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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

RETOMANDO O FIO DE ARIANA…

 

"Meu Marquês de quem...

 

De quem não sei. Talvez de mim, ou de mim também. Dás-te, deste-te, eu sei-o bem e sinto-o muito. Há em ti essa força misteriosa, uma ternura imensa que não se explica, uma fidelidade de anos, um carinho atento a cada momento da minha vida. Mas há também o universo do teu ser, e uma afirmação de ti em tudo. Muitas vezes repetiste esse dito do nosso Alberto: "Prefiro perder um "bom" amigo a uma boa piada!" E explicavas: "se o amigo for mesmo bom, saberá sempre apreciar a boa piada..." Tenho este problema contigo: aceito mal que alguem se esqueça da minha sensibilidade a certos temas... Que te custa a ti aceitar-me sensivelmente diferente? Custa-te assim tanto perceber que o que afirmas do "alto da tua cátedra" me pode ofender ou ferir, mesmo que não seja eu visada? Será assim tão difícil, para ti, compreenderes as minhas hesitações entre o amor maior que te tenho e as fidelidades a escrúpulos ou considerações pessoais que também são minhas? Sou mulher, não te esqueças, e habituei-me a viver as coisas nas tarefas quotidianas, no horizonte que os gestos de cada dia vão abrindo. Encontrei em ti um sonho e, contigo, uma misteriosa intimidade. Não foi, nem é quimera. É simultaneamente uma alegria imensa, etérea e rica, e um peso duro, grave e sóbrio. Ao dizer isto, dão-me ganas de apagar o que escrevi agora, porque pensossinto (como dizes) que tu mesmo o poderias dizer de igual maneira. Sei que o dirias. E não quero! Ou talvez queira,não sei. Estendi-te um dia a minha mão vazia...e fiquei com ela cheia da tua! Até à morte. Serei para ti a Violaine de "L´Annonce faite à Marie", virgem desde e para sempre. Mas poderia ser outra mulher qualquer: sei que,no teu coração, há uma lareira para mim e, apesar de não seres lusitano, "dois braços à minha espera", como na casa portuguesa da Amália Rodrigues. Talvez por isso, pelo gosto do teu acolhimento, eu te perdoe tanto: as tuas irritações, que não são contra mim mas me magoam, o teu desprezo aristocrático pela insanidade do mundo. Terás muitas vezes razão, mas não consigo dizer-te que a reconheço. Sou mulher e quero paz. Quero esse repouso que as mães querem sentir quando um menino cresce no seu seio... Como te quis e te quero ainda tanto: não como coisa minha  -  tu nunca serás de ninguém  - mas como o amigo fidelíssimo que, por divino ou humano capricho, Deus me deu. Vês? Digo divino ou humano, porque uma mulher nem sempre diferencia um do outro: estamos na origem da vida, com um mistério que é só sensivelmente nosso. Tens ainda muito a aprender, Camilo Maria, se calhar, até coisas que me ensinaste  -  ou que aprendi contigo  - mas que terás de ver por outro prisma. Eu sei que as tuas perspectivas são sempre caleidoscópicas. Talvez por isso tenhas tanta dificuldade em te fixares numa. Gostei e gosto dessa variedade de olhares. E quando os partilhei contigo, é verdade que, para mim, enriqueceste o mundo. Mas serás tu capaz de calçar umas pantufas mentais, de te sentares comigo à lareira do coração, e de procurares, seguindo o meu, projetar o teu olhar por outro lado? Camilito, serás capaz, sequer, de perceber o que te digo agora? Ao fazer-te esta pergunta, já respondi: acho que sim, que és capaz de tudo. És como comida ao lume: enquanto se cozinha há que estar atento,não vá ferver demais. Se soubesse a que temperatura ferves,tinha-me casado contigo. Ou talvez estejamos já casados. Não sei. E assim me despeço: contigo, nunca sei nada. Ou saberei tudo: todas as manhãs sinto o meu coração maior, pela imensa ternura que, por ti, o alarga tanto. E sei que, deste ou do outro lado do mundo, há uma fidelidade amiga e íntima que responde há minha. Hesito entre o desejo furioso de te dar uma sova desmedida e o gesto manso de te dar a paz. Fica em paz." Este bilhete da Princesa de... é dos poucos que o Marquês de Sarolea guardou. Por isso me pareceu que poderia traduzi-lo e publicá-lo. Não sei se faço bem. Pessoalmente, sempre tive alguma dificuldade em perceber as mulheres. Pretendem ter  -  e talvez tenham  -  razão em tudo.

  
Camilo Martins de Oliveira

João de Deus: o pedagogo.


 

A Cartilha Maternal

Este systema funda-se na língua viva. Não apresenta os seis ou oito abecedários do costume, senão um, do typo mais frequente, e não todo mas por partes, indo logo combinando esses elementos conhecidos em palavras que se digam, que se ouçam, que se intendam, que se expliquem; de modo que, em vez do principiante apurar a paciência numa repetição banal, se familiarisa com as letras e os seus valores na leitura animada de palavras intelligiveis.

Assim ficamos livres do syllabario, em cuja interminável serie de combinações mecânicas não há penetrar uma idéa !

 

PRIMEIRA LIÇÃO

Ora a verdadeira palavra do homem é a palavra escrita, porque só ella é immortal.

(…)e podeis lisongear o alumno (… )o muito que elle já sabe (…)acabais de confirmar que as vogaes, nesses cinco elementos são a alma da escrita e da leitura.


                                   Ai

                                 UI

                           EU    IA

 


Teresa Vieira

Agosto 2013

FERNANDO AMADO NAS ORIGENS DO CNC

Fernando Amado
Isabel Ruth, Fernando Amado, Manuela de Freitas e Glória de Matos | CNC, 1960


Já aqui temos referido a participação de Fernando Amado em ações e iniciativas do Centro Nacional de Cultura - e isto, na pluralidade de interesses e áreas de intervenção cultural e cívica que o Centro, por um lado, e Fernando Amado, por outro, ao longo de dezenas de anos desenvolveram e desempenharam em comum.


Ora, na edição das Peças de Teatro (NCM - 2000) organizada por Teresa Amado e Vítor Silva Tavares, encontramos um levantamento exaustivo da intervenção de Fernando Amado como dramaturgo, encenador e animador teatral: e verificamos como grande parte dessa ação notável passa pelo CNC.

E isto, desde muito concretamente 1946. Nesse ano, em 16 de junho, Fernando Amado estreia-se como autor-encenador, produzindo no velho Teatro do Ginásio até 30 de maio de 1947, seis espetáculos no âmbito do então recém-criado (1945) CNC: "O Meu Amigo Barroso", "Música na Igreja", "O Ladrão", "Novo Mundo" e "A Caixa de Pandora". A seu tempo iremos analisá-las.

E é interessante recordar alguns dos nomes que colaboraram nessas produções, e desde logo Carlos Botelho, António Dacosta e António Lino como cenógrafos e figurinistas, mas também, como jovens e insólitos atores, alem do próprio Fernando Amado, Maria da Soledade Freire de Oliveira, Margarida Perestrelo Castro, Ricardina Alberty, Rui Cinatti, Afonso Botelho, Vasco Futcher Pereira, Gastão da Cunha Ferreira, Flórido Vasconcelos, Martim Lencastre Cabral, Maria José Meneres de Castro… Ora, destes nomes, a maioria marcou, e muito, a cultura e a vida pública portuguesa até hoje!


Mas agora refira-se que a colaboração dramatúrgica de Fernando Amado com o CNC recomeça, ao nível da produção de espetáculos, em 1960, com cinco produções: "Antes de Começar", do próprio autor-encenador, "O Contrato" de Marinetti, "Passadismo" de Stinelli, "Génio e Cultura" de Boccioni, "O Marinheiro" de Fernando Pessoa (encenado também no Brasil em 1962) e, mais tarde, "O Morgado de Fafe em Lisboa", de Camilo Castelo Branco.

E a partir de 1963 essa colaboração com o CNC reforça-se e estabiliza com a criação da Casa da Comédia e a produção de sucessivos espetáculos, quase todos de autores portugueses (Gil Vicente, Pascoaes, o próprio Fernando Amado, e ainda Soror Juana  Ines de La Cruz / Manuel Bandeira ou Jean Cocteau) mas sobretudo Almada, com a reposição do "Antes de Começar" e sobretudo, insista-se na expressão, com a revelação do "Deseja-se Mulher" (1963), dirigido por Fernando Amado. Já aqui falamos dessa grande peça.

DUARTE IVO CRUZ 

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI…

 

Minha Princesa de mim:

 

Prolongo esta estadia em Viena, "noblesse oblige". Mas também me dá tempo para voltar à ópera, desta vez na Grosses Spielhaus, em Salzburg. Ontem, tive uma "Salomé", do Richard Strauss, dirigida pelo Karajan. Valeu muito mais pela música e pela direcção nervosa do maestro do que pela encenação. De certo modo, o Herbert von Karajan parece ser feito para esta "Salomé" que, aliás, dirigiu pela primeira vez há quase meio século, tinha ele 21 anos, e eu poucos mais. Então, como agora, tremi naquele monólogo final da filha de Herodíades, dirigindo-se à cabeça cortada de S. João Baptista : "Ah! Ich habe deinen Mund geküsst, Jochanaan!" Beijei a tua boca e os teus lábios tinham um sabor amargo... Seria o gosto do sangue? Não! Talvez fosse o gosto do amor, dizem que o amor tem um sabor amargo. Hoje, aproveito a minha folga da noite para ficar no quarto do Hotel Sacher a ler as notas do programa e o libreto. E sou recordado do drama de Oscar Wilde que inspirou a trama da ópera, e da sua relação ao poema "Hérodiade" do Mallarmé e ao "À Rebours" do Huysmans, onde se descrevem duas pinturas do Gustave Moreau: uma representando a dança dos sete véus  -  a que Strauss dedica, na partitura, uma suite para orquestra que durará cerca de dez minutos  -  e outra intitulada "L´Apparition", em que a Salomé, vinda do Evangelho de S. Mateus, ganha novas proporções: "Ici, elle était vraiment fille; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia,mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais delicada; despertava mais energicamente os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domava com mais segurança as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em solos sacrílegos, cultivada em estufas ímpias" . E Óscar Wilde, achando demasiado dócil a Salomé das escrituras, dirá que será por isso que os séculos seguintes foram depositando a seus pés sonhos e visões que a convertessem na "cardinal flower of the perverse garden"... Assim me ocorreu a tese do Jean Guitton, de que já te falei, sobre o tema do amor na literatura, a transgressão de Tristão e Isolda divinizada pela tradição romântica ou romanesca. Finalmente, talvez pela evocação de Huysmans ou de Mallarmé (já verás porquê), chego ao Tolstoi de "O que é a arte?", que vou lendo agora. Confesso que é bem possível que este encontro se deva a ti, que me habitas o pensamento e o coração e comigo percorres estas divagações... Foste tu quem me sugeriu esta visita a Tolstoi. Para ele, o apagamento da consciência religiosa e a perda da fé nas classes mais altas da sociedade europeia, em conjugação com a separação entre a arte que lhes dá prazer e a tradição da arte popular,reduziram a emoção estética ou artística a três sentimentos básicos e pobres: orgulho, desejo sexual e tédio da vida. O sentimento do orgulho surge na Renascença, com a arte paga pelos ricos feita em seu próprio louvor e enaltecimento; depois veio a exaltação da carne como motor da produção artística e literária; finalmente, o cansaço de tudo isso, o tédio de viver. E nessa viragem do século XIX para o XX  -  em que, quiçá?, as filosofias de Nietzsche e Schopenhauer serão já proféticas do orgulho, do pessimismo, do medo e da destruição resultante  -  o Leão russo ruge e zanga-se com os literatos (sobretudo franceses), Mallarmé e Huysmans, Baudelaire e Verlaine, Zola, etc... Com os compositores, desde a última fase de Beethoven ao Richard Strauss, passando por Wagner, Brahms e Liszt... Para ele, tudo lhe parece pornografia e decadentismo, bem longe do que foram as obras de Goethe, Schiller, Victor Hugo, Dickens, Mozart, Bach, Chopin, da Vinci, Rafael ou Miguel Ângelo... muito embora morda nalgumas dessas ou encontre a desculpa de que as massas populares não as teriam sempre entendido por estarem deficientemente educadas! Subjacente a esta raiva crítica está a inspiração evangélica e a profunda solidariedade humana do desejo tolstoiano de um mundo novo. Será utópico, talvez risível. Mas vindo de um aristocrata russo que morreu sete anos antes da revolução de 1917  -  curiosamente, em 1910, quando Sir Thomas Beecham dirigiu, no Covent Garden de Londres, a "première" da "Salomé" de Strauss  - tem ela, pelo menos, o mérito de nos incomodar... Nós que, diletantemente, nos entregamos ao gozo privilegiado de tanta literatura, espetáculo e artes plásticas, que o dinheiro paga para nosso bel-prazer, e não nos apercebemos de como a celebração de novidades, efemérides ou gostos raros  -  tal como certas prácticas e ritos bacocos de pietismos em que pretendemos encerrar, para consumo próprio, a grandiosidade generosa e abundante do divino  - nos afastam dos outros e nos reduzem. A arte, em todas as suas formas e manifestações, deve ser uma procura  -  simultâneamente dolorosa e alegre, como um parto  -  da comunicação. É partilha. Leio contigo este passo de "O que é a arte?" de Tolstoi: "Em consequência da descrença das pessoas das classes altas, a arte dessas pessoas tornou-se pobre em conteúdo. Mas, além disso, tornando-se cada vez mais exclusiva, tornou-se por esse motivo mais complicada, extravagante e obscura. Quando um artista do povo  -  como eram os artistas gregos e os profetas hebreus  -  criava a sua obra procurava evidentemente dizer aquilo que tinha para dizer de maneira a que a obra dele fosse compreeendida por todas as pessoas. No entanto, quando o artista criava para um pequeno círculo de pessoas que viviam em condições excecionais, ou até para um indivíduo e os seus cortesãos, para um papa, um cardeal, um rei, um duque, uma rainha, uma amante do rei, empenhava-se naturalmente em produzir efeito apenas sobre essas pessoas que lhe eram conhecidas e que viviam em condições que também lhe eram conhecidas. Este método mais fácil de despertar sentimentos conduzia involuntariamente o artista a expressar-se por alusões incompreensíveis para todos a não ser para os iniciados..." (Tradução do russo por Ekaterina Kucheruk, para a Gradiva). Sem concordar com todos os pressupostos da análise de Tolstoi, confesso que, muitas vezes,                    até a simples leitura de crónicas ou resenhas críticas publicadas nos jornais me causa o desconforto de me sentir metido numa conversa que não me diz respeito. E é verdade que os círculos artísticos e literários tendem a produzir linguagens e modos herméticos e "sectários". Um pouco como aqueles adolescentes que se reunem na zona de Shibuya, em Tokyo, e falam entre si um "japonês" inacessível até para seus pais... Não creio que a arte possa ou deva ser elitista e exclusiva. Antes penso que a arte é a procura da perfeição, de modo a que a expressão do belo se torne numa mensagem universal, comunicante e libertadora. O artista não impõe nem define. Desperta. Nesse sentido a obra de arte é, como a graça de Deus, um apelo, uma chamada. Quem contempla uma gravura ou escuta uma sonata não sentirá exactamente o impulso ou a ideia do autor,mas é pela obra deste libertado para o sentimento ou a contemplação de uma perfeição sempre imperfeita, porque sempre procurada. Volto ao nosso Ortega y Gasset: "El hombre es un trânsfuga de la naturaleza". Somos viandantes, precisamos de estrelas. E para as vermos, temos de olhar para cima. A importância da educação literária, musical e artística é esse convite a olhar para cima. E, também, a de ensinar que a busca da perfeição das coisas e das belezas do espírito é  - como o amor e a ternura  -  difícil. Nesse sentido, o artista, como artesão, é um asceta. Um canteiro de flores ou uma horta bem cultivada,tal como uma mesa ou uma ponte bem construídas,ou um saboroso almoço, são obras de arte também. Feitas pelo trabalho dos homens,sujeito ao gosto e à disciplina de fazer melhor. Vou buscar ao "Pour une Théologie du Travail" do Padre Marie-Dominique Chenu um texto do teólogo oriental São Máximo (morto em 668) que o teólogo dominicano apresenta assim: "Ao contrário dos Padres latinos, que, sobretudo com Santo Agostinho, se agarraram à interioridade do homem contra as dispersões do mundo exterior, os Gregos prestavam grande atenção à relação do homem com a natureza. Retomando um dos grandes temas antropológicos da Antiguidade, definiam o homem como um "microcosmos": o homem recapitula em si os elementos e os valores do cosmos; recapitula-os estaticamente, no cimo de todas as naturezas; recapitula-os, graças a essa comunhão física e vital, dinamicamente, numa escalada hierárquica para a Unidade suprema." Minha Princesa: eu diria, do artista, isto que São Máximo aqui diz do homem: "O homem é uma oficina viva, em permanente continuidade de acção,em todos os seres. Através das realidades mais diferentes e segundo toda a sua diversidade,ele é, por si mesmo e em natureza, no bem e na beleza,segundo a génese de cada ser, o artesão da unificação delas... ...Essa potência unificadora, exercendo-se na causalidade do devir desses diversos seres, revela, cumprindo-o, o grande mistério do plano divino; porque determina harmoniosamente a coerência mútua dos seres opostos, dos mais próximos aos mais longínquos, dos menores aos maiores, e assim os conduz por um regresso progressivo à sua unidade em Deus...” Nas suas viagens pelo mundo, Camilo Maria, além de uma maleta de cabine em que levava alguma leitura e papel para escrever, e da mala da roupa, tinha sempre outra, mais pesada, cheia de livros. Quando lhe perguntavam o que nela trazia, invariavelmente respondia: "É a minha maquilhagem!"

 

 

Camilo Martins de Oliveira.

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins

de 12 a 18 de agosto de 2013

 

O último número de "Le Magazine Littéraire" (agosto de 2013) é dedicado a "Dez grandes vozes da literatura estrangeira". A revista apresenta um dossiê onde se fala dos autores mundiais de referência. Lídia Jorge é um dos autores em destaque, com presença na capa.


 

 

AS CULTURAS DA LÍNGUA PORTUGUESA
As culturas da língua portuguesa afirmam-se um pouco por toda a parte, pela sua diversidade e projeção universalista. E, naturalmente, as literaturas que se desenvolvem neste campo suscitam atenções. Há uma criatividade multifacetada. A vida, o sonho, os encontros e desencontros, a ironia e a tragédia coexistem. Há pouco, isso foi salientado, quando Mia Couto obteve o Prémio Camões. E pode dizer-se que vivemos uma circunstância em que Portugal, o Brasil, Moçambique, Angola e as diversas expressões culturais e literárias da língua comum merecem interesse e curiosidade – e, mais do que tudo, reconhecimento. As letras estão vivas, o espírito exprime-se. Recusando qualquer lógica paternalista (e todos nos lembramos dos bons alertas lançados por António Tabucchi), a verdade é que há várias culturas da língua portuguesa, que se afirmam na sua heterogeneidade e aí está a sua força. A vida literária recebe esse influxo criativo, que tem de ser compreendido como um valor capaz de suscitar vários caminhos e múltiplas formas de significar as identidades, como realidades complexas e abertas.

 

A ESCRITA DE LÍDIA JORGE
No citado número de «Le Magazine Littéraire», Maria Graciete Besse salienta, com inteira justiça, que «a escrita de Lídia Jorge se caracteriza por um movimento de disseminação que faz evoluir o leitor através de uma notável experiência do tempo quebrado. Com efeito, o estudo da configuração temporal nas suas narrativas revela amiúde a invenção de um modo de narração não linear que, longe de abolir o tempo, condensa-o em poesia e espessura. Toda a sua obra distingue-se pela articulação sustentada do sensível e do inteligível, o que permite reconfigurar a experiência temporal e transmitir uma maior compreensão do mundo, graças à representação axiológica das experiências humanas». Aqui está, de um modo sintético, o que podemos encontrar num percurso intelectual e literário feito com muita segurança e grande seriedade, pondo o talento ao serviço do espírito. Para mim, «O Dia dos Prodígios» foi a primeira revelação, porque, como tenho dito, reencontrei aí a minha infância, o imaginário das gerações e a força das raízes da terra. «Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave»… E assim foi. E eu sei que Vilamaninhos só existe nos nossos sonhos… Ao lado de Lídia Jorge estão nesta escolha: Zadie Smith (1975), autora britânica, cronista da mestiçagem londrina; Richard Powers (1957), escritor norte-americano de Ilinois que se interroga sobre a tensão que o progresso sempre comporta entre o passado e o futuro; Mo Yan (1955), romancista chinês, prémio Nobel da Literatura (2012), em busca das raízes da sua cultura antiga; Alice Munro (1931), uma canadiana que faz da narrativa a procura dos enigmas através de parábolas; Orhan Pamuk (1952), prémio Nobel da Literatura (2006), extraordinário cronista da cidade de Istambul e um dos mais fecundos escritores contemporâneos; Laura Kasischke (1961), do Michigan, uma fascinante autora para quem o tédio se combate com o fantástico; Enrique Vila-Matas, escritor catalão sobre quem se disse (e bem) que é um cultor da geografia da vertigem; John Irving (1942), um veterano norte-americano, para quem a intriga é a matéria-prima do romance, na tradição dos clássicos, do movimento dramático de Shakespeare à circunspeção de Ibsen, segundo uma educação literária que salta do século XIX para o XXI; e há ainda Arnaldur Indridason (1961), um islandês inesperado, cultor absoluto dos acontecimentos banais, para compreender a substância de que é feita a vida.

 

NOMES DE PRIMEIRA QUALIDADE
Os nomes todos são de primeira qualidade. Lídia Jorge está em muito boa companhia e com inteira justiça. Maria Graciete Besse acrescenta: Mesmo se não tem intenção política, religiosa ou filosófica, Lídia Jorge manifesta claramente o desejo de testemunhar, revelando uma perspetiva lúcida e responsável que responde com rigor ao apelo do mundo que a rodeia. Os espaços privilegiados nos seus romances – o Algarve, Lisboa e Moçambique – formam um triplo eixo, resultante da confrontação de olhares e sensações, mas também do cruzamento dos tempos e dos sentimentos, que, entre lirismo e ironia, procedem à releitura crítica do real». Seguindo o percurso da obra da romancista, encontramos na diversidade de temas a exigência da interrogação da singularidade – entre as origens rurais e a inserção urbana, entre a vida vivida e a vida adivinhada. Poderia falar da importância da «Costa dos Murmúrios», de «O Vento Assobiando nas Gruas» ou ainda de «Combateremos a Sombra», onde a maturidade se vai afirmando, sem fugir à dificuldade dos temas. No entanto, «O Vale da Paixão» (traduzido em França como «La Couverture du Soldat») tem uma intensidade muito especial, que lhe dá um lugar central na obra da romancista e na literatura contemporânea. Pierre Léglise-Costa compreende bem a influência mediterrânica das luzes do sul e das brumas que incitam ao drama e à nuance, que convidam a ouvir as melopeias femininas e a ficarmos de sobreaviso com Ulisses sem deixar de gozar a sua beleza encantatória. E é este sentido de liberdade e dignidade que representa a força anímica e axiológica de Lídia Jorge, que ombreia nesta escolha do «Le Magazine Littéraire» com o que de melhor o mundo literário apresenta. E inesperadamente, percebemos que os temas da identidade, do cosmopolitismo e da globalização têm uma importância que ultrapassa as fronteiras e pode ir do Algarve até Istambul. Orhan Pamuk perante as incompreensões diz: «Sou um escritor votado a tratar da globalização». E depressa percebemos que procura o irrepetível na sua cidade. O mesmo se passa com Lídia Jorge ou com Zadie Smith. E se tantos viajantes falam de uma estranha proximidade entre Lisboa e Istambul, eis que Pamuk nos deixa duas pistas misteriosas e fascinantes. Por um lado, lembra a melancolia, que é uma tristeza não necessariamente negativa, a que em Istambul se chama hüzün, muito semelhante à nossa saudade com um certo misticismo (a que o escritor resiste); e por outro lado, o maior poeta turco que melhor soube entender esse sentimento foi Yahya Kemal (1884-1958), que foi embaixador da Turquia em Lisboa, de 1930 a 1932. «O problema dos escritores e poetas de Istambul é ficarem divididos entre o sentimento da comunidade que proporciona o gosto do hüzün, e a descoberta pela leitura dos livros ocidentais…».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

MORREU URBANO TAVARES RODRIGUES

Urbano Tavares Rodrigues

Os corpos sociais do Centro Nacional de Cultura (CNC) exprimem o mais vivo pesar pela morte de Urbano Tavares Rodrigues, uma das figuras marcantes da língua e da cultura portuguesas do século XX.
Escritor talentoso e multifacetado, foi um denodado estudioso da literatura portuguesa, devendo-se-lhe estudos fundamentais, designadamente sobre Manuel Teixeira Gomes.
Amigo do CNC desde há muitas décadas, fez sempre questão de se manter atento à nossa atividade e ao combate permanente pelo património cultural, pela língua, pela cidadania educativa e cultural e por uma cultura de paz.
É uma perda irreparável para as culturas da língua portuguesa.
Apresentamos à família sentidas condolências.

Guilherme d’Oliveira Martins

 



Morreu o escritor Urbano Tavares Rodrigues
Em dezembro faria 90 anos, tinha 61 anos de carreira literária.


O escritor, jornalista e militante do PCP, Urbano Tavares Rodrigues morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa.

O escritor estava internado há três dias. A notícia soube-se através da página de Facebook "Urbano Tavares Rodrigues - escritor" e foi publicada pela filha, a escritora, Isabel Fraga, onde diz: "O meu pai acaba de nos deixar. Estava internado nos capuchos há 3 dias. Não tenho mais informações. Soube agora mesmo.". O Público confirmou.

Urbano Tavares Rodrigues nasceu em Lisboa, a 6 de dezembro de 1923, filho de uma família de grandes proprietários agrícolas de Moura, Alentejo. Andou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde cursou Filologia Românica. Por razões políticas foi impedido de ensinar em Portugal, esteve preso em Caxias e acabou por exilar-se em França, onde conviveu com grande intelectuais da década de 1950.

Regressou a Portugal depois da revolução de 25 de Abril de 1974. Foi professor na Faculdade de Letras, crítico literário e esteve sempre ligado ativamente ao PCP.

 


por Isabel Lucas, in Público | 9 de agosto de 2013
Foto: Miguel Manso/arquivo Jornal Público

ONDE SE FALA DO «RAPTO DO SERRALHO»…

 

Minha Princesa de mim:

 

Já passou meia semana da minha estadia em Viena, no Sacher. Encontrei cá, imagina!, o nosso Camilo português, que integra uma delegação a uma reunião interministerial da EFTA, cuja presidência é, neste momento, austríaca. Íamos todos a sair  -  eu e uns cinco portugueses  -  aqui do hotel para... (é só atravessar a rua!)... a Wiener Staatsoper, onde assistimos a uma magnífica "Die Entführung aus dem Serail", dirigida pelo Karl Böhm. "O Rapto do Serralho" tem sido, desde a sua estreia no Burgtheater de Viena, a 16 de Julho de 1782, uma (senão a) das mais populares e representadas óperas de Wolfgang Amadeus Mozart. Tem um sabor especial vê-la aqui, nesta cidade que os turcos otomanos tentaram por quatro vezes conquistar, a última das quais em 1683. Vive-se mais esse sentimento do "turco", como receio de ameaça secular, mas como curiosidade também,e gosto do exótico e certas modas, incluindo a pastelaria que até toma a forma do crescente ("croissant"). E essa desforra popular ("folclórica") que faz do tema do sultão apaixonado pela bela europeia cristã, que o repudia e engana, o "leitmotiv" de contos e peças de teatro, de inúmeras "singspiele" e óperas... O mesmo Mozart, antes do "Rapto", compusera uma "singspiel", cuja heroína é Zaïde  -  nome que daria, mais tarde, o título a essa opereta incompleta  -  escrava cristã do harém do sultão Solimão, de onde foge com o seu amante Gomatz, com a cumplicidade de Allazim, "renegado" cristão, hoje braço direito de Solimão. Apanhados pelo feroz Osmin (que reaparecerá no "Rapto"), capitão da guarda do sultão, serão, mais uma vez, salvos pela intercessão do "renegado". Este, na verdade, quando comandava um navio espanhol no Mediterrâneo, livrara a galera turca  - em que Solimão, ainda jovem, seguia  -   de um ataque de piratas. Mas, enquanto a galera turca pôde assim fugir do perigo, o vaso de guerra espanhol foi surpreendido por uma esquadra de piratas, e Allazim, depois de preso, vendido como escravo ao próprio sultão e obrigado a converter-se... Surpreendido pela revelação de que Allazim fora o seu salvador, Solimão é clemente e salomónico: Zaïde e Gomatz são perdoados e poderão partir; mas Allazim deverá ficar com ele, pois maior amigo não tem nem pode ter! "Dein Edelmut,Allazim,hat den weg zu meinem Herzen gefunden... A tua nobreza, Allazim, encontrou o caminho para o meu coração. Um muçulmano pode ser tão generoso como um espanhol! Libertai-os, portanto, e conduzi-os a um navio que veleje até à pátria deles. Adeus Zaïde, adeus Gomatz. Procura ser digno dela. Mas tu, Allazim, não me deixes. Ajuda-me a tornar-me tão nobre como tu. Isto não é ordem de senhor, é pedido de irmão." Assim acaba a "Zaïde". Esta história leva-me à bacia do Mediterrâneo nos séculos XV a XVIII, tal como a descreve Fernand Braudel. E a outras histórias de corsos, razias, raptos, apostasias e regressos, escravizações e resgates, conflitos, tréguas e alianças. Lá irei, é fabulosamente tentadora a viagem por esse mundo em que judeus, muçulmanos e cristãos  -  e tantos povos e etnias da Europa, do Médio Oriente e do Norte de África  -   se relacionaram. Mas vou primeiro ao tema das óperas: a paixão não correspondida do sultão pela europeia, a tentativa de fuga desta com o seu namorado, a perseguição movida pelo carrancudo, vingativo e ambicioso capitão de guardas, o inesperado intercessor, a magnanimidade final do altivo soberano muçulmano, tudo isto se repete  -  desde a "singspiel" de Christoph Friedrich Bretzner "Belmonte und Konstanze oder die Enfuhrung aus dem Serail", levada à cena em Berlim com música de Johann André  -  em inúmeras realizações de compositores do século XVIII. E tem analogias com obras de Gluck ("La Rencontre Imprévue"), Haydn (“L´Incontro improviso”) e ainda "L´Italiana in Algeri" ou "Il Turco in Italia" do Rossini (onde a heroína, aliás, se chama Zaida)… A "ameaça" otomana pesou seriamente sobre a Europa cristã durante século e meio, desde a tomada de Constantinopla em 1453 até ao tratado de Carlowitz, em 1699, que devolveu a Hungria e a Transilvânia aos Habsburgos austríacos. Pelo meio, estiveram os reinados de Carlos V (1516-1556) e de Solimão, o Magnífico (1520-1566), com a autoridade do imperador cristão contestada por Francisco I de França, que se aliou aos turcos, com desfeitas de um e de outro lado. Antes e depois da batalha naval de Lepanto (1571), quando a coligação da Santa Liga, organizada pelo papa S. Pio V e comandada pelo bastardo João de Áustria, travou o avanço otomano. Já Carlos e Solimão não estavam cá. Nem François. Por entre conquistas e reconquistas, vitórias tão efémeras como derrotas, movia-se o corso e a pirataria, o comércio "internacional", com e sem carta. Como o dos Barbaroxa. E iam caindo nas redes dos interesses políticos e mercantis uns surpreendidos pela ganância dos outros. Mais ou menos inocentes ou aventureiros, desde meninos e meninas colhidos nas razias costeiras até tripulantes e guerreiros em navios de combate ou comércio. Ou prisioneiros de guerra, como portugueses depois de Alcácer-Quibir (1578). Surge daí um universo de destinos vários, tratados, muitas vezes, mesmo pela Santa Inquisição, de modo mais tolerante e benévolo, do que o reservado aos hereges cristãos, ou aos judeus e marranos, na cristandade: protestantes e judaizantes eram uma sabotagem interna; renegados, circuncisos conforme a lei islâmica, podiam ser um alívio, uma diminuição das forças do inimigo. Mas também me parece que o grau de miscigenação   -  aliás estimulada, curiosamente, por ambas as partes, muito embora os maometanos tivessem alguma vantagem na oferta, aos homens, de um estatuto de relacionamento sexual mais...agradável  ---  apontava para a possibilidade de assimilação afetiva, tanto mais eficaz quanto, em tempo de guerrilhas e incertezas, cada um poderia guardar no coração a sua fé, desde que convencionalmente praticasse publicamente os rituais próprios da religião do seu príncipe... Já agora: não foi assim que se resolveram guerras de "religião" na Europa cristã coeva?  Entre papistas e reformados: "Ejus religio cujus regio". Li algures que Gaspar Ramos, um pagem português, feito prisioneiro em Alcácer-Quibir, foi levado à conversão à fé maometana pelo seu novo senhor, alcaide do rei vencedor El Mansour. Anos mais tarde, depois de circunciso, foi-lhe dada em casamento uma jovem moura. Com ela terá regressado a Portugal, ao cabo de trinta anos, em 1610, para viver na cristandade. Contei esta casualidade ao nosso Camilo. Sorriu e disse: "Por essas e outras, o tio ainda vai levar na touca..." Retorqui: "Na minha idade, posso levar à vontade, tenho cabeleira robusta. Mas tu, meu rapaz, já estás muito careca: não desenvolvas este nem outros temas, no teu jeito platónico de que a ideia tem sempre prioridade..." Mudei-lhe o sorriso em riso amigo. Mas receio que, quando chegar à minha idade, tenha desgostos. Sobretudo se não corrigir esse gosto de abrir, sem preconceitos, os olhos ao mundo. É tarde,vou dormir,bem preciso. Mas voltarei a partilhar contigo estas e outras histórias, em mil e uma noites...de insónia, em que só as estrelas nos falam."

Camilo Martins de Oliveira

Aqui o remoinho do milagre.


Os ramos assolados de agua que desce pelas folhas e se separa delas e em nós amorosa e flagelada e fresca, uma  pausa, numa força desapiedade de tão justa.

 

 

A caminho do interior da Cidade Proibida um lago imenso ladeado por arvores e uma, que de repente, nos molha com inúmeras e pesadas gotas. Ali como se chovesse.

 

Todos nos olham por não nos termos afastado dela ou não termos aberto a sombrinha que nos protegia da agua constante que se soltava ao ritmo dos batimentos do coração da arvore.

 

Só soube mais tarde que esta arvore estava catalogada pelos biólogos famosos do mundo inteiro e que as suas profundas raizes seguiram até ao lago e não apodreceram, antes sugam constantemente a agua que se solta e nos encharca pelas folhas.

 

Milagre.

 

Um frémito assim, não se explica.

 

Creio que os dorsos desta arvore são todas as coisas que se consomem a elas próprias, permanecendo em votos de menino.

 

 

Assim a Cidade me pareceu menos proibida pois que só a natureza tem o poder de viver e morrer sorrindo.Só a natureza nos une ao mistério em  jeito de convite ao porto da sabedoria.

 

 

Quis saber a que horas isto me acontecera e logo um elefante, ali tão perto, palpebrou a hora esclarecida que divide agua e a terra e o jade.

 

 

Farol de poder encostado

 

 

e rugindo  ao sono dos soldados. Afinal opulante a todos nós.

 

E eu já dissera: quero voltar a Tiannaen 天安门广场 ou Praça da Paz Celestial, coração simbólico da China, e que ao norte tem a Cidade Proibida. Desde que lá estivera, só retinha no peito a fotografia do jovem solitário e desarmado que faz parar uma fileira de tanques de guerra.

 

 

Sei que o fotógrafo Jeff Widedener, da Associated Press, registou o momento e o homem que enfrentou os tanques foi eleito uma das pessoas mais influentes do sec. XX.

 

Ainda hoje desconhecido, recordo este jovem quando abriu os braços de paz face aos tanques. Chorei. Tão pouco fizera eu.

 

 

Em 1989 estas manifestações lideradas por estudantes que se rebelavam contra o partido comunista e não obstante o governo da República Popular da China ter sido condenado pela comunidade internacional, face ao massacre praticado, contra quem se atreveu a entender que liberdade e dignidade impedem a raiva dos poderosos do mando e comando do mundo, o Massacre da Praça Celestial, consolidou-se em execuções contínuas que se dilatavam e apagavam a vida de um e outro que se entregava à pura esperança.

 

 

Lá onde a lâmpada treme, pedir-te-ei sempre perdão, sabendo não o merecer. Do longe todos vimos, e como sempre, não podemos ignorar.

 

 

Estas, algumas das câmaras de filmar que nos seguem em Tiannamen, marcando-nos na parede que reflicta mais do que aquilo que o poder possa querer admitir. Aliás vive-se também na restante Pequim uma fotosfera de filmagens continuas, pois como não controlar a liberdade de quem , com seu salto de sapato de marca inconfundível ,ou brutalidade ferrea no olhar, entra nos carros de vidros fumados e cortinas escuras e guarda-costas acre, enquanto do outro lado da rua, o seu melhor eram rostos nem já zangados de poluição.

 

 

Soube assim que depois de entrar nas portas daquele hotel eu já não sairia.

 

 

O ouro e a borboleta não convivem, e o pé dos anos não desce para o mar, antes escava. Mas amo a beleza, registe-se, mas aquela, assustou-me pelo convite de chumbo.

 

 

Ou não tivesse voltado a esta Praça do Massacre, lá onde o poema excedeu o poeta e a mesa das ideias ali semeadas, falará além fronteiras, sempre que uma alma clame justiça e lhe responda a fraterna voz das viagens que nos conduzem a filtros de fórmulas no interpretar do mundo.

E depois as sedas maravilhosas e os bichinhos delas sem cansaços.

 

 

E as urnas das vielas de decompostos cheiros, permitem o descanso a bicicletas que carregam fatigados humanos dia após dia.

 

 

Volta, volta

 

 

bela imperatriz ou concubina, do grilo e do sapo, volta e não tragas contigo embrulhada a gaiola, antes:  


Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace

You may say
I'm a dreamer

But I'm not the only one

 


M. Teresa Bracinha Vieira

Julho 2013

BOAS LEITURAS EM AGOSTO

 

 

O CNC, como habitualmente, não esquece os associados e amigos em merecidas férias. Este ano o blogue do CNC em agosto e início de setembro será especialmente recheado de textos estimulantes.

Camilo Martins de Oliveira escreverá excecionalmente à terça e à sexta-feira o seu palpitante folhetim, de que temos tido ecos em todo o mundo das culturas de língua portuguesa. Já tivemos simpáticos protestos de Tóquio porque o texto atrasou-se um dia. Desta vez isso não acontecerá e os leitores fieis fizeram-nos saber que o bónus de terça feira está a ser acolhido com muita alegria.

Também Duarte Ivo Cruz continuará a falar-nos das suas memórias de Almada Negreiros e de Fernando Amado – dando a conhecer elementos inéditos da história do teatro português, que ele conhece como ninguém. Os leitores não perdem. E haverá muitas outras surpresas…


Hoje deixamos a lista de livros de verão. Como sempre, é um rol aleatório – com uma única característica: a qualidade.

Atribuímos a todos cinco estrelas.

São muito bons conselhos. Dez escolhas, dez. E certamente que os leitores darão por bem empregue a leitura!

Ei-los:

 

- «Ideologia e Razão de Estado – Uma História de Poder» de Jaime Nogueira Pinto (Civilização).

- «Os Militares e o Poder, seguido de O Fim de todas as Guerras e as Guerras do Fim» de Eduardo Lourenço (Gradiva).


- «Viagens e Outras Viagens» de António Tabucchi (D. Quixote).


- «Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes» de Mathias Énard (trad. Pedro Tamen) (D. Quixote).


- «A Chave dos Profetas» do Padre António Vieira (2 volumes), organização José Eduardo Franco e Pedro Calafate (Circulo de Leitores).


- «História e Criação – Textos Filosóficos Inéditos» de Cornelius Castoriadis (Antígona).


- «Tudo é e não é» de Manuel Alegre (D. Quixote).


- «Poderes Invisíveis – O Imaginário Medieval» de José Mattoso (Temas e Debates).


- «Os Transparentes» de Ondjaki (Caminho).


- «A Felicidade em Albert Camus» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote).

 


Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há quase sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena! 

 

 

NO DESERTO CRESCE O MEU DESEJO.

   

Meti a última carta do Marquês de Sarolea à Princesa de... pelo meio das outras  -  daquelas que já publiquei e das que irei publicando  -  por razões difíceis de explicar, a menos que me atreva a revelar uma intuição minha. Vale o que vale, mas cuidei de ver se seria ligeira ou temerária ; creio que não é, antes se foi afirmando ao meu "pensossinto" (como diria Camilo Maria )... Ao reler, à luz dessa última carta (a que só mais tarde tive acesso), não só todas as que foram enviadas, como as endereçadas a "Minha Princesa de mim" e que nunca seguiram, ocorreu-me o sentimento fortíssimo de que a Princesa de... era, sim, a destinatária de todas as confidências, mesmo daquelas que se refeririam a outra (outras?) mulher. Camilo Maria  -  que era metódico e pontual  -  não gostava de viver no tempo. Considerava a sua circunstância, e comportava-se nela com o respeito devido aos outros e, sobretudo, aos seus próprios compromissos, mas criara para si um espaço de liberdade interior, onde respirava e vivia fora do tempo... Tudo o que aqui digo se encontra, latente ou patente, conscientemente escrito nas suas cartas. Nunca se casou com a "sua" Princesa, nunca viveram juntos, e só eles poderiam saber das intimidades que pudessem ter tido. Ele nunca falou disso, aliás era discreto e, apesar de ser homem por quem  -  dizia-se  -  muitas senhoras teriam caído, nunca ninguém lhe ouviu uma insinuação, um canto de galo. Conhece-se-lhe o fundo desgosto que lhe deu a morte prematura do filho único, e o amor carinhoso com que nunca faltou a sua mulher, cedo levada por essa grande dor que, de uma ou de outra maneira, um dia toca a nossa vida. Mas cartas de amor... não sei se escreveu outras! Só lhe conheço estas. Soam-nos no coração como confissões íntimas, ou como se fossem ditas no impulso de um mergulhador quando chega à tona de água e abre a boca. É certo que falava de tudo, tudo lhe interessava e gostava de partilhar. Mas quando falava de si, dirige, a uma única pessoa, lembranças, sentimentos, visões, esperanças íntimas, coisas que se poderiam ter passado ou ser ditas a outras, mas ele só sabe dizer à que, ele mesmo, chamou "misterioso, inesperado encontro"... Era, ou não era, essa pessoa, a destinatária das cartas? Recebeu-as pelo correio, certamente: a ela eram endereçadas. Tê-las-á recebido na alma? Terá a Princesa entendido que aquele amigo lhe dizia: "Preciso de ti, não sei porquê, pus em ti uma confiança essencial à comunicação que sempre quis ter e nunca alcancei..." Com esta confissão, começava Camilo Maria uma carta cronologicamente anterior à última que enviou à "Minha Princesa de mim". E continuava: "Despi-me, para ti, de qualquer defesa e, por ti, cobri as distâncias todas que me deixariam invulnerável. Eis-me. Não escondo, não minto, não disfarço, não calculo, não peço compensação. Espero, como quem grita nas montanhas do meu Tirol e aguarda o eco. Amor é o nome que damos ao que não tem idade e vem da fé cuja esperança é a recompensa invisível, que não se merece nem obriga. Nasceu connosco, no coração da existência. Como condenação a não sermos condenados. O amor humano é procura e sinal. Como no "Cântico dos Cânticos", poderia dizer-te o grito que lanço a Deus:

                                                                                                           "No deserto cresce o meu desejo,
                                                                                                            por ti tantas vezes destemido.
                                                                                                            És a minha fome e o meu pedido
                                                                                                            de ver-te, Senhor, a quem não vejo...

                                                                                                            Minha sede é seres, e só procuro
                                                                                                            a fonte da sede que me dás:
                                                                                                            no desejo de ti, vivo e duro,
                                                                                                            na sede da sede que me traz

                                                                                                            este deserto em que sou  despojo,
                                                                                                            lixo de ser graça do teu nojo...
                                                                                                            Esqueleto ebúrneo me levanto,

                                                                                                            branco de areia, de morte e espanto,
                                                                                                            e de mim te grito a minha fome!
                                                                                                            E sei que te chamo pelo teu nome!"

 

Ecce homo! Mas ele não é o que a turba vê, ou julga ver. É, tão simplesmente, esse pobre de tudo que os olhos do nosso coração poderão acolher no coração de Deus. Recordo os versos finais da "Elegia do Amor", do poeta português Teixeira de Pascoaes, que o Alberto proclamava ser o mais lindo poema de amor do mundo: "Vivo a vida infinita, / Eterna, esplendorosa. / Sou neblina, sou ave,/ Estrela, azul sem fim, / Só porque um dia, tu,/ Mulher misteriosa, / Por acaso, talvez, / Olhaste para mim." Depositada esta carta de Camilo Maria, corro a outras, que contam factos do mundo exterior e mais maravilhas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

Camilo Martins de Oliveira