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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM DOM MUITO PURO…

 

Alteza Altíssima:

 

Estou novamente em Paris, conto desta vez com a companhia do Alberto, que veio a negócios. Gosto dele, da sua grande alegria de viver, como dessa melancolia tão portuguesa que sempre me lembra o cair da tarde em dias sem vento, no fim do Verão. Falei-lhe de ti, de como me habitas o coração, com a insistência que tão bem diz esse verso do Rilke: "Wie soll Ich meine Seele halten dass Sie nicht an deine rührt?"E ele logo veio com um sentimento português: "Saudade...sabes o que é a saudade? Escuta:" Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe...  ...Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha." Assim escreveu Bernardim Ribeiro, no século XVI. Já no século XIII, reza uma crónica que um frade dominicano, de regresso ao seu convento no alto de Montejunto, se lembrou da água pura que ali o saciara e "sentiu grande soledade daquela água"... É isso a saudade: é estar sozinho de alguém, e a solidão só se sente quando uma presença não nos larga." Sejamos ambos portugueses, pelo tempo deste segredo que te digo: sinto grande saudade de ti, porque me habitas. Pensossinto-te fora do tempo, do lugar e da memória. És. Assim descubro que te amo essencialmente. Não te pensossinto em função da beleza, da idade, do teu modo de ser ou da tua história. Mas tão só pela ternura que me descobriste imensa e me inunda. Para mim és, todos os dias, o amor que desperta, a alegria intensa e inesperada da revelação. "É no invisível que se produz o essencial", disse Jacques Maritain sobre a sua relação com Raïssa, mulher da sua vida, mesmo depois de morta, com quem se casou aos vinte anos e se converteu ao catolicismo. Com quem viveu sempre uma intimidade em que se confundiam, mesmo   - ainda ou talvez mais  -  depois de se terem feito voto de castidade. Penso muitas vezes neles, quando me lembro de nós e deste amor a que a renúncia dá uma dimensão intangível. Mas tenho pensado nos Maritain, também pela necessidade que senti de algum regresso a S.Tomás de Aquino. Quem os acompanhou na escalada espiritual e intelectual da conversão foi um dominicano, francês e monárquico, o padre Clérissac, que mereceu de Raïssa esta referência tão sentida e tão bonita: "Caiu sobre nós, e recebemo-lo  -  o Jacques e eu  -  o olhar estrelado e penetrante de dois olhos profundos, cheios de segredo e de conhecimento, e diante desses olhos nos sentimos totalmente novos e totalmente ignorantes". Todos os dias peço a Deus que refaça em mim essa alegria de me sentir novo por me saber ignorante e querer aprender. Seguindo o conselho do padre Clérissac quando sugeriu a Summa Theologica para aproximação racional dos Maritain à fé que procuravam: "Não andemos mais depressa do que Deus. É da nossa sede e do nosso vazio que Ele precisa,não da nossa plenitude". Curiosamente, é a judia Raïssa que entrará primeiro por S.Tomás: "Esta primeira leitura da Suma Teológica foi para mim um dom muito puro. Recebi, uma vez por todas, a certeza das verdades primeiras acerca da inteligência, e a alegria de ver esta suficientemente forte para conduzir até ao seio da noite estrelada da fé os princípios da razão. Recebia o que podia receber segundo a minha fraca capacidade, mas com plenitude. Os problemas tinham desaparecido  -  como acontece no tempo da felicidade  - para reaparecerem mais tarde. Mas mais tarde não me caberia, a mim, aplicar-me, mas ao Jacques, filósofo por vocação...Recordo o meu primeiro encontro com o casal e Vera, a irmã de Raïssa, que compunha aquela comunidade monástico-familiar a três. Tinha eu vinte e poucos anos, e embasbacava perante aquela gente cheia de rigor tomista e misticismo religioso, mas que acompanhava Satie e Stravinsky, Diaghilev e Rouault, e era amiga de Cocteau e Chagal. Voltei a vê-los, quase trinta anos depois, já Jacques Maritain terminara a sua missão de embaixador de França junto da Santa Sé, em Paris, precisamente com o Stravinsky e o Cocteau, por ocasião dum Oedipus Rex no Théâtre des Champs Élysées. A Raïssa, como sabes, era de origem russa, Oumançoff era o seu apeldido de solteira. Quando, muito novinha ainda, iniciara os seus estudos em Mariopol, junto ao Mar Negro, interessou-se muito pela literatura russa. Foi ela quem, pela primeira vez, me falou de Pushkin. E, por ser melómana, me referiu as óperas russas cujos libretos se inspiraram em obras do grande poeta, aliás com os mesmos títulos: "A Dama de Espadas" e "Eugénio Oneguin" de Tchaikovsky, "Boris Goudonov" de Mussorgsky. Através de conhecidos do Alberto, pudémos assistir a ensaios desta, na Salle Wagram, sob a direção de André Cluytens, com o Boris Christoff e o coro dos seus compatriotas búlgaros da Ópera Nacional de Sofia. Como sabes, esta ópera tem seis versões musicais: duas do próprio compositor, duas do Rimsky-Korsakoff, uma do Shostakovitch e ainda outra arranjada por dois americanos para o MET. Ouvimos a segunda versão do Rimsky, que é a mais repetida. Voltei a lembrar-me de Shakespeare  -  que Pushkin muito admirava  -  não só pelo modo de composição do drama em sucessivos quadros (ou cenas) como em "Macbeth", mas pela história contada que,mesmo com fundamento na "História do Império Russo" de Nikolai Karamzin, é muito semelhante à de "King Richard the Third" do dramaturgo inglês. Lembras-te de termos assistido, em Londres, a um inesquecível Ricardo III pelo Lawrence Oliver? Claro que te lembras,porque é mesmo inesquecível! Deixo-te esse monólogo do rei que vai morrer: "What do I fear? Myself? There´s none else by. / Richard loves Richard; that is, I am I. / Is there a murderer here? No - yes , I am. Then fly. What,from myself? Great reason why - / Lest I revenge. What,myself upon myself!”. Continuo, mas traduzindo, sem cuidados de rimas, métricas ou tónicas. Só pela força do texto, porque, fraco embora, sei que a maravilha do espírito é não ter dono. "Com pena me amo. Por que razão? Por algum bem que eu mesmo a mim me tenha feito? Ai, não! Infelizmente, antes mais me detesto pelos odiosos feitos que eu mesmo cometi! Sou um vilão; e ainda minto, não sou. Tolo, de ti falas bem. Tolo, não te vanglories. A minha consciência tinha milhares de línguas diversas, e cada língua em si traz ditos diferentes, e cada dito me condena como vilão. Perjúrio, perjúrio ao mais alto grau; assassínio, impiedoso assassínio, ao nível mais sujo; todos pecado, todos a cada passo cometidos, juntos na barreira, todos gritando ´Culpado! culpado!´ Desespero. Nenhuma criatura me ama; e se morrer nenhuma alma terá piedade de mim: e porque haveriam de ter, já que eu mesmo em mim não tenho piedade para mim?". Boris Goudonov, no fim, ainda suplica perdão... Talvez por virtude desse cristianismo ortodoxo que tanto acredita na intercessão do povo fiel, dos monges, dos santos e dos anjos. Aqui tens, minha Renúncia de mim, nascida, como Vénus, deusa do amor, do mar de contradições e paradoxos da vida, a diferença entre tormento e sofrimento: tormento é tormenta, tempestade, revolução, morte, incomunicabilidade; o sofrimento é paixão e compaixão, aceita-se como semente que germina. Aqui, no Georges V, fazem-me sempre o favor de instalarem um gira-discos no meu quarto. Talvez adormeça, mas vou ouvindo a "Paixão segundo S.Mateus" de Bach. Sei que dormirei em paz, porque, no fundo do meu coração, sempre trémulo e fiel, ficarei escutando esse paradoxo inicial da nossa condição humana. E que Deus nos veja, pois mais não posso."  Confesso que hesitei em publicar esta carta de Camilo Maria. Outras tenho traduzidas, e também não sei...

 

Camilo Martins de Oliveira