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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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DE PROFUNDIS…

 

"Minha Princesa de mim:

 

Não te tenho escrito, talvez por mágoa. Nada tenho contra ti, nem nunca terei. Mas sofro a dor do teu silêncio cruel, porque voluntário e premeditado. Diabolizas-me, tornas-me personificação do mal, mas deverás saber, no fundo mais sólido do teu coração, que jamais desejei o menor mal fosse a quem fosse. Quero  bem a todos, a começar pelo bem da luz que nos liberta das trevas  -  a tal que levou o homem primitivo a adorar o sol e inventar o fogo em que se guardaria da noite. Não pretendo ter razão, falo, discuto, debato, com a gana de um troglodita que esfregava pedras para criar faísca. Pensarmos é o nosso modo obrigatório de termos consciência no tempo mutante. E é sempre, também, o início da comunicação, da comunhão com os outros. O diálogo é pensamento expresso e silêncio expectante do pensamento do outro. E por aí fora. Aliás, a própria mística é o pensamento que procura escutar Deus. Em silêncio. Eis o que os apologetas apressados, os falsos pregadores, não entendem: o silêncio como escuta. Tal como os desconfiados, muitas vezes, preferem calar-se. Hoje, aliviado momentaneamente das dores que me limitam o movimento físico, fui buscar,  às prateleiras altas destas estantes cheias de livros e pó, uns álbuns de fotografias antigas que a tua irmã carinhosamente guardava. Entre elas, achei várias da "divina condessa"  -  tão parecida com ela, fisicamente. Virão as parecenças do ramo florentino da família, os Lamporecchi, mas entre a nossa G. e a Virginia Oldoini, condessa de Castiglione, não há outra semelhança. A G. poderia ser enérgica, impositiva, autoritária até, mas era esquecida de si, procurava o serviço dos outros e não olhava para o espelho. A condessa era narcisa. Foi muito bela, desde muito cedo soube que o era, muito tarde se deu conta de que a beleza física é um episódio. Tinha 41 anos quando, vivendo então em Paris, se encerrou num apartamento na Place Vendôme, protegido do exterior por três portas de entrada, e no interior pintado muito de preto, sem espelhos nem vidros reflectores. Até então, tivera inúmeros amantes, pelo gosto inato de exercer o poder da sua sedução. Um deles foi Napoleão III, diz-se que por ter sido enviada por outro dos nossos Camillo, o Cavour, primeiro-ministro de Vittorio Emanuele, rei do Piemonte, para aliciar o imperador dos franceses para a causa do "risorgimento" de Itália contra os Habsburgos... Teria então 19 anos, estava casada havia dois, era mãe de Giorgio, com um. As fotografias que a tua irmã guardou mostram-na, sempre em estúdio, ou quase sempre, personificando heroínas e mitos, com uma presença e uma intensidade dramática que me lembrou a Callas, de que tanto gosto. Poderá ser mais bela e pura e certa a voz da Renata Tebaldi, mas a Callas tem... esse não-sei-quê, que mexe connosco! A nossa "divina condessa"  -  assim a conheciam admiradores e amantes  -  para mim, de divino pouco tinha, de condessa o título do marido atraiçoadíssimo que a adorava, de marquesa o título dos pais, quando menina. Não será pessoa de que uma família conservadora e católica se possa orgulhar muito... Não é, de modo algum, o "meu género". E, todavia, ao olhar para estas fotografias, com as loucuras que as habitam, não é a superficialidade de quem andou nas bocas do mundo, por ser mulher fatal nos braços de muitos, que mais me impressiona. O que, afinal, me atrai, ao ponto de chegar a ferir-me, é a solidão quase inimaginável, para mim, pelo menos, de uma mulher que se pensou como não era, de um ser humano que procurou, quiçá, um encontro em tantos desencontros. Ou de quem sonhou com a satisfação impossível do amor pela conquista,pela sedução ou pelo engano... Ou ainda, talvez, que sei eu disto?, de quem, mesmo nos dias tardios da vida, não se deixou vulnerabilizar, e se quedou fechada. No caso de Virgínia Oldoini, num apartamento oposto ao olhar dos outros por três portas, e ao seu próprio olhar por negras paredes e ausentes espelhos. Lembra-me o inferno, o supremo castigo da incomunicabilidade. Ela morreu um ano antes de eu ter nascido. Há mais de 70 anos. Pouco me falaram dela, talvez por ser conversa aconselhavelmente evitável. Entrou hoje no sossego quase monástico do meu gabinete de trabalho. E, mesmo tão diferente de mim  -  ou tão longe do que eu sinta como gosto meu  -  sentou-se, altiva, hermética, à lareira do meu coração. E, por um qualquer milagre  -  como outros que me surpreenderam e comoveram na vida  -  vi-lhe uma lágrima escorrendo pela face até ao sorriso súbito e breve. Talvez se salve. Que sabemos nós da misericórdia de Deus?". Sou herdeiro e depositário desse álbum. E da misteriosa comoção de Camilo Maria.

Camilo Martins de Oliveira