Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ainda temos na memória as Termas de Huaqing em Xi’an e a lenda trágica que lhe está associada. O Imperador Xuanzong começou a negligenciar os negócios públicos e apaixonou-se por uma das suas concubinas Yang Guifei. O resultado foi a ocorrência de um golpe de estado que levou à secessão do Nordeste do Império.
Yang Guifei, Termas de Huaqing
A concubina pagou com a vida e a dinastia Tang voltaria a recompor-se mas o certo é que a literatura e também o paisagismo beneficiaram largamente deste episódio que tem atraído muitos poetas chineses como Li Bai e que hoje é motivo de lazer turístico.
Pudong, Xangai
Partimos para Xangai, que etimologicamente significa “sobre o mar”. É o grande centro económico e financeiro, a maior cidade da China, o lugar dos entrepostos comerciais. O bund, ou cais lamacento, é hoje ocupado pelos mais modernos arranha-céus, iluminados feericamente.
Bund, Xangai
A visita ao Templo dos Deuses da cidade dá-nos a dimensão do Taoismo popular, através do qual se protege a população e a cidade e se realizam os desejos do dia-a-dia. O principal deus deste templo é Qin Yu-Bo que teve sucesso na administração da costa marítima. Estamos perante um modelo, uma referência e um protector a que o povo recorre. Muitas imagens representam os nossos manes e penates da civilização romana. A cidade regurgita o mais variado comércio, desde que se tornou uma das metrópoles abertas ao exterior, pelo tratado de Nanquim de 1842 no fim da guerra do ópio, mantendo-se a cidade neutra durante a guerra sino-japonesa de 1894-95 e a revolta dos boxers de 1900 (a lembrança dos 55 dias em Pequim).
Old Town, Xangai
O mesmo não aconteceu porém em 1925 e 1926 aquando da sangrenta vaga de xenofobia e nacionalismo que assolou a China fazendo recordar a Rebelião dos Taiping (1853). A colónia cosmopolita regressou nos últimos anos à pujança antiga: 20 milhões de habitantes e uma presença muito intensa das novas tecnologias. Visitando a parte antiga de Xangai encontramo-nos transportados ao cenário do livro “Lotus Azul” das aventuras de Tintin, em que este conhece Tchang, o jovem arquitecto que permite a Hergé renovar profundamente a arte europeia da banda desenhada. No Peace Hotel de Xangai, homenageamos a antiga Banda de Jazz do Hotel e um dos seus elementos míticos está na nossa memória; trata-se de Art Carneiro, pai do nosso companheiro de peregrinação Roberto Carneiro. É um momento de especial emoção. Era como se ele tivesse regressado ali com um os velhos temas dos anos 40.
Passei, há quase um ano, uma semana amiga em casa do teu irmão Alberto, na raia de Lisboa, onde tantas outras vezes gozámos o sossego de conversas várias sobre o mundo. Sossego, digo, porque sempre nos entendemos e desentendemos bem: ele, sempre alerta e inesperado; tu sempre resmungão e talvez realista; eu sempre curioso e estrangeiro. Todos três sempre de acordo em que era preciso enxotar as senhoras da conversa... Dessa vez, na tua ausência, falámos do Inferno e de mafarricos, de malefícios à distância, de castigos vários... Tudo começou por um postal que o Alberto comprara no Louvre e usava como marcador de livros. Reproduz a frente de um retábulo pintado, em meados do século XIV, por um membro da família Memmi, aliás conhecido por Mestre dos Anjos Rebeldes. Cristo Pancrator preside à precipitação, por anjos legionários comandados pelo Arcanjo S. Miguel, dos anjos rebeldes, os de Satanás, no abismo. Estes são todos negros e horrendos, a sua queda desenha-se sobre fundo de ouro, mas... mas parece que vão cair num planeta! Como se fossem atirados à terra, para viverem no pecado e na maldição dos homens... O Alberto fora marcando com esta estampa a sua leitura, em francês, dos "Serões na granja nos arredores de Dikanka" de Nicolai Gogol. "Sempre me perguntei - disse-me - se o Diabo existiria como força activa, autorizada por Deus para tentar e poder desviar os homens (e sobretudo as mulheres - e ria-se muito - como vítimas e agentes cooperadores...), ou se seria uma invenção nossa, para bode expiatório, donde os cornos dos mafarricos e outros desgraçados... Esta pintura de um Memmi leva-me a questionar esse "adquirido" e a pensar que, quiçá, os demónios todos, afinal, foram precipitados para a terra dos homens no preciso instante em que Yahvé enxotou Adão e Eva do paraíso, por terem preferido a desordem à obediência, o castigo de ser livre à beatitude de ser programado... Assim, todos eles, os demónios e os filhos de Eva (como diriam as feministas) se copularam para povoar de discórdia e guerra este vale de lágrimas. Até que Deus se achou longínquo e violento e, talvez arrependido de ter precipitado tantas criaturas para o esgoto de um planeta cheio de água,decidiu atirar cá para baixo o seu Filho Único,que por isso era Cristo,antes de se chamar Jesus. Mandou Deus que lhe dessem o nome de meu irmão: Manuel, Deus connosco. E, por esse gesto, tão dolorosamente simples, tão alegremente generoso, desafiou e chamou a si o mal que tinha expulso, porque os corações que se purificam vão convertendo o mundo. Não por práticas canónicas, nem rezas repetidas, nem incensos queimados às imagens em que pretendemos domesticar a maravilhosa liberdade do divino. Mas pela transformação silenciosa do nosso olhar no querer bem.... Nestes contos do Gogol, há um que me mete medo, pois tem a ver com o nosso terror inato à maldição que persegue gerações. Que culpa tem Catarina - e o filhito que seu marido Danilo lhe deu - da maldição que, por Deus, Ivan lançara sobre Petrof, o antepassado deles que traíra indignamente seu irmão? Deveremos nós ser todos filhos do castigo de Caim? Mas, olha, Camilo Maria, ri-me, como quem se desforra, com a história, tão divertida, da noite de natal do ferreiro Vakula que, após peripécias apimentadas e várias, apanha o estupor do Diabo num saco de carvão. Agarrando-o pelo rabo, vai-o apertando e, ameaçando-o com o sinal da cruz, obriga-o a levá-lo até Petersburgo, à Czarina Catarina da Rússia, a quem implorará a oferta dos seus melhores sapatos de cerimónia... Catarina é generosa. E Vakula,voando pelos céus da Rússia,velozmente levado pelo Diabo que meteu no bolso, bem agarrado pela cauda maléfica e aterrorizado pela ameaça do sinal da cruz, chegará à sua terra, com as arras que prometera a Oksana,sua amada. Casam no dia de Natal. Já só pela coragem dele, a menina lhe dera o sim". O riso dos olhos do teu irmão, ao contar-me esta história, conhece-lo tu melhor do que eu. Disse-me, tantas vezes, com aquela graça de quem talvez veja Deus no dia a dia: "O Senhor Celeste também é mafarrico: prega-me partidas todos os dias!" As insónias infligiam-lhe leituras várias, para lhe desviar também o pensamento daquelas aflições que o assaltavam. Mas, ao deitar-se, tinha sempre à beira da cama uns álbuns do Tintin,que o divertiam e lhe davam umas frases para dizer no dia seguinte. Se chovesse, por exemplo, lembrava Milou, o cão, a exclamar "Il fait un temps d´homme!". Além de Hergé, a leitura da noite era Eça de Queiroz: "O Mandarim", "A Relíquia","A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Penso que tudo isso tinha a ver com ele: Em "O Mandarim", o desprezo pelo oportunismo e o horror à ganância, sem escapar à ironia: "Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio: pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta. E a vós,homens,lego-vos estas palavras: Só sabe bem o pão que, dia a dia, ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim! - E todavia, ao expirar, consola-me, prodigiosamente, esta ideia: ... ... ... nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, O pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, criatura feita por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!". Da "Ilustre Casa", até pelo arranque para África: "A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança tão terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até àquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora àquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra? - Quem? - Portugal". De "A Cidade e as Serras", o Alberto gostava de referir o passo em que, depois de jantar em Tormes, Jacinto e Zé Fernandes voltam "para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o sumptuoso céu de Verão"... Não sabem nomear as estrelas: ... "E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral? - Não sei. Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte, que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos obras da mesma Vontade". A "A Relíquia", Alberto ia buscar a memória de outra noite estrelada, quando Teodorico se despede da sua Mary luveira: "Por sobre os terraços adormecidos da muçulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrelas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos - suspirei o fado mais sentido de saudade portuguesa: «Co´a minha alma aqui te ficas, / Eu parto só com os meus ais, / E tudo me diz, Maricas, / Que não te verei nunca mais». Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quis saber se estes doces versos eram de Luís de Camões. Eu, choramingando, disse-lhe que estes - ouvira-os no Dafundo ao Calcinhas. Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça: e depois de ir ao corredor fazer às escondidas um rápido sinal da Cruz, vim desapertar sofregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do colete da minha saborosa bem-amada". Era assim, maroto e terno, aflito de angústias mas cheio da alegria inicial da vida, o teu irmão. Deus o guarde em paz".
Esta carta do Marquês de Sarolea nunca seguiu,encontrei-a no seu espólio. Foi escrita, de Bruxelas, pouco depois da morte de meu Pai, a que assisti. Nas semanas derradeiras, Alberto Martins de Oliveira conversava longamente com o cónego Sarmento, jurista de formação, vocação tardia, camarada de Coimbra. Na extrema-unção, ambos rezaram em latim.