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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins 
de 30 de setembro a 6 de outubro de 2013

 

O último livro de António Ramos Rosa (1924-2013) é constituído por poemas breves e leva por título «Em Torno do Imponderável» (2012). A obra do grande poeta caracteriza-se por ser diversa e prolífera, podendo dizer-se que é uma das mais significativas no século XX português. Deixou-nos há dias. Segundo o testemunho de sua filha Maria Filipe, os últimos momentos do poeta foram dominados pela recordação do verso «Estou vivo e escrevo sol» (1966). Até ao fim, sentimos-lhe a coerência da procura da palavra.

 

 
Foto de Veríssimo Dias

ESTOU VIVO E ESCREVO SOL
Silenciosamente, ouvimo-lo na pureza da sua escrita. Algarvio muito marcado pelo Sol e pelo Meio-Dia, deixa-nos uma obra multifacetada, que permite aos seus leitores uma especial compreensão da luminosidade da exigente procura da palavra. «Eu escrevo versos ao meio-dia /e a morte ao sol é uma cabeleira /que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo / Estou vivo e escrevo sol // Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam / no vazio fresco / é porque aboli todas as mentiras / e não sou mais que este momento puro / a coincidência perfeita / no ato de escrever e sol // A vertigem única da verdade em riste / a nulidade de todas as próximas paragens / navego para o cimo / tombo na claridade simples /e os objetos atiram suas faces / e na minha língua o sol trepida // Melhor que beber vinho é mais claro /ser no olhar o próprio olhar / a maravilha é este espaço aberto /a rua / um grito / a grande toalha do silêncio verde». Como salientou Gastão Cruz, muito a propósito e com verdade: A. Ramos Rosa, como poeta, como crítico e ensaísta, coloca-se na «primeira linha dos que marcaram de forma absolutamente decisiva a segunda metade do século XX» (Público, 24.9.2013). Tornou-se, assim, um exemplo para os novos poetas, sendo de leitura obrigatória o volume de ensaios «Poesia, Liberdade Livre», obra crucial para uma nova visão da poesia, num momento especial da criação portuguesa. Sendo o poeta apologista da «significação poética», Gastão Cruz lembra que, para Ramos Rosa, o sentido do poema não teria que ver com quaisquer normas que inviabilizassem o pleno uso da imaginação. Bastante depois de ter participado nas folhas de poesia «Árvore» (1951-53) com o poema «Viagem Através duma Nebulosa» («Para um amigo tenho sempre um relógio / esquecido em qualquer fundo de algibeira. / Mas esse relógio não marca o tempo inútil, / São restos de tabaco e de ternura rápida. / É um arco-íris de sombra, quente e trémulo. / É um copo de vinho com o meu sangue e sol»), publicará em Faro «O Grito Claro» (1958) na coleção «A Palavra» de Casimiro de Brito. E lembramo-nos do magistério exercido a partir da cidade de Faro, através dos «Cadernos do Meio-Dia», que dirigiu com Casimiro de Brito. Não por acaso, em Faro, foi impressa a «Poesia 61». Discreto, mas muito interventivo, ciente da importância das suas ideias, com António Alçada Batista, João Bénard da Costa, Sophia e Pedro Tamen, no Centro Nacional de Cultura e em «O Tempo e o Modo», fará parte da «Aventura da Morais». Tal levaria João Bénard a dizer que se houve momento em que Portugal foi país de poetas foi exatamente esse de abertura de novos horizontes, em que António Ramos Rosa participou ativamente. Recusando ser apenas «um funcionário cansado», o poeta e ensaísta entusiasma-se com a criação literária e o culto da palavra.

 

UM ENCONTRO NO CAFÉ ALIANÇA
É comovente e marcante, o encontro descrito por Gastão Cruz no Café Aliança, com o poeta e as jovens colegas da Faculdade de Letras – Fiama Hasse Pais Brandão e Luísa Neto Jorge. «Se havia mestre de poesia, ele estava ali, com a sua imensa modéstia e generosidade. Assim o víamos e assim o líamos, o persistente defensor de uma nova e mais livre palavra poética» (art., cit.). Fernando J. B. Martinho salienta, aliás, que, no período que vai do pós-guerra aos fins da década de 50, «uma das poucas exceções na poesia desse período, no sentido de uma aproximação ao veio vanguardista da tradição moderna, para além dos surrealistas, encontramo-lo no primeiro António Ramos Rosa, no caráter fragmentário da sua lírica de então» (…). «Autor de uma obra invulgarmente extensa, depois de uma fase inicial em que domina nas suas próprias palavras, “a experiência de alienação social e política”, irá evoluir no sentido da “experiência da realidade poética” e de “uma poesia dos elementos”, “da natureza socializada”.

 

O EMBARAÇO DA ESCOLHA
É difícil fazer grandes considerações teóricas sobre alguém que cultivava a experiência poética inovadora como prática essencial. António Ramos Rosa não se deixa encerrar num cânon. Lembremo-nos da «festa do silêncio»: «Escuto na palavra, a festa do silêncio / Tudo está no seu sítio: as experiências apagaram-se / As coisas vacilam tão próximas de si mesmas. / Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas. / É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma». Numa obra tão vasta fica a dificuldade da escolha, que é um embaraço bem mais benéfico do que os das palavras tímidas… «O seu olhar é um sonho, porque é um sopro indivisível / que reconhece e inventa a pluralidade delicada». 


Guilherme d'Oliveira Martins
 

GRÃO QUE APODRECE OU FRUTIFICA...

 

 

Minha Princesa de mim:

 

S.Domingos de Gusmão gostava de repetir esta sua espantosa (assim a adjectivou Bernanos: "étonnante"!) máxima: "o grão apodrece quando se acumula e frutifica quando se semeia". Justificava assim o fomento da dispersão dos seus frades pregadores por toda a parte, caminhantes anunciadores do evangelho, moradores no meio dos homens,em pequenas comunidades. Divergindo da tradição dos grandes mosteiros, que exigiam posse de terras e dever de residência,os dominicanos  -  tal como os seus contemporâneos franciscanos, discípulos do poeta de Assis  - deveriam viver em aliança com a Santíssima Pobreza...  Na própria regra da Ordem dos Pregadores, Domingos incluiu até a proibição de se deslocarem a cavalo ou de se embaraçarem com dinheiro. A pobreza é mãe da liberdade,  e só em liberdade ganham sentido a oração e o estudo. Oração e estudo que são educação e exercício da inteligência para o diálogo com Deus e os outros. Duas faces da mesma cara. Indissociáveis. Ao cumprimento do dever do estudo  -  que é também contemplação  -  até a própria oração deverá sacrificar pietismos barrocos e barroquismos litúrgicos. A simplicidade é a dieta do espírito. O "Saint Dominique" de Georges Bernanos, ainda que seguindo a biografia antes escrita pelo padre Petitot, terá talvez mais Bernanos do que história. Na narrativa das últimas horas e palavras do Santo, deitado no chão, em cima de um saco, rodeado de confrades que o escutam, Bernanos sentir-se-ia, ele mesmo, também no meio das suas próprias personagens romanescas (de Mouchette e Donissan, Chantal e o "curé de campagne"), que invoca no prefácio ao seu "Les Grands Cimetières sous la lune", escrito, em Janeiro de 1937, em Palma de Maiorca: "Companheiros desconhecidos, velhos irmãos, chegaremos juntos, certo dia, às portas do reino de Deus. Tropa estafada, tropa assediada, branca da poeira dos nossos caminhos, queridos rostos duros cujo suor eu não consegui enxugar, olhares que viram o bem e o mal, e cumpriram a sua tarefa, assumiram a vida e a morte, ó olhares que nunca se renderam! Assim vos encontrarei, velhos irmãos. Tais como vos sonhou a minha infância". E mais adiante: "É certo que a minha vida está já cheia de mortos. Mas o mais morto dos mortos é o rapazito que fui. E todavia, quando chegar a hora, será ele que retomará o seu lugar à cabeça da minha vida, reunirá até ao último os meus pobres anos e, qual jovem chefe, os seus veteranos, congregando a tropa em desordem, sendo o primeiro a entrar na Casa do Pai..." ... "é minha profunda certeza que a parte do mundo ainda susceptível de resgate pertence só às crianças, aos herois e aos mártires." Eis agora o seu S.Domingos moribundo: "Eis o homem que alguns furiosos quererão tornar num carrasco, e os menos fanáticos numa espécie de ministro da polícia das almas. Se nesta hora ele puder vê-los, com esse olhar que já mergulha no futuro, o monge negro e branco poderá levantar sobre eles a sua grande mão mansa e dissipá-los como fumo! Ele, diante de quem tudo se abre, não compreende o ódio deles, precisamente porque esse ódio é nada. Contra ele invocam a ciência que ele amou mais carinhosamente do que qualquer deles. Ou a luz que ele sente transbordar dele. O seu único escrúpulo, se houvesse lugar para escrúpulos em tão clara alma, teria sido ter amado demais ,e demais servido a primeira renascença intelectual, até parecer sacrificar ao estudo mesmo esse ofício coral que esses monges recitarão doravante com uma rapidez alegre, tão diferente da tradição beneditina. O século assustava-se por uma fonte de luz perdida, agora de repente descoberta sob as ruínas do mundo antigo, e ele, de acordo com dois admiráveis papas, reendireitou o seu século, manteve-o fremente no feixe de luz que o seu filho Tomás (S.Tomás de Aquino) voltará decididamente para a Cruz".  "Os frades estão reunidos para recolher, se possível, algo da palavra que vai enfraquecendo. Domingos faz um gesto com a mão, eles aproximam-se. Por um humilde gesto do santo, percebem que tem qualquer confissão pública para fazer; e que muito pesa no seu coração. Aquele que, em sonhos,apareceu ao papa Inocente III, carregando aos ombros a Igreja de Latrão, conselheiro de pontífices, conselheiro de príncipes, árbitro de tantos destinos, mestre e legislador de tantas consciências, irá agora descobrir,neste solene instante,com espanto,o carácter abstracto,quase terrível da sua vocação doutrinal? Que escrúpulo o atormenta? Levanta sobre os frades os seus olhos azuis, de olhar intacto. "Acuso-me, diz o Mestre dos Pregadores, de ter sempre preferido, à das pessoas velhas, a conversação das mulheres jovens". Muito mais tarde, nos seus "Diálogos" Santa Catarina de Siena relata que Jesus lhe disse, de S.Domingos: "Assim é a sua religião toda largueza, toda alegre, toda perfumada; é um jardim de delícias..."
 
Camilo Martins de Oliveira 

DE LISBOA A BRAGA, DE BRAGA AO CÉU…

 

Minha Princesa de mim:
 

Acontecem-me dias assim: acordo e entro em oração e por lá vou ficando. Começa por escuta da Palavra, que uma leitura desperta, e me leva à contemplação, esse silêncio que nos agarra e conduz para além do que entendemos, até ao inefável mistério, perante o qual somos forçosamente humildes. E é assim pequenino que  -  como nos bandos de miúdos em que um vai à frente e os outros se escondem, aguardando  -  eu chamo os outros, vivos e mortos, parentes e estranhos, aqueles com que embirro e os mais próximos a quem quero tanto!, para uma reunião com esse Deus escondido que não nos ignora e sempre nos interroga sobre o amor que, uns aos outros, nos devemos... Como "no antigamente", nas festas que eram os recreios da escola, a oração torna-se num convívio. Estás lá sempre, encostada à faia que se erguia, inexplicavelmente, no meio do cimento do pátio do colégio, como que a dizer que há impulsos que vêm de baixo, mas vão sempre para cima, procurando o sol. Habitarás até ao fim dos meus dias a paisagem interior em que me encontro. Hoje, abraçam-me saudades, rezar é também um modo de estar saudoso: conforta-nos, mas diz-nos que ainda não chegámos lá. A condição humana é uma vocação ao reencontro. No olhar dos infelizes que sofrem uma vida que os reduz e definha, há certamente perplexidade e espanto. Mas lá no fundo, muito para lá do inexplicável, haverá essa luz íntima de uma promessa que Deus saberá cumprir "in tempore oportuno"... Afinal, que sabemos nós explicar da nossa própria vida? O que ela tem de certo é a morte, o fim da ilusão. O que ela tem de grande, o essencial, é invisível aos nossos olhos. Está no mistério infinito de Deus. Qualquer apego sensível é nada, e de tudo, condenados, nos despedimos: "quando eu morrer, / meu amor, / não te zangues / comigo: / não foi por desamor / de ti / que eu morri, / mas pelo desgosto / de mim / que é tão antigo..." Lembro-me muito do Alberto, tenho estado a ler passos da "Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires" do frei Luís de Sousa. Na sua aposta em pôr-me a aprender português, o Alberto ofereceu-me, entre outros, este livro, insistindo em que Manuel de Sousa Coutinho (que, quando professou na Ordem de S. Domingos, tomou o nome de frei Luís) foi o primeiro "clássico" a emancipar o discurso da língua portuguesa, totalmente, de regras e tiques latinos, para o tornar fluido, correndo com a elegância simples da ternura lusitana... Encontro, nas páginas da "Vida...", trechos que parecem testemunhá-lo. Assim, esta cena da meninice de Bartolomeu: "Criava-o a mãe a seus peitos com cuidado de mãe, e mãe de grande virtude. Estava fugida da peste, que ardia em Lisboa, em um casal, que tinham no lugar de Torrugem, limite de Oeiras, quase três léguas da cidade. Era sobre tarde, tinha-o nos braços à porta do casal; chegou um homem no trajo pobre mendicante, no sembrante estrangeiro, e pediu-lhe esmola. Enquanto lha mandava dar foi cousa de espanto, e que deu muito que cuidar à mãe e aos de casa, o que viram no menino. Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se para ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre não se despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras..." Este menino cresceu, fez-se frade dominicano e teólogo, foi, arcebispo, para Braga. Sempre penitente e disciplinando-se, andou pelas serranias de Trancoso e outras paragens inóspitas, era frugal e procurava a companhia dos pobres. Distinguiu-se no Concílio de Trento, foi  -  como, três séculos antes dele, o franciscano Santo António  --  um dos lisboetas com enorme prestígio na Europa e na Igreja, pela sabedoria e por esse odor de santidade por que se reconhecem os pobres. O papa acolheu-o em Roma e buscava amiúde o seu conselho, que apontava para a necessária reforma de uma Igreja mergulhada nas vaidades do mundo. Conta frei Luís de Sousa: "Daí em diante, quase todos os dias, era chamado de Sua Santidade, e umas vezes o mandava ficar a jantar, outras convidava-o para o dia seguinte, mostrando particular gosto de tratar com ele. E foi crescendo esta facilidade e favor, de sorte que deu em mui estreita familiaridade e tal que chegou o arcebispo a adverti-lo de coisas importantes ao bem comum da Igreja e a seu ofício pastoral, das quais contaremos algumas. Apontava-lhe o arcebispo erros e abusos que havia em partes da Cristandade no governo eclesiástico; e, com o peito de varão apostólico, amoestava-o que convinha não tardar com o remédio; que, para isso, o tinha Deus posto naquele lugar supremo, para vigiar e acudir a tudo; que, se se descuidasse, quanto era maior a honra, tanto seria a conta mais estreita..." Se nos lembrarmos de que, entre os fatores dos movimentos de reforma protestante, estava o escândalo do comércio de indulgências para custear as obras "faraónicas" do Vaticano, saborearemos melhor este relato de uma conversa de Paulo III com o "Bracarense" (assim, parece, o tratava por vezes o Papa), reformador também, católico e tridentino: "Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia lá na sua Braga uns paços como aqueles?  -  Santíssimo padre  - respondeu o arcebispo  -  não é de minha condição ocupar-me em edifícios que o tempo gasta... Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse:  -  Pois que vos parece destas minhas obras?...  Então, com maior energia, respondeu:  -  O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta todo o cabedal de seus poderes..." Penso, nesta minha misteriosa saudade de Deus, que Deus é verdadeiramente pobre. E só aos pobres e pequenos se revela. Assim, minha Princesa de mim, brilhe também, no fundo fundíssimo de nós, a luz dessa esperança com que nascemos. E não esqueçamos que defraudar os pobres é esquecer Deus". Na carta seguinte,Camilo Maria escreve sobre o anseio de ser, recorrendo a uma ópera de Dvorak: "Rusalka".

 

Camilo Martins de Oliveira

Mário de Sá Carneiro, constantemente poeta acede ao sono. A alma quer dormir para que se erga a lua no seu céu.

 

Poeta, contista, e ficcionista foi Mário de Sá Carneiro um membro inesquecível da Geração d’Orpheu. O nome desta Geração chega-nos da revista literária Orpheu, entre nós publicada em 1915. A Geração que referimos foi a responsável pelo Modernismo nas artes e letras portuguesas e, seguindo as vanguardas europeias dos inícios do sec. XX, os colaboradores desta revista foram caracterizados como sendo aqueles que dariam uma bofetada no gosto público; assim Almada Negreiros na senda de Maiakovsky o referiu.

 

Orpheu era um mítico músico grego que, para trazer a sua mulher de volta ao mundo, nunca poderia ele olhar para trás na caminhada que para esse fim iniciaria. Ora, esse não olhar para trás, esse quase esquecimento do passado, restando só quase o olhar para diante, o olhar o futuro nos olhos, contribuiu para que a Geração de Orpheu fosse responsável pela divulgação de excelentes artistas que muito queriam escandalizar as convenções sociais e colocá-las em causa.

 

Mário de Sá Carneiro aos quinze já traduzia Victor Hugo e um pouco mais tarde Goeth e Schiller. Em 1912 conhece o seu maior amigo – Fernando Pessoa.

 

Também Santa-Rita Pintor é-lhe apresentado em Paris convivendo ambos por pouco tempo face à prematura morte de Santa-Rita. Mas de mútuas influências se surpreenderam.

 

 

Contudo, a insatisfação aguda de Mário de Sá Carneiro adensa-se numa saudade transmigradora, e, para ele, é exactamente por ela que a vida significa e a palavra poética surge. O escritor conhecia também os recantos do amor que anunciava secretas emergências

 

(…) Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...

 

Mas o tormento que sente nos limites do seu Eu, incerto se um Outro nele viveria, explicita-se igualmente como uma orgia oculta de vacilação culposa. Carnavais e cores atraem o poeta como a luz atrai a borboleta nocturna – o fim, num luxo desmedido de poder optar, e escreve

 

Fim

 

Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes,

Façam estalar no ar chicotes,

Chamem palhaços e acrobatas!

 

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza...

A um morto nada se recusa,

Eu quero por força ir de burro.

 

Lancinante e homem quase perdido no seu próprio labirinto escreve em Março de 1916 a Pessoa

 

Meu querido Amigo.

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte

sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. [...]

 

Reconhecendo-o profundamente, Fernando Pessoa apelidou-o de «génio não só da arte como da inovação dela».

 

A morte de Mário Sá-Carneiro harmoniza enfim, as contradições da vida e do viver, e é lúcida da necessidade de com ele levar uma realidade que, só ele, ao certo, conhece.

 

Expoente da nossa literatura moderna e de influências literária de Allan Poe, Mallarmé, a Cesário Verde, Mário recorda os brinquedos e as confidências de infância de jeito lúdico, como criança frente ao mundo

 

Ó meu Paris, meu menino,

Meu inefável brinquedo…

- Paris do lindo segredo

Ausente no meu destino


Diria que para Mário de Sá Carneiro o vivido ou o ainda a viver são sempre lances num jogo de nevoeiros, quando só a lanterna mágica, portadora do mistério, expõe a palavra poética. E assim se acastelam sentires e descobrires, ambos ogivas que afinal afagam os dias.

E este poeta sabe-o como poucos.

 

Teresa Vieira

Ainda Setembro 2013

FERNANDO AMADO: O COMBATE PELA JUSTIÇA

Fernando Amado utilizava uma expressão curiosa para as suas peças curtas, de mensagem bem clara: chamou-lhes debucho teatral. Trata-se com efeito de atos breves, concentrados numa mensagem muito clara de etnicidade ou de crítica social, dentro da linha coerente e corajosa que marcou toda a sua vida, obra e intervenção pública e privada.

 

Em 1961, dirigiu, no ambiente fabril da empresa de João Osório de Castro, com quem viria a trabalhar na Casa da Comédia, um debucho teatral bem significativo dessas preocupações e dessa linha de pensamento e intervenção - “Sua Excelência já não Atende Ninguém”, peça simples, curta, mas extremamente rica de conteúdo.

 

Um “casal de campónios”, Marta e Lucas, espera na antecâmara de “Sua Excelência” a hipótese remota de serem recebidos, a fim de solicitar a libertação do filho, preso e a aguardar julgamento por um crime que, dizem os pais desesperados, não praticou. A espera eterniza-se na “antecâmara de um edifício público” onde todos lhes passam á frente.

 

O diálogo é pungente: “Marta - É preciso chegar até onde os que governam. / Lucas - Nunca agente os dois havemos de lá chegar”… A linguagem traduz a ingenuidade. E de tal forma que as expressões dos outros intervenientes marcam a diferença.

 

A certa altura surge “Sua Excelência e “O Homem do Anel”, que acaba de ser recebido e se desfaz em agradecimentos equívocos. Dá uma gorjeta ao Contínuo e retira-se “após redobrada vénia “..

 

O Continuo não tem ilusões. “Não sabem que há gente miúda e gente graúda, os que mandam e os que obedecem? Nunca ouviram falar em conselhos de administração, em monopólios e em banqueiros? (…) Manda quem pode. Os rios correm para o mar. Contra a força não há resistência”…

 

O Continuo manda embora a Marta e o Lucas, porque “Sua Excelência já não atende ninguém”, dizendo para voltarem na semana seguinte… E precisamente, a fala final, com a crítica extremamente direta, é o Continuo quem a profere:

 

“O porteiro e o chofer aguardam instruções. O telefone não pia. Os corredores estão desertos. Reina ordem perfeita. Sua Excelência já não atende ninguém”.

 

Ora bem: como este debucho teatral é coerente com a vida, obra e pensamento de Fenando Amado!...

 


Duarte Ivo Cruz 

JERUSALEM, JERUSALEM…

 

 

Minha Princesa de mim:

 

Escreveu Paul Claudel sobre a sua conversão: «Tel était le malheureux enfant qui, le 25 décembre 1886, se rendit à Notre-Dame de Paris pour y suivre les offices de Nöel». Começava então a escrever e pensava que nas cerimónias católicas, consideradas com superior diletantismo, eu encontraria um excitante apropriado e matéria para alguns exercícios decadentes. Assim disposto, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com medíocre prazer, à missa solene. Depois,como nada mais tinha para fazer, voltei para as "vésperas". Os meninos do coro, vestidos de branco, e os alunos do Seminário Menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, que assistiam, cantavam o que, mais tarde, soube ser o Magnificat. Eu mesmo estava de pé, no meio da multidão, junto do segundo pilar, à entrada do coro, do lado direito da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com tal força de adesão, com tal comoção de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com certeza tal que não deixava lugar a qualquer dúvida, ao ponto de, desde então, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não puderam abalar a minha fé, nem, na verdade, lhe tocarem sequer". Isto tem algo de paulino. No livro dos Atos dos Apóstolos, regista-se uma arenga de S.Paulo aos judeus de Jerusalém, em que, a dado passo, o fariseu de Tarso narra a sua conversão à "Via": "Estava a caminho e aproximava-me de Damasco, quando, de repente, cerca do meio-dia, uma grande luz vinda do céu me envolveu com o seu brilho. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ´Saúl, Saúl, porque me persegues?´ Respondi: ´Quem és tu, Senhor?´ E ele então disse-me: ´Sou Jesus Nazareno, que tu persegues´." E o mesmo Paulo escreverá na sua carta aos Gálatas: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Se ainda vivo dependente de uma natureza carnal, vivo animado pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não quero tornar inútil a graça de Deus, porque se a justificação viesse por meio da Lei, então Cristo teria morrido em vão". Nestes e noutros testemunhos, a conversão irrompe no duplo sentido que a palavra latina "ruptura" em línguas latinas significa: a rutura que nos chegou por via erudita e quer dizer cisão, separação; e a rotura, adveniente por via popular, com que dizemos corte interno, golpe, ferida. O convertido rompe com o seu passado, crenças e pertenças antigas. Mas também sente que, no fundo de si, uma ferida se abriu, que o mantém alerta e ele não deverá deixar sarar. A vocação de Deus à transformação dessa criatura num "homem novo", cega pelo brilho da luz da revelação. Quando reabrir os olhos e sentir a dor profunda de uma alegria nova, verá tudo com outro olhar e saberá que nada poderá fazer com que estremeça a fidelidade interior ao destino que então descobriu. Outras conversões houve e há que seguiram um percurso mais lento, estudioso até: as dos Maritain, Jacques e Raïssa, e de Vera, irmã desta; a de Edith Stein. E outras que nunca se manifestaram em confirmações públicas, mas não terão, por isso, sido menos profundas, como a "Attente de Dieu" de Simone Weil. As Escrituras não dizem se Saúl de Tarso ia a cavalo no caminho para Damasco. Mas tombando de um cavalo o foi representando a arte europeia, talvez para realçar a nobreza da personagem, a violência do acontecimento, o efeito da força que vem de cima. Miguel Ângelo pintou a cena numa parede da Capela Paulina, no Vaticano: seguindo o relato de S. Lucas, representa Cristo nas alturas, rodeado de anjos guardiões sem asas, desferindo o relâmpago da graça que fere S. Paulo e o deita ao chão, cego de luz... O tema da graça foi muito discutido antes e durante o Concílio de Trento, cujo papa foi Paulo III, que encomendou o fresco, iniciado por Miguel Ângelo em 1542. O grande artista regressou muitas vezes a ele, incluindo em poemas que compôs no fim da vida. Os exemplos das conversões repentinas e estrondosas parecem sustentar as teses da predestinação, de Calvino aos jansenistas: a graça de Deus opera independentemente da vontade dos homens... No quadro de Caravaggio  -  que também vimos juntos em Roma,lembras-te?  -  Cristo inclina-se, suspenso no ar por um anjo que parece transportá-lo, para estender a mão direita a Paulo derrubado, gritando de dor, com ambas as mãos postas sobre os olhos que a súbita iluminação cerrou, e que só voltarão a ver depois da revelação interior lhe ter transformado o olhar. Um soldado tapa os ouvidos, não quer ouvir a voz que fala a Paulo, e não vê a luz,como no relato de S. Lucas; outro, mais idoso, nada ouve, mas a luz tira-lhe a vista e ele aponta para cima, contra quem não pode ver, a lança que manipula. A graça de Deus escolhe? Ou será como a Palavra na parábola da semente lançada à terra,cujo destino dependerá do solo em que for cair? Estou no meu antro, nem pássaros já cantam no jardim. Todos dormem por estas longitudes. Vem ainda longe a manhã. Vou ao sermão 71 do "meu" Mestre Eckhart: "Surrexit autem Saulus de terra apertisque oculis nihi videbat". O místico dominicano alemão,que ainda viveu no século de Petrarca e foi condenado em Avignon (fala-se hoje em canonizá-lo!), cita da "Vulgata" latina este passo dos "Atos" de S. Lucas, que diz: Paulo levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada. E comenta: "Não poderia ver o que é Uno. Nada viu, era Deus. Deus é um nada e Deus é um algo. O que é algo, isso também é nada. O que Deus é, é-o plenamente. Por isso Dinis, o luminoso, diz, quando escreve sobre Deus: Ele é para além ser, para além vida, para além luz; não lhe atribui nem isto nem aquilo, e quer dizer que Ele é não se sabe o quê que é tão longe para além. Alguém vê qualquer coisa, ou qualquer coisa cai no teu conhecimento, não é Deus; não o é pela simples razão de que Ele não é isto nem aquilo. Aquele que diz que Deus está aqui ou ali, não acrediteis nele. A luz que Deus é, brilha nas trevas. Deus é uma verdadeira luz; aquele que deve vê-la tem de ser cego e deverá manter Deus à parte de toda qualquer coisa. Diz um mestre (Santo Agostinho): aquele que fala de Deus por qualquer comparação, fala d´Ele de um modo que não é límpido. Quanto ao que fala de Deus por nada, esse fala d´Ele de modo apropriado. Quando a alma chega ao Uno e entra num límpido despojamento de si mesma, então ela encontra Deus como num nada. Pareceu a um homem, como em sonho  - era um sonho acordado  -  que ele estava prenho de nada como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus. Ele era o fruto do nada. Deus nasceu do nada. Por isso ele diz: ´Levantou-se do chão e,de olhos abertos,não viu nada´... Aquele sonho acordado teve-o Mestre Eckhart. A linguagem dos místicos é sempre um pouco difícil para nós, sobretudo por vivermos no mundo confuso das imagens. Ela é simplíssima, magra, não se perde em pietismos ou devoções sentimentalmente antropomórficas. Procura comunicar a experiência íntima de evidências que só no silêncio se descobrem e só na disciplina interior do silêncio podem ser partilhadas. Ao ser derrubado e cego, S. Paulo apenas pergunta: ´Quem és tu,Senhor?´ E só isso faz sentido." O marquês de Sarolea tinha dois mundos: o da sua circunstância, onde folgadamente se movia, e o do seu mistério interior, a que pertencia.

 

Camilo Martins de Oliveira

António Ramos Rosa

  

Às vezes não é clara
A leitura da realidade.
Escapa-nos o poema
Que ficou na fila
Do ninguém sabe.
No entretanto
Também se escrevem
Magros sucedâneos
Atordoados.
Mas não basta dizer um sentir
Com um outro nome:
Há que registar se o excesso não foi nosso.
Há que registar o que leram certas lentes
De quem olhou para o mundo e seu revés.
Às vezes, um homem consegue ser a palavra
Entre a terra e a terra
E abrir uma porta.

TERESA VIEIRA
Lisboa, 1 de Outubro 2007

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins 
de 23 a 29 de setembro de 2013


Rob Riemen, ensaísta e filósofo, fundador e diretor do Instituto holandês Nexus, ao escrever sobre a «Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido» (Bizâncio, 2011) fala-nos, de um modo aberto e esclarecedor, da relação entre cultura e liberdade, dando ênfase à obra de Thomas Mann.



PRUDÊNCIA E PONDERAÇÃO
A prudência exige a ponderação do que temos e do que pretendemos. E o mundo da vida tem de entender que o valor não se confunde com o preço. Em momentos de crise temos, assim, de encontrar forças capazes de favorecer a criatividade e a capacidade de construir. Rob Riemen procura descobrir na história recente elementos que relacionem as tragédias do século XX, de guerras e genocídios, com a procura de caminhos de desenvolvimento humano. Temos de aprender com a experiência humana, recusando a falta de memória e o ressentimento. Poucos compreenderam, por exemplo, Keynes quando este disse que deveríamos aspirar a que a economia pudesse viajar no banco de trás (cf. «Visão», 22.8.13). No entanto, o que o mestre de Cambridge afirmou não pode confundir-se com o desvalorizar da satisfação das necessidades ou do combate das crises, mas significa que a vida precisa de encarar com naturalidade e temperança a sua relação com os recursos disponíveis e as respetivas condicionantes. É a vida que está em causa, mais do que qualquer obsessão de encontrar culpados pelos males passados ou do que procurar um modelo virtuoso ou perfeito, como um fim em si. Como tem repetido Eduardo Lourenço, apesar da nossa ciclotimia, que alterna momentos de euforia e de depressão, oscilando entre considerarmo-nos os melhores do mundo ou pensarmo-nos os piores, temos de tomar consciência de que não somos nem melhores nem piores do que outros, e de que se tantas vezes nos conseguimos superar no passado foi porque aceitámos a imperfeição, que, como desafio, o ensaísta designa como maravilhosa. Alexandre Herculano falou, por isso, de vontade de existir e de persistir, e isso explicará muitos séculos de uma nação antiga, com as fronteiras mais duradouras e vetustas. Numa palavra, a vida é que deve animar a economia. E se a disciplina é fundamental, é porque a sobriedade é uma qualidade necessária do «homo economicus», como pessoa livre e responsável.


O ALERTA DE THOMAS MANN
A cultura pode estar a ser destruída por um novo culto – alertava Thomas Mann. «A bildung, a formação moral e espiritual do ser humano, já não pode existir…». Do que se trata é de cair na tentação de mergulhar a sociedade numa euforia coletiva, que alimenta os demagogos, libertando ilusoriamente os cidadãos da responsabilidade individual. O drama vivido pelo romancista alemão começou no patriotismo da primeira guerra mundial, que o levou a temer pelo fim do sentido da cultura alemã em «Reflexões de um Homem Apolítico», julgando que a guerra era um problema não de poder mas de preservação de forças espirituais, e continuou na defesa de um humanismo, capaz de integrar o erro e a imperfeição. Durante a primeira guerra, Thomas Mann foi severamente criticado pelo seu irmão Heinrich, por esquecer algo de essencial. Mas o tempo passou. A tragédia europeia mudou tudo – e Thomas passou a ter outra ideia. Ao lermos «A Montanha Mágica» (1924), que começou por querer ser um romance irónico, encontramos o diálogo que encerra o enigma de um continente em chamas, mas, mais do que isso, que procura responder ao mistério da existência humana. Hans Castorp apresenta-nos o cenário iniciático da montanha e do sanatório. Lodovico Settembrini representa o Iluminismo, acreditando na bondade humana e na omnipotência da razão e na força das artes como apelo à bondade. Leo Naphta, pelo contrário, assume o lado negro da humanidade, e espera que o bem-estar venha da obediência absoluta e da violência. Mynheer Peeperkorn procura falar da vida e das coisas comuns, mas falta-lhe determinação e acaba por pôr termo à vida. Lembrando Goethe, Mann pergunta-se sobre o que é a verdade. «Todas as leis e regras convencionais podem ser vistas como remontando a uma única coisa: a verdade». E que é a liberdade? «Consiste não em recusar reconhecer qualquer coisa acima de nós, mas em reverenciar algo que está acima de nós». Perante a tentação da euforia do imediato, Mann propõe uma visão humanista do mundo e da vida. E o exemplo de José do Egito, filho de Jacob e Raquel, surge como personalização do que designará como medida e valor, enquanto descoberta da dignidade. A verdade não é um conceito empírico ou matemático, não é a realidade. De facto, a verdade é medida e valor, isto é, o ideal a que cada ser humano deve aspirar. Não é um conceito subjetivo, relativo, com que se lida no bel-prazer de cada um. É um padrão pelo qual a dignidade humana deve ser aferida. Por isso, aniquilar a cultura é pôr em causa a verdade – e destruir a verdade é privar a pessoa humana da sua dignidade.


CONTRA A MEDIOCRIDADE
A mediocridade constitui, assim, a aceitação e a cedência perante o esquecimento da cultura. Por isso, para Thomas Mann, como para Riemen, aristocracia e democracia não são opostos. António Alçada Batista falava muitas vezes da «aristocracia do comportamento». E que queria dizer? Falava do respeito mútuo, da inteireza, da coragem e da proximidade. Segundo Mann, a aristocracia significaria «liderança dos melhores». Ora, a democracia, aceitando por definição a imperfeição, tem de desejar atrair os melhores, em nome do reconhecimento da importância dos limites. Que é a inteligência senão o reconhecimento dos limites? Eis por que razão temos de criar condições para atrair os melhores à coisa pública. «Numa democracia que não respeita a vida intelectual, nem é guiada por ela, a demagogia tem rédea livre, e o nível da vida nacional é rebaixado ao ignorante e ao inculto. Mas tal não acontece se o princípio da educação puder dominar…». Thomas Mann di-lo em 1938 no texto «A Próxima Vitória da Democracia» e hoje podemos compreender esse apelo contra a indiferença, capaz de ligar liberdade, verdade e dignidade. E a coisa pública tem de assentar na ideia de que a pessoa é verdadeiramente justa não por querer parecer boa, mas por sê-lo. Deste modo, Rob Riemen fala de «nobreza de espírito» como pedra angular de um mundo civilizado. Pela nobreza de espírito é que a cultura pode afirmar-se como realidade multifacetada – criadora e construtora. A procura da melhor sociedade obriga a abordar a busca da verdade, mas não a tentação de nos julgarmos possuidores dela. «Não sabemos o suficiente para ser intolerantes», dizia Karl Popper. Os exemplos de Espinosa, Goethe e Thomas Mann permitem entender a nobreza de espírito como culto simultâneo da verdade e da liberdade. Não se trata do domínio da virtude de Saint Just, que levou ao terror, mas do equilíbrio necessário entre a exigência e a compreensão do erro. «As forças agora alinhadas contra os valores humanísticos são múltiplas» - lembra George Steiner. Daí a necessidade de acreditar no poder das convicções e da responsabilidade para restaurar os valores da dignidade humana.     


Guilherme d'Oliveira Martins

TRÊS SONETOS DE PETRARCA.

 

Minha Princesa de mim:

 

Cá estou no meu antro, neste gabinete cheio de livros e de outras memórias. E de música, dessa que vou ouvindo e, repentinamente, ponho a tocar de novo, para escutar. E dessoutra ainda, que dança na minha cabeça e são palavras que se achegam e afastam e se reunem e fazem roda e vão girando... Cheguei bem, ontem pela noite, mas cedinho ainda. Acordei com a madrugada e deixei-me rezar e pensar. Assim fiquei até há pouco, sinto entrar-me pelas janelas a clareza tímida do dia que principia. Fez-me bem o nosso tempo ontem partilhado. Senti então, profundamente, a perceção de uma evidência: tenho aprendido a viver com um certo sofrimento, na medida em que me vou abrindo ao teu, procurando compreendê-lo. Isto é: ao sentir a minha dor, é na tua que penso. Talvez não me alivie, mas transforma-me o sofrimento... Na grande saudade de ti, sempre me sopra Camões: "Transforma-se o amador na cousa amada... / ... Se nela está minha alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar?" E por via do "L´amante nel´amato si transforma"...  chego a Petrarca: "Benedetto sia´l giorno,e l´mese,et l´anno / Et la stagione,e ´l tempo,et l´ora,e´l punto, / E´l bel paese,e´loco ov´io fui giunto / Da due begli occhi che legato m´ànno; / Et benedetto il primo dolce affano...". Bendito seja o dia, o mês e o ano, / a estação e o tempo, a hora e o momento, / e o lindo país onde fui atento / por dois tão lindos olhos feito insano; / E bendito primor, doce tormento / que senti quando ao Amor fui unido / e o arco e as setas por que fui ferido / no coração,em chaga e sofrimento. / Benditas as vozes muitas que,vejo,/ chamando por minha dona espalhei / e os suspiros, lágrimas, e o desejo; / Benditas sejam as cartas mandadas / em que, com a fama, o meu pensar lhe dei,/ pois com ela só foram partilhadas». Assim, ao sol nascente, me fazes traduzir Petrarca. Mais um soneto: "Pace non trovo, et non ò da far guerra..." Não tenho paz, nem sei fazer guerra; / e temo e espero; e ardo e logo gelo; / e vôo pelo céu e jazo em terra; / nada agarro,mas todo o mundo anelo. / Quem me prende não abre nem encerra, / nem me chama seu,nem desfaz o nó; / não me mata Amor,nem me descerra; / e não me quer vivo, nem morto e só. / Vejo sem olhos e sem língua grito; / e quero perecer e peço ajuda; / ódio p´ra mim, p´ra ela amor bendito. / Alimenta-me a dor,chorando, rio; / para mim,morte ou vida,nada muda: / por vós, Senhora, fiando me desfio»... Tomo algumas liberdades na tradução, esperando que a misericórdia incline Francesco Petrarca a não pedir a Dante Alighieri que me inclua no Inferno... E, antes que o sol suba e tudo inunde de luz, atrevo-me a mais uma incursão: "Cantai, or piango, et non men di dolcezza / Del pianger prendo che del canto presi...". «Cantei, ora choro, igual doçura /  me dá tanto chorar como cantar: / não é efeito, é causa o que procura / o meu sentido lá no alto a vaguear. / Assim, a mansidão como a dureza, / e os atos feros, humildes, corteses, / por igual suporto, e com leveza, / nem os desdéns me ferem por soezes. / Virem-se contra mim, de modo vil, / o Amor, Senhora, o mundo e a fortuna; / continuarei simplesmente feliz. / Viva eu, morra ou definhe, mais gentil / sina do que a minha não há nem uma: / do meu amargor, doce é a raiz». De origem florentina, Petrarca viveu alguns anos na corte pontifícia de Avignon, cidade onde conheceu a sua musa : Laura de Noves ou, simplesmente, "l´aura", a aura do poeta. É ela a inspiradora de muitos dos seus sonetos, reunidos nas duas partes das "Rerum vulgarium fragmenta" ( "Fragmentos de coisas vulgares", ou em língua vulgar, por oposição ao latim, erudito) que a tradição posteriormente consagrou sob o titulo de "Canzoniere: "In vita di Madonna Laura" e "In morte di Madonna Laura". Elucidativo. (Ocorre-me o primeiro verso de outro soneto: «Sento l´aura mia anticha,e i dolci colli..."). Em Avignon se familiarizou com os Colonna, grande família romana, de que muitos membros acompanharam o papa francês Clemente V, cansado dos distúrbios e insegurança de Roma, por obra de guelfos e gibelinos. Petrarca dedicou muitos daqueles sonetos ao patriarca Stefano Colonna e acompanhou, ao seu serviço, o Cardeal Giovanni Colonna, de quem se afastaria mais tarde, por simpatizar com a revolução romana de Cola di Rienzo, que derrotou a grande família junto à porta de San Lorenzo, em 1347. No ano seguinte, o Cardeal Giovanni morria, e o seu amigo Francesco Petrarca escrevia, em jeito de epitáfio, o soneto "Rotta è l´alta Colonna" (quebrou-se a alta Coluna). Muitos monumentos da Cidade Eterna se ligam a essa família que, hoje ainda, ali ocupa o seu estupendo palácio e semanalmente o abre para visita pública à sua inestimável colecção de arte. Ponho-me agora à escuta, numa gravação da Bayerische Staatsoper, dirigida pelo Wolfgang Sawallisch, da ópera "Rienzi",do Wagner. Traz ao meu convívio Colonnas e Orsinis, neste sábado já tão cheio de sol e tão longe do drama que termina com a lapidação de Rienzi (Cola di Rienzo) e a sua consumação pelas chamas que destroem o Capitólio, onde ficou na companhia de sua irmã Irene e de Adriano Colonna, que em segredo a ama e é filho do vencedor Stefano Colonna.” E com esta carta de Camilo Maria, começo este fim de semana com um belo passeio.

  
Camilo Martins de Oliveira

Maurice Merleau Ponty: a fenomenologia e a revelação.

 

 

A fenomenologia é o estudo das essências, das essências da percepção, das essências da consciência, e é também, uma filosofia transcendental que compreende o mundo, nunca esquecendo que ele existe antes da reflexão. É assim uma ambição, uma tentativa.

 

Leçon sur la leçon? Sim. Pelo menos por esse ângulo cheguei-me um tanto mais ao compreender que, em cada acto de percepção, o mundo em nós renova-se e revela-se com um sentido de evolução. Assim, ser uma consciência, é ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo.

Acabei de reler”Fenomenologia da Percepção” de Merleau-Ponty e julgo ter tido melhor acesso à frase de Paul Ricoeur por ocasião da morte de Merleau:

O inacabamento de uma filosofia do inacabamento é duplamente desconcertante.

 

Traduz muito esta frase, o quanto foi forte o abalo da Filosofia contemporânea pela interrupção da notável obra, daquele que foi considerado o mais original discípulo da filosofia husserliana.

 

Para Merleau-Ponty, o ser humano é o centro da discussão sobre o conhecimento. Este nasce e faz-se sensível desafiando a consciência perceptiva.

 

 

Chegamos então ao incessante que recomeça em nós numa tarefa filosófica que recusa toda a cristalização do trabalho do percepcionar.

 

Torna-se necessário, o conhecermos o nosso próprio ponto de apoio, e onde ele se situa, torna-se mesmo impossível não fechar contrato connosco próprios, se assim não for. E este contrato, a existir, de tão perigoso e fechado nos torna finitos.

 

 Sem comunhão interior entre nós e o mundo, levados pela mestre- mão da percepção seremos capazes de nos libertar de muitas limitações: eis que até podemos chegar à consciência constituinte.

 

Todavia, também chamamos sol ao que nos dá força para combater na guerra contra todos os intermédios, até que consigamos dividir a paz em quantas partes nos sossegue. E  logo ouvimos Maiakovski

 

Vós

que tendes uma ideia

vejam como eu

me divirto,

rufia

de rua e batoteiro!

 

Mas Merleau, na sua obra, não nos deixa sozinhos nesta nossa ratoeira. Há que recomeçar o esforço, reassumir o movimento da reflexão. Talvez por isso a fenomenologia da percepção aspira a que se atinja o nosso-estar-no-mundo, nunca descurando o horizonte, a partir do qual, se não cede à não procura das essências.

 

É-nos proposto um constante recomeçar sempre em estado de aspiração e de volta às coisas mesmas e, mesmas, só na aparência, mas não nas essências.

 

Cuide-se que a unidade do mundo a partir da qual se desdobram as atitudes é apenas parte do horizonte. A consciência é destinada ao mundo, um mundo que ela não abarca e nem sequer possuí, mas em direcção ao qual ela não desiste de se dirigir.

 

Mais uma erva primeira, este livro de Merleau-Ponty.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Setembro 2013

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