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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

COM HISTÓRIA E COM MISTÉRIO…

 

Minha tão linda Princesa de mim:

 

Neste ano em que talvez me morra, nesta manhã tão cheia de sol amigo, vejo as primeiras andorinhas de uma primavera que tardou. Estou deitado, pedi que me abrissem as largas janelas do quarto, para te escrever à luz firme de um novo dia cheio de promessas. Sinto a tua mão ausente quentinha na minha. Há quantos anos me disseste, num aconchego assim, que eras a Violaine de "L´Annonce faite à Marie"? E porque seria que te senti então como te sinto agora? Porque percebi  -  ou não percebi de todo, não sei, meu querido amor, não sei nada do mistério das almas delicadas  - que eras a Violaine que, a Mara, que lhe perguntara: "Violaine c´est mal! as tu peur que nous te touchions? Pourquoi nous traites tu ainsi comme des lépreux?" respondia:"  - J´ai fait un voeu... ...Que nul ne me touche. " E porque te ofereci eu então, do mesmo Claudel de que até nem gosto muito, em edição do "Livre de Poche", "Le Soulier de Satin?" Seria o cetim dos teus passos? O silêncio generoso com que me entraste na vida? Uma adivinha de mim? Fui eu quem te escreveu assim: "Dá-me versos,dá-me flores / Põe-nos no meu coração... / E no dia em que lá fores / À campa dos meus amores / Enfeita-a pela tua mão... / Dá-me sorrisos e vinho /  E o fundo do teu olhar... / Vem até mim de mansinho / E verás como adivinho / Os passos do teu andar... / E quantas estrelas tiveres / Guarda-as bem na tua mão: / Que na hora em que vieres / Nessa noite que escolheres / Te veja meu coração!" Será assim ? Volto a Paul Claudel, e medito: "L´ombre m´atteint, mon jour terrestre diminue. / Le passé est passé et l´avenir n´est plus." Cobre-me a sombra, diminui-me a vida. O passado passou e o porvir não ficou. Estou só. Sorrio lendo as duas citações com que Claudel apresenta o seu "Sapato de Cetim": "Deus escreve direito por linhas tortas" (provérbio português); e "Etiam peccata" (Sto. Agostinho). Repetem-se os pecados, mas Deus vai escrevendo... E eu também escrevo, aqui deitado. Pouco mais posso ou sei fazer. Já nem me lembro das minhas longas caminhadas, dos passeios que dava, em passos perdidos que eu não contava para que não tivessem fim. Eram a minha liberdade, o ritmo do meu silêncio ininterrupto. A minha comunhão. O modo de ser eu e estar com tudo, uma procura física da paz. Abria-me ao vento, à chuva, ao sol, enchia-me de ar e mar, tornava enorme a minha pequenez. Era soprado, sentia-me pertencer à vida. Hoje, só numa qualquer peregrinação interior de mim que de mim me tire eu poderei talvez reencontrar essa liberdade de ser,essa paz que é a harmonia de mim com, de mim e... Mas sou tão feio, meu amor, sei que sou horrivelmente feio, tão desamparadamente só! Não tenho alibis, não os gosto, nem os procuro... O inferno de Sartre nunca existiu, o inferno não são os outros, é cada um de nós. Somos nós na prisão de nós mesmos. É a solidão essencial. Assim penso e muitas vezes o disse. Ontem, antes de me recolher, percorri estantes de livros que, ao longo de tantos anos, se foram depositando nesta casa. Entre outros, peguei no "Vaste Monde, Ma Paroisse" do frei Ivo Congar, título que glosa o britânico John Wesley: "I look upon the World as my Parish". Empurrado por uma curiosidade infantil, reli o capítulo "L´Enfer existe, mais il n´est pas celui des diablotins cornus". E a certo passo: "A ontologia do céu é o amor, a comunhão e a acção de graças; a da terra é a possibilidade de livre decisão, é a fé e a esperança, a possibilidade de tudo correr melhor amanhã, a possibilidade da conversão. A ontologia do inferno é a permanência numa vida destituída de significado e esperança. Uma vez mais, Dostoïevsky tem sobre tudo isso páginas de extraordinária profundidade". E cita passos das reflexões do monge Zózimo em "Os Irmãos Karamazov": " O que é o inferno? É o sofrimento de já não poder amar. Uma vez só, na vida infinita que não podemos medir, nem no tempo nem no espaço, foi dada a um ser espiritual, pelo facto de ter aparecido cá em baixo, a possibilidade de dizer : Sou e amo! Uma vez, apenas uma vez, lhe foi dado um instante de amor ativo e vivo, e para isso lhe foi dada a vida terrestre nos seus limites temporais..." "How do I love thee? Let me count the ways. / I love thee to the depth and breadth and height / My soul can reach, when feeling out of sight / For the ends of Being and Ideal Grace." Assim começa um dos "Sonnets from the Portuguese", que Elizabeth Barret Browning escreveu a Robert Browning, seu marido. O próprio título da colectânea ("Sonetos da Portuguesa") é uma referência à autora: Robert chamava carinhosamente a Elizabeth "my little Portuguese", desde que lera o seu poema "Catarina to Camoens". É imenso esse amar assim, com a profundidade, a largueza, a altitude a que a alma pode chegar, até aos confins do Ser e da Graça... John sobreviveu 28 anos a Elizabeth e nunca mais se casou. Usava dizer que tinha o coração em Florença, enterrado com ela. Amou-a sempre. Ainda hoje se amam. No seu "L´amour humain" que as "Éditions Montaigne" publicaram em 1948, o académico Jean Guitton defende que três grandes temas definiram o amor no decurso da História: o platónico, o salomónico e "Tristão". A análise que faz do amor expresso por heróis e heroínas da literatura europeia, a que chama romântico ou romanesco, é a do amor apaixonado e transgressor, cuja genealogia, como apontou Denis de Rougemont (em "L´Amour et l´Occident") se enraíza no mito medievo de Tristão e Isolda. Tem muita erudição, revela um extenso e sólido conhecimento da filosofia e literatura ocidentais. Peca, a meu ver, por alguma precipitação moralizadora... Pela mesma preocupação com chegar depressa ao santuário, Guitton, cotejando "O Banquete" com o "Cântico dos Cânticos", lhes vai empurrando o desenvolvimento até à epístola aos Efésios, em que S. Paulo afirma que o amor humano comunga no mistério do amor de Cristo e da Igreja, de Deus e dos homens. Mas diz bem quando observa que "Platão não se interessa tanto pelo amor como pelas vibrações que o amor produz, na alma, ao socorro que o fervor oferece às aspirações do espírito. O amor é o meio do êxtase, uma espécie de intermediário, ou, como ele diz, um "demónio" que assegura a subida para o inteligível. Nessa perspetiva, ser amado não é senão uma ocasião e um excitante com vista a atingir um contentamento onde já não é necessário que permaneça, onde isso até é inoportuno, porque a sua experiência sensível viria perturbar o êxtase. É uma centelha que suscita um fogo que depois se sustenta de si próprio. Compreende-se que Platão não tivesse dado grande atenção à qualidade do indivíduo que vai suscitar o amor. O ser amado só existe para ser incessantemente ultrapassado; e se chamamos dialéctica a um processo que só atinge para ultrapassar, podemos dizer que o amor platónico é a própria dialéctica: devemos passar do amor dos belos corpos ao das almas belas, do amor das belas almas ao do Bem supremo, que não tem forma..." A menos que, lembrados do verso cruel de Ovídio ("nec sine te nec tecum vivere possum") nos aturemos na terra, conforme as nossas capacidades e circunstâncias. Dizer ao ser amado  -  ou pensar com ele  -  que "nem sem ti nem contigo posso viver" é prova de sabedoria: cá em baixo, o amor-perfeito é uma bela flor. Frágil. O outro, o amor humano, será perfeito quando Deus quiser. Se os amantes deixarem. Ouço o sino meridional da aldeia, lá longe, tocar o "angelus". É uma promessa". Esta foi a última carta de Camilo Maria à sua Princesa. Não estava no maço que esta entregou com o pedido de algum expurgo e publicação, que tenho respeitado e levarei a termo. O Marquês de Sarolea escrevia muito, comunicava mesmo quando não enviava os seus escritos. Tenho aqui muitas cartas que a Princesa não terá lido. A que acima traduzi, lia-a ela ainda anos depois da morte do remetente. Apanharam-na, do seu regaço, as criadas que, ao levarem-lhe o chá, a encontraram, direita na sua cadeira de braços, serenamente morta, em florida tarde de primavera.

  

Camilo Martins de Oliveira