MEMÓRIAS…
"Princezinha...
Diminuto venho, por diminutivo te trato. É bonito, creio, este jeito português de engrandecer o amor por uma qualquer forma de regresso ao pequenino de nós. Ainda há pouco, no terraço, o Alberto cantava, naquela voz de tenor, de timbre tão sonoro e claro que, sabemos, só pode sair da garganta do coração: "Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos,já era para te ver..." Ocorreu-me ainda (vê lá tu!) que até o grande amor do presépio no Natal português tem muito a ver com o gosto carinhoso do que é pequeno e nos chama a debruçar o coração. Amar o que é grande poderá ser vã cobiça, querer o que é pequeno não é já desejo, é só ternura. É como a dádiva de Cristo, o "anti-narciso": só nos outros me amo, nunca em mim. E todos somos breves, como as "sakura" na primavera todos os anos ensaiada. Permanece a lembrança, não a da nossa cabecita que se vai degenerando, mas essoutra que a luz dos infinitos astros regista, e no coração de Deus já se conhecia... Recolhi-me agora, não jantarei, vai-se escondendo o sol que tão amigo foi da nossa tarde. Fui à missa das 10 horas com a tua irmã, o Alberto também, mas ficou lá atrás, sempre em pé, exceto na consagração - que é quando tira do bolso do casaco um lenço impecavelmente branco que, desdobrado no chão, lhe serve de genuflectório. Para nós, católicos da Europa do norte (que partilhamos com "protestantes"), duas coisas há difíceis de entender: por um lado, a devoção pietista, um sentimento religioso mais próximo do anseio do que da teologia; por outro, um anticlericalismo latente, desconfiado. Não quero falar-te nisso agora, tive um domingo feliz, entre amigos e família. Fez-se hábito cá desta casa, sobretudo no Verão, dispensarem-se os criados aos domingos... A tua irmã já não se assusta, e deixa o Alberto entretido com os amigos: cozinham e servem-nos em mesa posta no terraço. Depois, o Nobre, que é médico, e o Videira, advogado, pegam na guitarra e na viola, para umas variações ao sabor de lembranças de estudantes e, sobretudo, do gosto familiar de estarem juntos e sempre beirões. O Alberto, que nunca fuma, acende um havano, prova uma aguardente velha..."esta ainda é das que o meu Pai fazia!" Quando agarra no saxofone, ensaia a combinação de umas notas, entra nas variações que as cordas vêm tocando, mas logo todos passam das harmonias de Coimbra para melodias de Lisboa, a que o sax empresta voz... Interrompe-se, recomeça-se, fuma-se entretanto, e recorda-se muito... Até que o Alberto larga o saxofone e aclara a voz, com um gole da "velhíssima"... E ouvimos, no silêncio do domingo campestre, na tarde tépida, no calor amigo de uma refeição partilhada e "toda feita por nós", fados e baladas do Bettencourt e do Menano,cantigas da Beira,tão cheias de montanha e de Mãe, tão sentidas da saudade inicial das nossas vidas... Chegam, mais tarde, umas novidades: lembranças do Alberto, que dá, no saxofone, umas notas para os outros, nas cordas, dedilharem um acompanhamento... Lembra-se de tudo, ninguém sabe donde lhe vem a inspiração, será sempre do gosto da poesia... Hoje, trouxe-nos um vilancico do século XVI, de Juan de Timoneda, cujo mote glosou, em jeito "renascenço-malandrista", mas cheio de graça e ternura: «Pues el tiempo seme passa / Madre mía, en buena fé, / «sola yo no dormiré. / Madre, ya sé quién me ama / Y quien servirme desea, / que no soy tuerta ni fea / ni mala para en la cama... / Qué me falta para dama? // No soy negra ni mulata / para no tener amores, / mochacha como las flores, / hermosa como la plata. / Duerma sola la beata, / que tiene causa porqué: / sola yo no dormiré!». Mas,logo a seguir,mudou de tom e ritmo e contrapôs,a Juan de Timoneda,um coevo, frei Luís de Léon: «Qué descansada vida / la del que huye el mundanal ruido, / y sigue la escondida / senda por donde han ido / los pocos sabios que en el mundo han sido!». É assim o nosso Alberto: ponto e contraponto, sempre contrapondo, nunca desgostando. Um gosto de conviver com as almas deste e de outros mundos, no mistério de uma ternura que foge,como os rios que regam... Escrevo-te com muitas reticências ... Quando estou com o Alberto, mesmo em memória, estou sempre à espera de um milagre que não vi mas sei que está ali. Falar com ele é sentir alguém que se entrega e espreita sem esperança de retorno, mas tão só pelo gosto de poder escutar um qualquer eco a que chamamos vida... E há ainda essa argúcia com que, ao retirar-me, me interrogou, citando um passo da "Citadelle" do Saint-Éxupéry: «Je me disais donc: "L´essentiel est que demeure quelque part ce dont on a vécu. Et les coutumes. Et la fête de famille. Et la maison des souvenirs. L´essentiel est de vivre pour le retour..." Et je me sentais menacé dans ma substance même par la fragilité des pôles lointains dont je dépendais. Je risquais de connaître un désert véritable,et commençais de comprendre un mystère qui m´avais longtemps intrigué... Tem razão: é essencial que num sítio qualquer permaneça aquilo de que vivemos. É meia-noite, tenho a janela aberta. Ouço um murmúrio de passos discretos, no terraço. E, num sussurro, a voz do Alberto que chama: "Rosinho, Rosinho, estás a dormir? Acorda, Rosinho, acorda!" E, logo depois, um rumor musical, uma música de dança: ruuu...ruuu...ruuu... E o Alberto a pedir: "Dança, Rosinho, dança!" Assomo à janela. Duma das casitas de pombos, postas por cima das gaiolas abertas aos pássaros livres, um pombo robusto, de papo inchado, sai para a "varanda", anda em roda e ruuu...ruuu...ruuu!!!" É longa esta carta de Camilo Maria que, na manhã seguinte a continua: falando de Eça de Queiroz e de Gogol, de Tintin e outras leituras do Alberto que, insone, as interrompia para ir, a meio da noite, servir-se de escabeche de pescada ou torresmos, à silenciosa cozinha!
Camilo Martins de Oliveira