esta ternura toda com que me enches a alma, é sem artifício algum que te amo muito e tanto, tanto, te quero bem. Mais, bem mais, do que sou capaz. Muitas vezes se me afigurou fácil a solução de me afastar de ti, pelo que de mim não queres. Não posso, não consigo, é mais natural em mim este encanto amoroso, que me faz sofrer, do que o artifício da fuga que talvez me libertasse. Penso que me mantém mentalmente saudável este jeito que tenho de lidar com o paradoxo: aceitar-te, aceitar-me, e à nossa circunstância... Ofereceu-me o Alberto um livro de poesia em português: "Desaparecido" de Carlos Queirós. No "Apelo à Poesia" ele diz algo que eu te diria, a ti, quando interrompes uma das tuas ausências ou silêncios e sabes que vens ao meu coração entrar pela porta aberta da ternura: "É verdade que vens, como se fosses / uma parte de mim que vive longe, / presa ao meu coração / por um elo invisível; / mas não regresses mais sem que eu te chame, / - não sejas como a saudade!". Quase, quase, vinte anos depois, Sarolea escrevia, de Milão, em Julho, à sua impossível Princesa: "Estive esta noite no Teatro alla Scala. Pasmando para um "Rigoletto", dirigido pelo Kubelik, cantado,"ladies first", pela Renata Scotto e a Fiorenza Cossotto, e admiravelmente pelo Fischer-Dieskau e o Carlo Bergonzi. Verdi é "vero Verdi", ópera é obra! Não me larga o ouvido aquele dueto do Rigoletto com a Gilda: " Ah! solo per me l´infamia a te chiedeva, o Dio... Pudesse ela subir tanto quanto eu caí!... Piangi, fanciulla piangi, chora menina, chora, deixa o teu pranto escorrer pelo meu coração!.. " Mas essa carta...deixo-a para outro dia!

     
Camilo Martins de Oliveira

A única dignidade realmente autêntica é a que não diminui ante a indiferença dos outros.

                       

 

Dag Hammarkskiod


Na qualidade de docente universitária, foi-me solicitado em 2010 um contributo à publicação De legibus.

Aceitei o desafio do Senhor Professor Doutor António Braz Teixeira e do Senhor Professor Doutor Mário Júlio de Almeida e Costa. Surge agora publicado no1º semestre de 2013 o que então escrevemos e que, infelizmente, não nos parece ter perdido actualidade.

 

A dignidade humana

 

Sabe-se que está a terminar este ano 2010, ano europeu de luta contra a pobreza e a exclusão social. Sabe-se, e não se sabe bem o que isto significa, qual o nosso grau de responsabilidade, qual a medida deste sofrimento.

 

Sabe-se que a União Europeia é uma das regiões mais ricas do mundo e, contudo, 17% da sua população não tem modo de satisfazer as suas necessidades básicas.

 

Diga-se que a Europa é muito sofrida na pobreza e na exclusão social o que ainda é mais gritante, face a um mundo que se entende superior e nem compreende o quanto a pobreza e a exclusão social, são um empobrecimento de cada um de nós, de cada cidadão, que nem em si mesmo trava esta batalha pela justiça mínima, face aos outros que pouco ou nada têm, e referimo-nos à mesma justiça que se entende por direito próprio nos seja reconhecida e atribuída em qualquer circunstância.

 

Então e os outros? Aqueles que vivem cada dia como uma morte diluída em cada gota-a-gota de agonia?

 

Refiro-me à União Europeia já que é fundamental não descuidarmos que a palavra união constitui a união de realidades sentidas pelos seres que a intuem como o único caminho que agarra a solidariedade pelo caule e com ela enfrenta o que iremos todos unidos fazer na luta.

 

Infelizmente a pobreza e a exclusão social, que vivem de mãos dadas, são vistas hoje como um tema normalizado ao qual se recorre para sabermos quanto muito, qual o número de pessoas que se assemelham numa idêntica desgraça expondo-se as condolências de ocasião.

 

Na verdade, raramente o modelo trágico de vida que todos impomos a outros seres iguais a nós, e que morrem aos nossos pés, faz despertar a certeza de que assim permitir esta não-vida, não é humano e em consequência, ou nos mobilizamos todos e cada um, ou o simulacro da bondade traz consigo a conversa da sintonia que faz de conta.

 

Às vezes, e são muitas estas vezes, acorda-se o corpo e sacode-nos numa doença ímpar em cada um de nós. É então chegado o momento de nos queixarmos do sofrimento que nos toca viver e enfrentar. Consultamos especialistas a respeito da nossa necessidade de cura urgente, queremos utilizar os mais avançados métodos terapêuticos, e munidos do dinheiro necessário e usado como unidade contável, também no acesso à saúde, sentimo-nos corajosos por accionarmos todos estes dispositivos, alheios de todos quantos não os possuem, exactamente porque o escambo é feito sempre entre os mesmos: leia-se os poderosos.

 

Sim, os poderosos são afinal todos os que atingimos um objectivo a que nos propomos. Os outros poderosos que bem conhecem a cor do dinheiro pelo faro, há muito que nos convidaram a mendigar o circuito e dele fazer uma potencialidade para emergência futura. E muitos foram os que aceitaram. Muitos foram os que revogaram o passado e o presente e aniquilaram os vindouros numa trama sem código.

 

Deste modo, também deste modo se carrega no botão das posses de cada um, e fecham-se os sentidos à pobreza e à exclusão social, antes que as mesmas se colem a nós e não desgrudem, nem mesmo pela força do nosso alheamento.

 

Assim, encontramo-nos face a face a uma Europa da temporalidade da própria espécie de cidadãos que se institucionaliza, assentando vida em peças suplementares, e para quem a ausência de terapia para fazer frente à tragédia, é algo que os não tolhe: mais, é algo que se arremessa à cara dos outros como porta de entrada à própria absolvição neste acto de rechaçar culpa própria.

 

Ora, isto de se falar nas nossas capacidades, tem o seu postulado. Trata-se de um conjunto de forças disponíveis em cada um de nós e que nos perguntam constantemente, o que é que essas forças fazem se nada acontece que melhore a doença crónica da pobreza e da consequente exclusão ou a inversa?

 

Podemos alertar que as contas se fazem antes, isto é, desde a tomada da droga ao deitar, não vá termos insónia, ou o antibiótico que previne a infecção pós-operatória, até ao sumo de laranja que contribui ao evitar da gripe, pergunto: quem não faz desta medicina uso corrente? Então quem não sabe que o remédio anula a doença? E mesmo que a mesma persista, sempre aumentamos a nossa forma de a combate até aos limites.

 

Assim sendo, como justificamos que o imenso poder que afinal detemos não o reunamos em nós, nele englobando toda a humanidade carente?

 

E como não dar a voz à palavra escrita, ao gesto, às necessidades de todos quantos vivem na pobreza e na exclusão social? Como não sermos nós mesmos a própria organização da sociedade civil a não estigmatizarmos a pobreza? Como não garantir a solidariedade entre as gerações, assegurando aos nossos próprios filhos um mundo de humanidade?

 

Lembremo-nos todos que o poder, quando estacionário, tem inevitavelmente tendência a cair por efeito da própria inércia.

 

Aceleremos todas as capacidades que temos e criemos em bloco o medicamento para este holocausto que se tem mostrado imparável e impune. Utilizemos a capacidade do fim e do meio de eliminação das causas sociais de tão horrenda doença.

 

Não esqueçamos que a Justiça elimina o risco de nova doença se  se mantiver a margem de eficácia que se deseja. O mesmo é dizer que dentro de cada um de nós deve funcionar uma delegação própria de um tribunal penal internacional, dentro do qual se entenda, o quanto nos é dado o poder de intervenção no corrigir das assimetrias da qualidade de vida.

 

Muito haveria a dizer sobre este tema pungente, mas talvez já baste por agora lembrar que a felicidade é também um estado «civil» decretado pelas coordenadas de base de um Estado no que se refere às suas condições mínimas.

 

Talvez que a preocupação não deva ser tanto a de sermos felizes, mas a de cada um e todos, fazer a própria felicidade num mundo onde a abundância só se justifica se dividida.

 

Façamos de 2010 um bom exemplo contra a pobreza e a exclusão social, não esquecendo que a condição mínima é saber Ser, e este poderoso Ser será clonado e clonado já que como alguém disse, a felicidade é uma coisa que podemos dar mesmo quando não a possuímos.

 

Ensinemos esta Europa a ser menos autista ou menos nevrótica. Todos somos o seu conteúdo, os seus afluentes, a sua festa.

 

Saibamos pegar em muitas das suas belas tradições e identifiquemos o direito que todos temos a viver, não de coma irreversível, mas de possibilidades que perseguirão sempre o desígnio da dignidade humana.

 

M. Teresa Ribeiro Bracinha Vieira

FERNANDO AMADO DISCORRE SOBRE GARRETT


Almeida Garrett (1799-1854)
Almeida Garrett (1799-1854)


Em dezembro de 1969 assinalou-se o primeiro aniversário da morte de Fernando Amado, ocorrida exatamente em 23 de dezembro do ano anterior. Já aqui referi as ligações de família que me relacionam com Fernando Amado, e o interesse e proveito intelectual e cultural de que beneficiei durante os anos em que, a par de uma sofrida licenciatura em Direito, frequentava, como "aluno ouvinte" como então se dizia, as aulas de Estética Teatral e de Encenação de Fernando Amado no Conservatório Nacional. Não é demais novamente recordar que muito do que sei de teatro a ele devo. No primeiro aniversário da sua morte, foi-me pedido um texto alusivo à vida e obra, para uma sessão evocativa. Relendo-o hoje, encontro uma longa análise de Fernando Amado sobre o teatro e a obra de Garrett, que é interessante aqui transcrever em parte. Até porque me faz recordar a qualidade ímpar da sua docência.


Diz então Fernando Amado, e transcrevi nessa evocação, que "Garrett, o príncipe dos nossos dramaturgos, teve singular intuição do que havia a esperar do teatro. Pressentiu-lhe a origem sagrada; quis ressuscitar o coro helénico em jeito português e, pela mão de Gil Vicente, renovar o auto medieval; compôs três peças felizes sobre temas eternos da nacionalidade. Maior gratidão nos deve merecer ainda o que planeou sem ter feito o bastante para o ilibar das culpas que teria tido no posterior desvairo romântico"…

Havemos de voltar a estes textos de análise histórica de Fernando Amado. Mas para já, interessa-me salientar a justeza do enquadramento histórico sobre o teatro português. Na verdade, a Garrett se deve a renovação romântica do teatro e a sua modernização nos cânones da época e só ele a fez com verdadeira qualidade, pois os outros dois iniciadores do nosso romantismo - Herculano e Castilho - ficam muito aquém no que toca ao teatro. E o que se seguiu já foi ultrarromantismo.


Garrett é de facto um poderoso iniciador, e não só no plano dramatúrgico: a reforma do teatro encomendada por Passos Manoel e consagrada na Portaria de 15 de setembro de 1836 criou uma estrutura que ainda hoje subsiste: Inspeção Geral de Teatro e Espetáculos, Teatro Nacional, Conservatório de Arte Dramática, Companhia Nacional de teatro, concursos de peças, proteção de direitos de autor, política de subsídios.

 
E vale e pena, porque é retintamente garrettiano, recordar o relatório deste texto, dirigido diretamente a D. Maria II: "Valetudinário e achacado de corpo e espírito que ambos quebrei ao serviço de Vossa Majestade e pela santíssima causa da liberdade da minha Pátria,"…

Fernando Amado não cita este texto, mas o que diz de Garrett encaixa-se nele com precisão: "também a Garrett pertence o alacre apelo ao dramaturgo. Cuidado que em dramaturgo há demiurgo." E mais: "ele, dramaturgo, é instrumento e condição do diálogo. Atue pois como se estivesse simultaneamente no palco e na plateia, sincero, por amor dos homens, discreto por amor da arte"… Notável lição de um grande professor de teatro, de um grande doutrinador que foi também um grande dramaturgo - e referimo-nos evidentemente, a Fernando Amado.

 

DUARTE IVO CRUZ

DE PROFUNDIS…

 

"Minha Princesa de mim:

 

Não te tenho escrito, talvez por mágoa. Nada tenho contra ti, nem nunca terei. Mas sofro a dor do teu silêncio cruel, porque voluntário e premeditado. Diabolizas-me, tornas-me personificação do mal, mas deverás saber, no fundo mais sólido do teu coração, que jamais desejei o menor mal fosse a quem fosse. Quero  bem a todos, a começar pelo bem da luz que nos liberta das trevas  -  a tal que levou o homem primitivo a adorar o sol e inventar o fogo em que se guardaria da noite. Não pretendo ter razão, falo, discuto, debato, com a gana de um troglodita que esfregava pedras para criar faísca. Pensarmos é o nosso modo obrigatório de termos consciência no tempo mutante. E é sempre, também, o início da comunicação, da comunhão com os outros. O diálogo é pensamento expresso e silêncio expectante do pensamento do outro. E por aí fora. Aliás, a própria mística é o pensamento que procura escutar Deus. Em silêncio. Eis o que os apologetas apressados, os falsos pregadores, não entendem: o silêncio como escuta. Tal como os desconfiados, muitas vezes, preferem calar-se. Hoje, aliviado momentaneamente das dores que me limitam o movimento físico, fui buscar,  às prateleiras altas destas estantes cheias de livros e pó, uns álbuns de fotografias antigas que a tua irmã carinhosamente guardava. Entre elas, achei várias da "divina condessa"  -  tão parecida com ela, fisicamente. Virão as parecenças do ramo florentino da família, os Lamporecchi, mas entre a nossa G. e a Virginia Oldoini, condessa de Castiglione, não há outra semelhança. A G. poderia ser enérgica, impositiva, autoritária até, mas era esquecida de si, procurava o serviço dos outros e não olhava para o espelho. A condessa era narcisa. Foi muito bela, desde muito cedo soube que o era, muito tarde se deu conta de que a beleza física é um episódio. Tinha 41 anos quando, vivendo então em Paris, se encerrou num apartamento na Place Vendôme, protegido do exterior por três portas de entrada, e no interior pintado muito de preto, sem espelhos nem vidros reflectores. Até então, tivera inúmeros amantes, pelo gosto inato de exercer o poder da sua sedução. Um deles foi Napoleão III, diz-se que por ter sido enviada por outro dos nossos Camillo, o Cavour, primeiro-ministro de Vittorio Emanuele, rei do Piemonte, para aliciar o imperador dos franceses para a causa do "risorgimento" de Itália contra os Habsburgos... Teria então 19 anos, estava casada havia dois, era mãe de Giorgio, com um. As fotografias que a tua irmã guardou mostram-na, sempre em estúdio, ou quase sempre, personificando heroínas e mitos, com uma presença e uma intensidade dramática que me lembrou a Callas, de que tanto gosto. Poderá ser mais bela e pura e certa a voz da Renata Tebaldi, mas a Callas tem... esse não-sei-quê, que mexe connosco! A nossa "divina condessa"  -  assim a conheciam admiradores e amantes  -  para mim, de divino pouco tinha, de condessa o título do marido atraiçoadíssimo que a adorava, de marquesa o título dos pais, quando menina. Não será pessoa de que uma família conservadora e católica se possa orgulhar muito... Não é, de modo algum, o "meu género". E, todavia, ao olhar para estas fotografias, com as loucuras que as habitam, não é a superficialidade de quem andou nas bocas do mundo, por ser mulher fatal nos braços de muitos, que mais me impressiona. O que, afinal, me atrai, ao ponto de chegar a ferir-me, é a solidão quase inimaginável, para mim, pelo menos, de uma mulher que se pensou como não era, de um ser humano que procurou, quiçá, um encontro em tantos desencontros. Ou de quem sonhou com a satisfação impossível do amor pela conquista,pela sedução ou pelo engano... Ou ainda, talvez, que sei eu disto?, de quem, mesmo nos dias tardios da vida, não se deixou vulnerabilizar, e se quedou fechada. No caso de Virgínia Oldoini, num apartamento oposto ao olhar dos outros por três portas, e ao seu próprio olhar por negras paredes e ausentes espelhos. Lembra-me o inferno, o supremo castigo da incomunicabilidade. Ela morreu um ano antes de eu ter nascido. Há mais de 70 anos. Pouco me falaram dela, talvez por ser conversa aconselhavelmente evitável. Entrou hoje no sossego quase monástico do meu gabinete de trabalho. E, mesmo tão diferente de mim  -  ou tão longe do que eu sinta como gosto meu  -  sentou-se, altiva, hermética, à lareira do meu coração. E, por um qualquer milagre  -  como outros que me surpreenderam e comoveram na vida  -  vi-lhe uma lágrima escorrendo pela face até ao sorriso súbito e breve. Talvez se salve. Que sabemos nós da misericórdia de Deus?". Sou herdeiro e depositário desse álbum. E da misteriosa comoção de Camilo Maria.

Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins

de 19 a  25 de agosto de 2013

 

A leitura da "Peregrinação Interior" de António Alçada Baptista (Moraes, 1971 e Uranus, 1982) permite compreendermos como aconteceu, sobretudo a partir dos anos cinquenta em Portugal, a abertura para a democracia de um campo no qual o Estado Novo tinha procurado e tinha conseguido um apoio estável, o dos meios eclesiais católicos. Desvanecida a sombra negra do anticlericalismo, que marcara a transição do século XIX para o século XX, emergiu o tema da liberdade, do desenvolvimento do pós-guerra e do combate do atraso. A obra é uma ilustração viva desse choque.

 

 

UM CASO MUITO ESPECIAL
António Alçada Baptista representa na história cultural portuguesa um singular exemplo que ora tem sido reduzido injustamente a uma suposta ambição política, ora tem sido alvo de manifesta desatenção relativamente a um real papel de intérprete heterodoxo de uma cultura condicionada pela oscilação entre os mitos de todo o mundo e ninguém. Nada mais enganador do que desvalorizar o seu lugar crucial na preparação da democracia. Vindo de um meio conservador, com fortes raízes na sociedade beirã, sendo destinado a um percurso tradicional de uma advocacia de negócios e influência, depois de uma formação nos jesuítas, António Alçada recusou esse destino, apesar de ter começado por sentir um sucesso possível nos primeiros passos que começou a trilhar. O fim da guerra e a necessidade de abertura cultural e política somou-se às profundas mudanças ditadas pela reconstrução europeia e pelo plano Marshall. Apesar de todas as resistências do Estado Novo, o certo é que os ventos da modernização fizeram-se sentir. As mentalidades, as influências, os debates, os autores, as tendências artísticas, tudo vai mudar no final dos anos quarenta e cinquenta. Há tensões contraditórias que a geração de Alçada Baptista vai interpretar. O reviralho, a partir de 1945, sente uma evidente atração por quem tinha sido a grande aliada dos Estados Unidos para pôr fim ao domínio do «eixo», a União Soviética. Os temas sociais e o chamado neorrealismo vão ocupar um lugar proeminente. Nos Estados Unidos, o «macartismo» e a caça às bruxas criarão um clima intolerável, o que servirá para fortalecer, num primeiro momento, as simpatias intelectuais relativamente às suas vítimas.

 

UM CATÓLICO CRÍTICO
Para um católico com preocupações críticas, os motivos da separação prendiam-se com a confusão de uma cruzada política que acenava com os fantasmas do anticlericalismo que tinham levado, em parte, ao fim da Primeira República. Salazar sobrevivera em 1945 contra as expectativas de alguns, uma vez que a «guerra-fria» evitara a liberalização a sério na Península Ibérica. Mas havia mudanças, e António Alçada cedo começou a compreendê-las – até porque os motivos de desconfiança iam-se acumulando mesmo nos meios conservadores. Os monárquicos perceberam que a hipótese de uma restauração, acenada antes numa base equívoca, tornara-se uma ilusão irrealizável no âmbito da «situação», até por falta de vontade do Presidente do Conselho e dos seus putativos delfins. O caso do Centro Nacional de Cultura, fundado por jovens monárquicos em 1945, é ilustrativo. A evolução no sentido da oposição ao regime correspondeu à soma de fatores complexos e contraditórios – que levaram muitos monárquicos e católicos a aproximar-se dos meios oposicionistas, numa perspetiva moderada ou até radical, o que levaria ao alargamento do campo de ação cultural dos críticos do regime. Há, assim, um forte contraste com o ambiente cultivado por António Ferro nos alvores do regime. Depois de 1945, deixa de haver uma relativa cumplicidade com meios culturais e artísticos… Entretanto, o que Mounier designa como «l’eveil de l’Áfrique noire» começa a fazer-se sentir (a Igreja Católica não podia deixar de estar atenta ao Terceiro Mundo e à autodeterminação dos povos), ao lado da crescente consciência dos problemas sociais e das desigualdades com repercussões pastorais e teológicas. Haveria que denunciar a «desordem estabelecida». Em Portugal, logo em 1945, houve esperança numa abertura. Alguns católicos apostam na democratização através do MUD. Aí encontramos Francisco Veloso, antigo dirigente do Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, onde militara Oliveira Salazar, além do Padre Joaquim Alves Correia, missionário espiritano, de Sebastião José de Carvalho, monárquico liberal, e de José Vieira da Luz. O Padre Abel Varzim fora afastado do lugar de deputado à Assembleia Nacional no final da legislatura de 1938 a 1942, por impossibilidade de ter eficácia nos seus alertas sociais, tendo depois os membros da Liga Operária Católica (LOC) abandonado os postos diretivos dos sindicatos nacionais. Há ecos de que o Padre A. Varzim teria sondado algumas personalidades católicas para a eventual criação de um Partido Democrata-Cristão. Em 1946, o Padre Joaquim Alves Correia é exilado nos Estados Unidos depois de ter publicado no jornal «República» um artigo sobre a «noite sangrenta» de 1921. Entretanto, a publicação do jornal «O Trabalhador», da Ação Católica Operária, é suspensa no mesmo ano. Na campanha eleitoral de 1949, em que concorre o General Norton de Matos contra o Presidente Carmona, um jovem católico, assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, Orlando de Carvalho, afirma: «A Ditadura porque não é um sistema de governo, mas um interregno na vida política normal (…) não tem de pensar em como renovar-se, em como subsistir, mas apenas em como findar e o mais depressa que puder (…). O único critério que até hoje me pareceu suficiente de renovação é o critério do povo, da consulta popular sincera» («Diário Popular», 24.1.49). Em resultado destas declarações, o jovem vê suspenso o seu contrato de segundo assistente na Faculdade. Os sinais são vários. Em 1950, o Padre Abel Varzim organiza em Lisboa o I Congresso dos Homens Católicos, a que assiste o Ministro da Justiça, Manuel Cavaleiro de Ferreira; no entanto, este abandonará os trabalhos em virtude das intervenções críticas, tendo havido pressões, por exemplo, relativamente a José Sebastião Silva Dias, para aligeirar os reparos. Em 1951, Manuel Bidarra de Almeida será afastado da direção da Ação Católica, em virtude de uma intervenção contra a «situação» no Congresso Internacional Católico de Lisboa. Em 1955, o I Congresso da JOC suscita suspeitas e desconfianças, uma vez que o regime teme que Abel Varzim se prepare para fundar o Partido Democrata-Cristão – por isso, a censura recebe orientações para fazer passar despercebida a iniciativa na imprensa. Em 1956, diversos membros da Juventude Universitária Católica (JUC) contestam, em Coimbra e Lisboa, o Decreto-Lei 40.900, de 12 de dezembro, por restringir os direitos das Associações de Estudantes. A denúncia prolongar-se-á, envolvendo o futuro Presidente Geral da JUC, João Bénard da Costa (1957-58) e Carlos Portas, Presidente da Associação de Estudantes de Agronomia e Presidente diocesano da JUC. É o tempo em que o jornal «Encontro» ganha protagonismo crítico – sendo Pedro Tamen chefe de redação e envolvendo Nuno Cardoso Peres (que viria a professar como dominicano, Frei Mateus Peres, O. P.), Cristovam Pavia, Nuno Bragança, Nuno Portas, José Domingos Morais, José Escada e M. S. Lourenço. Este será o grupo que acompanhará Alçada na sua editora.

 

O ABRIR DAS JANELAS CULTURAIS

Pode dizer-se que, a partir do ano emblemático de 1958, António Alçada Baptista deu nos meios culturais (demarcando-se do jacobinismo e do coletivismo), com a Livraria Morais e depois com a revista «O Tempo e o Modo», contributo decisivo para o termo da chamada «frente nacional» de Salazar, do mesmo modo que, nos meios militares, a candidatura presidencial do General Humberto Delgado, antigo símbolo das Forças Armadas fiéis ao regime, e, na Igreja Católica, o memorando do Bispo do Porto dirigido ao Presidente do Conselho. Estava, no fundo, em causa o que afirmaria na «Peregrinação Interior»: «Peço e insisto com os senhores especialistas de povos e planificadores de impérios que não se deem por contentinhos com o trabalho que estão a fazer e peço a todos os incomodados do mundo que não desistam de pensar como é que isto se pode consertar».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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