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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ALMADA - OS DESENHOS DE “DESEJA-SE MULHER” E DE “S.O.S.”

 

Já aqui falamos na peça central, digamos assim, de Almada Negreiros, “Deseja-se Mulher” (1928) e no que restou do “S.O.S.” (1928-29), peça que deveria continuar a anterior, mas de que existe apenas o 2º ato. Recorde-se aliás que o “Deseja-se Mulher” foi encenado em 1963 por Fernando Amado por iniciativa do CNC.

 

Mas em 1959 o “Deseja-se Mulher” foi publicado, ilustrado com oito esboços de cena do próprio Almada, que enriqueceu a edição com a capa, num grafismo do lema “1+1=1” e vermelho e branco sobre fundo negro. A inconfundível assinatura do autor, com o prolongamento da letra de Almada, valoriza a gravura da capa.

 

E este conjunto será retomado na edição das Obras Completas - Teatro, agora enriquecida com os esboços de duas cenas do “S.O.S:” - e sendo de lembrar ainda que Almada pintou e desenhou numerosos personagens da sua obra - Arlequins, Pierrots e outros, muitas vezes relacionando-os diretamente com as peças alusivas.

 

Mas aqui recordaremos apenas as ilustrações para o “Deseja-se Mulher” e para o “S.O.S.”, em função das respetivas notas de cena. São desenhos singelos, indicativos, mas sempre justificados pelo texto respetivo.

 

Assim, o primeiro quadro do primeiro Ato do “deseja-se Mulher” passa-se “numa boite de nuit. Pequenas mesas redondas com os baldes do gelo”. E lá estão, no esboço de cenário, sete mesas, duas delas parcialmente encobertas por um biombo. No segundo quadro temos “uma casita isolada no campo. Mesa e duas cadeiras diante da casa. Árvore ao lado. Vampa acaba de escrever na parede em grandes números 1+1=1” E vê-se uma árvore e uma mesa e duas cadeiras, não referidas mas desenhadas. O terceiro quadro é mais complexo: as “quatro paredes mestras de uma casa ao centro da cena. O seu material batido pelo tempo, Nasceu uma árvores no meio da edificação. A árvore é exuberantemente frondosa” - e realmente tem 4 ramos principais e 25 tufos de folhas numa dezena de ramificações.

 

O segundo acto - quarto quadro é mais simples; “Uma sala com a metade para o fundo elevada em estrado. Cadeiras no primeiro plano de costas para o publico”, seis ao todo. O quinto quadro passa-se no “hall de modesta pensão. Uma escada sobre para outro andar” - e há uma minuciosa descrição de mobiliário devidamente ilustrada - mala cadeiras e mesa.

 

O Terceiro Acto abre com um singelo sexto quadro: “um poste de iluminação com os três olhos: amarelo, vermelho e verde”, por esta ordem… “o sétimo quadro reproduz” a mesma cena do terceiro quadro sem a árvore”.

 

Finalmente, numa cena final, “aparece navegando um barco que para no meio do mar. O barco chama-se à proa 1+1=1. Traz um marinheiro” minuciosamente descrito…

 

Os dois esboços de cenário do que resta do ”S.O.S.” são mais complexos. No primeiro, temos “uma pequeníssima sala de espera num grande jornal. Para dar melhor impressão da sua pequenez, o cenário ocupará apenas um lado do palco” minuciosamente descrito. O jornal chama-se “O Estado - Diário Nacional, segundo se lê na parede. A sala tem mesa e 10 cadeiras alinhadas nas paredes. E numa porta lê-se, à transparência, (ao contrário) ALAS ED AREPSE” …!

 

E mais minuciosa é a descrição do outro quadro: “sala de Direção de um grande jornal. O gabinete do Diretor. A parede do fundo decorada com o mapa de uma nação imaginária com as suas províncias e fronteiras entre os quatro pontos cardeais”. O mapa tem uma bandeira ao centro, mesa do diretor, mesa da dactilógrafa com máquina de escrever, e na porta, à transparência lê-se OÃÇCERID”…

 

Mais detalhado não podia ser!

 

Duarte Ivo Cruz

5ª CRÓNICA DE GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS - VIAGEM DO CENTRO NACIONAL DE CULTURA À REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, MACAU E HONG KONG

 

 

Ainda temos na memória as Termas de Huaqing em Xi’an e a lenda trágica que lhe está associada. O Imperador Xuanzong começou a negligenciar os negócios públicos e apaixonou-se por uma das suas concubinas Yang Guifei. O resultado foi a ocorrência de um golpe de estado que levou à secessão do Nordeste do Império.

 

 
Yang Guifei, Termas de Huaqing 

 

A concubina pagou com a vida e a dinastia Tang voltaria a recompor-se mas o certo é que a literatura e também o paisagismo beneficiaram largamente deste episódio que tem atraído muitos poetas chineses como Li Bai e que hoje é motivo de lazer turístico.

 

 
Pudong, Xangai 

 

Partimos para Xangai, que etimologicamente significa “sobre o mar”. É o grande centro económico e financeiro, a maior cidade da China, o lugar dos entrepostos comerciais. O bund, ou cais lamacento, é hoje ocupado pelos mais modernos arranha-céus, iluminados feericamente.

 

 
Bund, Xangai 

 

A visita ao Templo dos Deuses da cidade dá-nos a dimensão do Taoismo popular, através do qual se protege a população e a cidade e se realizam os desejos do dia-a-dia. O principal deus deste templo é Qin Yu-Bo que teve sucesso na administração da costa marítima. Estamos perante um modelo, uma referência e um protector a que o povo recorre. Muitas imagens representam os nossos manes e penates da civilização romana. A cidade regurgita o mais variado comércio, desde que se tornou uma das metrópoles abertas ao exterior, pelo tratado de Nanquim de 1842 no fim da guerra do ópio, mantendo-se a cidade neutra durante a guerra sino-japonesa de 1894-95 e a revolta dos boxers de 1900 (a lembrança dos 55 dias em Pequim).

 


Old Town, Xangai

 

O mesmo não aconteceu porém em 1925 e 1926 aquando da sangrenta vaga de xenofobia e nacionalismo que assolou a China fazendo recordar a Rebelião dos Taiping (1853). A colónia cosmopolita regressou nos últimos anos à pujança antiga: 20 milhões de habitantes e uma presença muito intensa das novas tecnologias. Visitando a parte antiga de Xangai encontramo-nos transportados ao cenário do livro “Lotus Azul” das aventuras de Tintin, em que este conhece Tchang, o jovem arquitecto que permite a Hergé renovar profundamente a arte europeia da banda desenhada. No Peace Hotel de Xangai, homenageamos a antiga Banda de Jazz do Hotel e um dos seus elementos míticos está na nossa memória; trata-se de Art Carneiro, pai do nosso companheiro de peregrinação Roberto Carneiro. É um momento de especial emoção. Era como se ele tivesse regressado ali com um os velhos temas dos anos 40.

 

MEMENTO QUIA PULVIS EST…

 

Meu Caro Manuel:

 

Passei, há quase um ano, uma semana amiga em casa do teu irmão Alberto, na raia de Lisboa, onde tantas outras vezes gozámos o sossego de conversas várias sobre o mundo. Sossego, digo, porque sempre nos entendemos e desentendemos bem: ele, sempre alerta e inesperado; tu sempre resmungão e talvez realista; eu sempre curioso e estrangeiro. Todos três sempre de acordo em que era preciso enxotar as senhoras da conversa... Dessa vez, na tua ausência, falámos do Inferno e de mafarricos, de malefícios à distância, de castigos vários... Tudo começou por um postal que o Alberto comprara no Louvre e usava como marcador de livros. Reproduz a frente de um retábulo pintado, em meados do século XIV, por um membro da família Memmi, aliás conhecido por Mestre dos Anjos Rebeldes. Cristo Pancrator preside à precipitação, por anjos legionários comandados pelo Arcanjo S. Miguel, dos anjos rebeldes, os de Satanás, no abismo. Estes são todos negros e horrendos, a sua queda desenha-se sobre fundo de ouro, mas... mas parece que vão cair num planeta! Como se fossem atirados à terra, para viverem no pecado e na maldição dos homens... O Alberto fora marcando com esta estampa a sua leitura, em francês, dos "Serões na granja nos arredores de Dikanka" de Nicolai Gogol. "Sempre me perguntei  -  disse-me  -  se o Diabo existiria como força activa, autorizada por Deus para tentar e poder desviar os homens (e sobretudo as mulheres  -  e ria-se muito  -  como vítimas e agentes cooperadores...), ou se seria uma invenção nossa, para bode expiatório, donde os cornos dos mafarricos e outros desgraçados... Esta pintura de um Memmi leva-me a questionar esse "adquirido" e a pensar que, quiçá, os demónios todos, afinal, foram precipitados para a terra dos homens no preciso instante em que Yahvé enxotou Adão e Eva do paraíso, por terem preferido a desordem à obediência, o castigo de ser livre à beatitude de ser programado... Assim, todos eles, os demónios e os filhos de Eva (como diriam as feministas) se copularam para povoar de discórdia e guerra este vale de lágrimas. Até que Deus se achou longínquo e violento e, talvez arrependido de ter precipitado tantas criaturas para o esgoto de um planeta cheio de água,decidiu atirar cá para baixo o seu Filho Único,que por isso era Cristo,antes de se chamar Jesus. Mandou Deus que lhe dessem o  nome de meu irmão: Manuel, Deus connosco. E, por esse gesto, tão dolorosamente simples, tão alegremente generoso, desafiou e chamou a si o mal que tinha expulso, porque os corações que se purificam vão convertendo o mundo. Não por práticas canónicas, nem rezas repetidas, nem incensos queimados às imagens em que pretendemos domesticar a maravilhosa liberdade do divino. Mas pela transformação silenciosa do nosso olhar no querer bem.... Nestes contos do Gogol, há um que me mete medo, pois tem a ver com o nosso terror inato à maldição que persegue gerações. Que culpa tem Catarina  -  e o filhito que seu marido Danilo lhe deu  -  da maldição que, por Deus, Ivan lançara sobre Petrof, o antepassado deles que traíra indignamente seu irmão? Deveremos nós ser todos filhos do castigo de Caim? Mas, olha, Camilo Maria, ri-me, como quem se desforra, com a história, tão divertida, da noite de natal do ferreiro Vakula que, após peripécias apimentadas e várias, apanha o estupor do Diabo num saco de carvão. Agarrando-o pelo rabo, vai-o apertando e, ameaçando-o com o sinal da cruz, obriga-o a levá-lo até Petersburgo, à Czarina Catarina da Rússia, a quem implorará a oferta dos seus melhores sapatos de cerimónia... Catarina é generosa. E Vakula,voando pelos céus da Rússia,velozmente levado pelo Diabo que meteu no bolso, bem agarrado pela cauda maléfica e aterrorizado pela ameaça do sinal da cruz, chegará à sua terra, com as arras que prometera a Oksana,sua amada. Casam no dia de Natal. Já só pela coragem dele, a menina lhe dera o sim". O riso dos olhos do teu irmão, ao contar-me esta história, conhece-lo tu melhor do que eu. Disse-me, tantas vezes, com aquela graça de quem talvez veja Deus no dia a dia: "O Senhor Celeste também é mafarrico: prega-me partidas todos os dias!" As insónias infligiam-lhe leituras várias, para lhe desviar também o pensamento daquelas aflições que o assaltavam. Mas, ao deitar-se, tinha sempre à beira da cama uns álbuns do Tintin,que o divertiam e lhe davam umas frases para dizer no dia seguinte. Se chovesse, por exemplo, lembrava Milou, o cão, a exclamar "Il fait un temps d´homme!". Além de Hergé, a leitura da noite era Eça de Queiroz: "O Mandarim", "A Relíquia","A Ilustre Casa de Ramires" e "A Cidade e as Serras". Penso que tudo isso tinha a ver com ele: Em "O Mandarim", o desprezo pelo oportunismo e o horror à ganância, sem escapar à ironia: "Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio: pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta. E a vós,homens,lego-vos estas palavras: Só sabe bem o pão que, dia a dia, ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim! - E todavia, ao expirar, consola-me, prodigiosamente, esta ideia: ... ... ... nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, O pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor, criatura feita por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!". Da "Ilustre Casa", até pelo arranque para África: "A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança tão terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até àquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora àquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?  -  Quem?  -  Portugal". De "A Cidade e as Serras", o Alberto gostava de referir o passo em que, depois de jantar em Tormes, Jacinto e Zé Fernandes voltam "para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o sumptuoso céu de Verão"... Não sabem nomear as estrelas: ... "E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?  -  Não sei. Não sabíamos. Eu por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber, assim acumulado, forma um monte, que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos obras da mesma Vontade". A "A Relíquia", Alberto ia buscar a memória de outra noite estrelada, quando Teodorico se despede da sua Mary luveira: "Por sobre os terraços adormecidos da muçulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrelas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos  -  suspirei o fado mais sentido de saudade portuguesa: «Co´a minha alma aqui te ficas, / Eu parto só com os meus ais, / E tudo me diz, Maricas, / Que não te verei nunca mais». Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quis saber se estes doces versos eram de Luís de Camões. Eu, choramingando, disse-lhe que estes  -  ouvira-os no Dafundo ao Calcinhas. Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça: e depois de ir ao corredor fazer às escondidas um rápido sinal da Cruz, vim desapertar sofregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do colete da minha saborosa bem-amada". Era assim, maroto e terno, aflito de angústias mas cheio da alegria inicial da vida, o teu irmão. Deus o guarde em paz".

Esta carta do Marquês de Sarolea nunca seguiu,encontrei-a no seu espólio. Foi escrita, de Bruxelas, pouco depois da morte de meu Pai, a que assisti. Nas semanas derradeiras, Alberto Martins de Oliveira conversava longamente com o cónego Sarmento, jurista de formação, vocação tardia, camarada de Coimbra. Na extrema-unção, ambos rezaram em latim.

Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins 
de 16 a 22 de setembro de 2013

 

Krzysztof Michalski (1948-2013) deixou-nos como última obra «The Flame of Eternity, An Interpretation of Nietzsche’s Thought» (Princeton University Press) que constitui um corolário de um vida de pensamento e ação, que merece ser recordada.

 

 

 

A PROCURA DO DIÁLOGO
Michalski foi um dos filósofos polacos contemporâneos mais influentes no pensamento europeu do pós guerra fria, tendo fundado, na cidade de Viena, o Institut für die Wissenschaflen vom Menschen (IWM) em 1982. Nascido em Varsóvia, estudou filosofia na Universidade da sua cidade natal, tendo-se doutorado em 1974 com a tese sobre «Heidegger e a Filosofia Contemporânea». Dotado de um espírito aberto e cosmopolita, esteve na Alemanha como Humboldt Fellow (1977), em Heidelberg como Thyssen Fellow (1982) e frequentou o Colégio Churchill de Cambridge (1983), obtendo a agregação em Varsóvia com o estudo «Logic and Time» («Lógica e Tempo»). A partir de 1987 ensinou em Boston, regressando a Varsóvia em 1994. No Instituto de Viena foi a grande alma e chegou ao cargo de Reitor, função que exercia quando morreu. O objetivo da instituição que criou e animou é a promoção das trocas intelectuais entre o Ocidente e o Leste, entre a Academia e a sociedade e entre uma multiplicidade de escolas de pensamento – em nome de uma sociedade de pessoas. Aquando do alargamento a leste da União Europeia foi consultado em diversas ocasiões, presidindo designadamente ao grupo de reflexão «A dimensão espiritual e cultural da Europa» (2002-2004), tendo sido agraciado como o prémio Theodor Heuss (2004). Lembrando Thomas Morus, Michalski considerava-se um praticante da «philosophia civilior» ou filosofia civil, que visava refletir sobre as respostas da sociedade à evolução das realidades históricas e políticas.

 

«COMO SE FOSSEMOS JÁ LIVRES»
Estamos perante alguém que pertenceu à linhagem intelectual de Leslek Kolakowski, apesar de ser de uma geração diferente, tendo-se aproximado também dos fenomenologistas como Jozef Tischner e Jan Patocka. Foi em 1980, na cidade de Dubrovnik, a antiga Ragusa, num seminário de Hans-Georg Gadamer, que Michalski teve a ideia de fundar o Instituto de Estudos Avançados para pôr em contacto pensadores democráticos do leste europeu e os pensadores ocidentais, preparando o tempo, que viria inexoravelmente, de abertura europeia no fim da guerra fria. O diálogo intelectual e a amizade centrados no conhecimento e na compreensão mútua constituiria um método fundamental para lançar os fundamentos de um novo pensamento europeu assente na dignidade humana. Na mesma linha de Vaclav Havel e de Adam Michnik, o pensador polaco entendia ser necessário começar a viver como se «fossemos já livres». No entanto, naturalmente, não bastava falar de sociedade civil, sobretudo quando não havia instituições de enquadramento – por isso, seria indispensável inteligência na ação e multiplicação de contactos úteis e necessários. Assim, Michalski pôde obter apoios alemães e austríacos e até de personalidades tão diferentes como George Soros e o Papa João Paulo II. Com Cornelia Klinger e Klaus Nellen criou, assim, na capital austríaca um grupo de investigação e pensamento. A cidade escolhida não o foi por acaso. Era importante que fosse um País com um estatuto internacional especial, para facilitar os entendimentos e os procedimentos – a cidade do «Terceiro Homem» de Orson Welles e Graham Greene.

 

COMEÇAR COM JAN PATOCKA
Assim se iniciou a recolha e divulgação da obra de Jan Patocka, signatário da Carta 77, falecido nesse mesmo ano de 1977, em condições nunca esclarecidas, ligadas ao interrogatório policial. Uma obra que era apenas conhecida em meios restritos passou a ter curso no continente europeu e nos Estados Unidos. Entretanto, em articulação como o Papa João Paulo II organiza os Encontros de Castelgandolfo sobre as relações entre fé e razão, pondo em contacto experiências diversas com evidentes complementaridades – ciência, filosofia, história, sociologia… Por outro lado, apoiou o importante projeto de Tony Judt intitulado «Postwar» (2000). Para quem o conhecia pessoalmente, era uma figura inteligente e cativante, conciliador e determinado: a sua eficácia organizativa era servida por um carisma e uma grande capacidade de comunicação, por um elevado sentido de humor e uma energia inesgotável. O fundamental era criar um espaço livre de discussão de ideias, uma rede de contactos, que permitisse prevenir as tentações que a cada passo têm sido sentidas para a radicalização ora das identidades fragmentárias ora dos saudosismos burocráticos. O seu último livro obriga-nos a pensar profundamente. Em «The Flame of Eternity» Michalski parte de uma reinterpretação do pensamento de Nietzsche, segundo o paradoxo: «esta vida, a nossa vida eterna». Preocupava-o a noção de Eternidade, como elo entre o que passou e o que há de vir, entre o passado e o futuro – entre o eu e o outro. Como afirmou Cornelia Klinger: continuámos a sonhar o sonho original, em espacial iluminar as cabeças e os corações dos cidadãos e fazer da sociedade um lugar melhor. Charles Taylor, que correspondeu ao desafio de Michalski para estudar os temas do secularismo e dos seus limites, afirma que foi deixado um vazio difícil de preencher, uma vez que o seu método de fazer as pessoas dialogar era único. Oiçamo-lo numa das suas últimas mensagens: «Love reveals an unnamed, as yet unknown identity within me, and within you. In this way, it also brings to light the common condition that we – people, these animals sick with eternity – all share».  


Guilherme d’Oliveira Martins

MEMÓRIAS…

 

"Princezinha...

 

Diminuto venho, por diminutivo te trato. É bonito, creio, este jeito português de engrandecer o amor por uma qualquer forma de regresso ao pequenino de nós. Ainda há pouco, no terraço, o Alberto cantava, naquela voz de tenor, de timbre tão sonoro e claro que, sabemos, só pode sair da garganta do coração: "Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos,já era para te ver..." Ocorreu-me ainda (vê lá tu!) que até o grande amor do presépio no Natal português tem muito a ver com o gosto carinhoso do que é pequeno e nos chama a debruçar o coração. Amar o que é grande poderá ser vã cobiça, querer o que é pequeno não é já desejo, é só ternura. É como a dádiva de Cristo, o "anti-narciso": só nos outros me amo, nunca em mim. E todos somos breves, como as "sakura" na primavera todos os anos ensaiada. Permanece a lembrança, não a da nossa cabecita que se vai degenerando, mas essoutra que a luz dos infinitos astros regista, e no coração de Deus já se conhecia... Recolhi-me agora, não jantarei, vai-se escondendo o sol que tão amigo foi da nossa tarde. Fui à missa das 10 horas com a tua irmã, o Alberto também, mas ficou lá atrás, sempre em pé, exceto na consagração  -  que é quando tira do bolso do casaco um lenço impecavelmente branco que, desdobrado no chão, lhe serve de genuflectório. Para nós, católicos da Europa do norte (que partilhamos com "protestantes"), duas coisas há difíceis de entender: por um lado, a devoção pietista, um sentimento religioso mais próximo do anseio do que da teologia; por outro, um anticlericalismo latente, desconfiado. Não quero falar-te nisso agora, tive um domingo feliz, entre amigos e família. Fez-se hábito cá desta casa, sobretudo no Verão, dispensarem-se os criados aos domingos... A tua irmã já não se assusta, e deixa o Alberto entretido com os amigos: cozinham e servem-nos em mesa posta no terraço. Depois, o Nobre, que é médico, e o Videira, advogado, pegam na guitarra e na viola, para umas variações ao sabor de lembranças de estudantes e, sobretudo, do gosto familiar de estarem juntos e sempre beirões. O Alberto, que nunca fuma, acende um havano, prova uma aguardente velha..."esta ainda é das que o meu Pai fazia!" Quando agarra no saxofone, ensaia a combinação de umas notas, entra nas variações que as cordas vêm tocando, mas logo todos passam das harmonias de Coimbra para melodias de Lisboa, a que o sax empresta voz... Interrompe-se, recomeça-se, fuma-se entretanto, e recorda-se muito... Até que o Alberto larga o saxofone e aclara a voz, com um gole da "velhíssima"... E ouvimos, no silêncio do domingo campestre, na tarde tépida, no calor amigo de uma refeição partilhada e "toda feita por nós", fados e baladas do Bettencourt e do Menano,cantigas da Beira,tão cheias de montanha e de Mãe, tão sentidas da saudade inicial das nossas vidas... Chegam, mais tarde, umas novidades: lembranças do Alberto, que dá, no saxofone, umas notas para os outros, nas cordas, dedilharem um acompanhamento... Lembra-se de tudo, ninguém sabe donde lhe vem a inspiração, será sempre do gosto da poesia... Hoje, trouxe-nos um vilancico do século XVI, de Juan de Timoneda, cujo mote glosou, em jeito "renascenço-malandrista", mas cheio de graça e ternura: «Pues el tiempo seme passa / Madre mía, en buena fé, / «sola yo no dormiré. / Madre, ya sé quién me ama / Y quien servirme desea, / que no soy tuerta ni fea / ni mala para en la cama... / Qué me falta para dama? // No soy negra ni mulata / para no tener amores, / mochacha como las flores, / hermosa como la plata. / Duerma sola la beata, / que tiene causa porqué: / sola yo no dormiré!». Mas,logo a seguir,mudou de tom e ritmo e contrapôs,a Juan de Timoneda,um coevo, frei Luís de Léon: «Qué descansada vida / la del que huye el mundanal ruido, / y sigue la escondida / senda por donde han ido / los pocos sabios que en el mundo han sido!». É assim o nosso Alberto: ponto e contraponto, sempre contrapondo, nunca desgostando. Um gosto de conviver com as almas deste e de outros mundos, no mistério de uma ternura que foge,como os rios que regam... Escrevo-te com muitas reticências ... Quando estou com o Alberto, mesmo em memória, estou sempre à espera de um milagre que não vi mas sei que está ali. Falar com ele é sentir alguém que se entrega e espreita sem esperança de retorno, mas tão só pelo gosto de poder escutar um qualquer eco a que chamamos vida... E há ainda essa argúcia com que, ao retirar-me, me interrogou, citando um passo da "Citadelle" do Saint-Éxupéry: «Je me disais donc: "L´essentiel est que demeure quelque part ce dont on a vécu. Et les coutumes. Et la fête de famille. Et la maison des souvenirs. L´essentiel est de vivre pour le retour..." Et je me sentais menacé dans ma substance même par la fragilité des pôles lointains dont je dépendais. Je risquais de connaître un désert véritable,et commençais de comprendre un mystère qui m´avais longtemps intrigué... Tem razão: é essencial que num sítio qualquer permaneça aquilo de que vivemos. É meia-noite, tenho a janela aberta. Ouço um murmúrio de passos discretos, no terraço. E, num sussurro, a voz do Alberto que chama: "Rosinho, Rosinho, estás a dormir? Acorda, Rosinho, acorda!" E, logo depois, um rumor musical, uma música de dança: ruuu...ruuu...ruuu... E o Alberto a pedir: "Dança, Rosinho, dança!" Assomo à janela. Duma das casitas de pombos, postas por cima das gaiolas abertas aos pássaros livres, um pombo robusto, de papo inchado, sai para a "varanda", anda em roda e ruuu...ruuu...ruuu!!!" É longa esta carta de Camilo Maria que, na manhã seguinte a continua: falando de Eça de Queiroz e de Gogol, de Tintin e outras leituras do Alberto que, insone, as interrompia para ir, a meio da noite, servir-se de escabeche de pescada ou torresmos, à silenciosa cozinha!

  

Camilo Martins de Oliveira 

Nicholas Sparks

"I finally understood what true love meant… love meant that you care for another person’s happiness more than your own, no matter how painful the choices you face might be." Nicholas Sparks

 

 

Licenciado em economia e projectando tornar-se um atleta de alta competição, começou a escrever enquanto trabalhava como delegado de informação médica.

 

De 1998 “ As palavras que nunca te direi”, de 2011 “Dei-te o melhor de mim” , de 2002 “ O Sorriso das Estrelas”, eis algumas obras que deram consagração internacional a Sparks.

 

Adrienne, mulher corajosa, vai tomar conta da estalagem de uma amiga durante o período de ausência desta, e nesta estalagem, num dia de grande tempestade recebe Paul, único hóspede desse fim-de-semana. Surge então um amor que lhe demonstra que é possuidora de uma força que nunca julgara, nem mesmo quando se sentira uma mulher de coragem

 

Ter sido trocada por uma mulher mais jovem, deu-lhe a garra com a qual não queria sequer tentar compreender o ex-marido e, inexplicavelmente, passou a pertencer-se por inteiro, mas numa espécie de peças arrumadas com as quais criaria os filhos. Agora era diferente. Agora era o registo que se voltava a dar a si própria, permitindo que este amor lhe enchesse o ar.

 

Neste sábado, o livro “ O Sorriso das Estrelas” disse também do quanto o desejo de voltar a amar é tão imprevisível como a força necessária para se entender, o quanto a morte, que leva o nosso amor, nos arrasta numa outra morte em que parte de nós se morre.

 

Um dia alguém é, e continuará sempre a significar tudo para nós: mais, nunca deixaremos de assim pensar e sentir. Varrem-se os anos da nossa memória antes do amor que agora se acede, como se não fossem mais do que pisadas na areia que a espuma das águas brandamente elimina com o nosso consentimento.

 

Mas eis que começa uma outra longa viagem que virá a ser, em parte,  de recordações tão reais como as das lágrimas que escorrem quando o mar chora por tão brava chuva lhe bater.

 

Afinal o passaporte que Paul lhe entregara, era muito um extenso carimbo de carta para um dia, não para aquele em que recebera o passaporte. Seria afinal para os tempos em que incapaz de se deixarem, passariam a velhice juntos. Ou ainda para outro: aquele em que a morte os separaria.

 

Um dia uma dor recorda a Adrienne responsabilidades contraídas para com terceiros: crueldade inaudita, ou não pensasse que era a única em Paul.

 

O cheiro dele ainda se mantinha. O cheiro da loção que ele usava também ainda ali estava. E na estalagem, os ecos dos soluços de uma mulher que, para além de chorar, nada mais podia fazer.

 

Paul era médico, mas nunca lhe dera receita que ela pudesse aviar no desconhecido que a aguardava e que agora vivia. A idade, vinha a passos largos, e receava acreditar nos mesmos pontos de futuro que confundem os idosos como parte afinal do seu passado.

 

O seu passado não fora apenas jardim; o passado incluía também uma boa dose de desgostos. Contudo, agora sentia-se uma sobrevivente a Paul, e tentava concentrar-se nas coisas que lhe davam prazer. Se as suas conjecturas do que via e ouvia andassem perto da verdade, deixava-se sentir satisfeita. Também lhe acontecia pensar que queria partir deste mundo pois que a vida já lhe dera tudo a viver, e para ela a vida era aquilo que tinha vivido, e da qual, já farta, se despediria sem recuo.

 

Digo: encontrei neste livro um arguto calendário, esse mesmo que a cada manhã recordava a Adrienne que se tratava de mais um dia sem que Paul estivesse a seu lado. Um calendário que a acompanhava no passeio pelas praias, nas quais, cheia de bom senso, sorria apenas quando as ondas não lhe contavam o que ela a ninguém tinha revelado. Afinal só a ela mesma se abrira e sempre em dias de bruma, não fosse compreender que de si, não gostava tanto quanto julgava.

 

Pela madrugada, uma clareza despertava-a constantemente do sono leve que dormia, e ouvia-a muito ao longe e muito nitida

 

The truth only means something when it’s hard to admit.

 

Teresa Vieira

CRÓNICA DE GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS EM XI'AN - VIAGEM DO CENTRO NACIONAL DE CULTURA À REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, MACAU E HONG KONG

 

Vindos da capital contemporânea da China, chegamos à cidade de Xi’an - antiga capital da unificação do Império do Meio sob a acção de Ch'in Shih Huang-ti que reinou entre 221 e 210 a.C.. E se hoje falamos de China, tal deve-se à referência a este primeiro imperador. A cidade tornou-se também um destino da Rota da Seda, que partia de Ormuz mas que ligava o Mediterrâneo à China. Estamos perante uma realidade que permitiu a abertura de um império tradicionalmente fechado para algo que pôde ser conhecido dos europeus: foi a rota que levou o Budismo à China e que permitiu a Marco Polo dar a conhecer esta riquíssima cultura. Xi’an tornou-se mais conhecida nas últimas décadas graças à descoberta dos Guerreiros da Terracota: no túmulo do primeiro imperador, o gigantesco exército de que se conhece uma pequena parte. Os números são impressionantes e falam por si.

 

 

No primeiro pavilhão, vemos mil guerreiros expostos em onze corredores, o que é apenas um sexto do número existente de figuras enterradas no solo. No segundo, temos os restos de noventa carros, de quatrocentos cavalos e de mil guerreiros. E no terceiro, sessenta e oito figuras correspondentes ao comando do grande exército que protegia a viagem do genial imperador no reino dos mortos.

 

 

Os trabalhos arqueológicos continuam, são morosos e muitos complexos. Pode dizer-se que é a exploração arqueológica mais célebre da actualidade. A cidade de Xi’an está intimamente ligada às Dinastias de Qin e Han primeiro, e depois à Dinastia Tang. A história do império só pode ser compreendida nesta cidade, a começar pelo rigoroso sistema de recrutamento dos funcionários através de exames imperiais que valorizavam o mérito em lugar da existência de uma nobreza hereditária.

 

 

Uma visita da urbe leva-nos às muralhas da cidade e, simultaneamente, leva-nos também às Torres do Sino e do Tambor bem como aos Museus de Xi’an e à Floresta de Estelas.

 

 

 

 

Neste museu da Floresta de Estelas, nós encontramos aquilo que foi descoberto pelo Padre Álvaro Semedo em 1626 (padre natural de Nisa). E aquilo que foi descoberto dá conta da chegada à China em 781 da primeira missão de cristãos nestorianos vindos da Pérsia a que possivelmente Marco Polo faz referência, a primeira referência à terra de Preste João. A cidade era a cabeça do império com os seus seis ministérios: dos assuntos civis, dos ritos, das finanças, da guerra, da justiça e das Obras públicas. E simultaneamente temos dois grandes mercados que são como que os pulmões do corpo que era esta urbe. Por fim fomos às termas, as termas onde recordamos a tragédia amorosa da mitologia da Dinastia Tang.

 

 

 

FERNANDO AMADO: O DISCURSO DA ARTE E DA TÉCNICA

 

Temos aqui referido textos de Fernando Amado recolhidos na coletânea intitulada "À Boca de Cena". E efetivamente, trata-se de intervenções sobre aspetos estéticos, mas também técnicos e de gestão das artes de espetáculo, e em particular do teatro. Hoje, recordamos uma análise notável de Fenando Amado sobre arte e técnica, à qual Almada, entre outros participantes, por exemplo António Dacosta, Afonso Botelho, Eduardo Viana, Vasco Futscher Pereira, deram réplicas em geral convergentes, num debate realizado no Centro Nacional de Cultura em 1951.

 

Fernando Amado discorre sobre as relações entre a arte e a técnica, na perspetiva de uma complementaridade em que a arte, isto é, a criação, prevalece.

 

“Não digo que a técnica não seja um tesouro.  Mas para um artista a técnica é de ordem pessoal, intransponível, intimamente relacionada com o seu próprio trabalho. Nem de longe ele pode admitir que a técnica, isto é, o modo como ele tem de submeter (às vezes pela astúcia) a matéria, seja o que vai dar forma à poesia e lançar a ponte sobre as almas e corações”.

 

O primeiro aspeto que quero aqui ponderar é precisamente, esta distinção, por vezes esquecida, entre a criação propriamente dita e a expressão técnica da sua transmissibilidade. Claro que uma não se realiza sem a outra, pois arte é criação mas também comunicação, seja simples e direta por uma declamação, por exemplo, por uma recitação, seja pela complexidade crescente que impõe uma sinfonia executada por uma orquestra, ou um filme ou uma encenação do texto teatral. 

 

E daí que Amado conteste uma convicção generalizada, aplicada às artes plásticas como exemplo, que “desde que (o pintor) saiba obter efeitos com as misturas das cores do espetro solar e saiba geometricamente contornar uma sombra e construir uma perspetiva, está pronto a entrar em colóquio com a obra de arte”… não chega; falta o principal, a criatividade a “ponte sobre as almas e corações”…

 

Almada diz que “a Arte é universalmente de todos os artistas. A técnica é exclusivamente de cada um. (,,,) É secreta”. António Dacosta gosta de avaliar uma obra de Arte pela reação que produz… Ainda que uma pessoa não perceba, teve uma reação boa ou má. Futscher discorre sobre as “incompatibilidades entre o artista - de qualquer tempo - e o seu público“, e Eduardo Viana insurge-se contra reações do público, no caso concreto, a uma exposição do pintor brasileiro Cicero Dias: “as senhoras, quando passavam diante dos quadros diziam todas uma à uma: Que horror! (…) E eu digo: onde está o horror naqueles céus, naquelas tonalidades deliciosas? Podiam ao menos dizer também: que lindas cores. Mas não! E Afonso Botelho questiona: “Será a Arte plástica uma arte pura, de tal modo que a forma e a cor, que fazem parte da sua essência, basta para a definir e portanto, para a tornar sensível?”

 

A conclusão de Fernando Amado é, apesar de tudo, no mínimo esperançosa: “Entre a gente nova está sucedendo qualquer coisa extraordinária na nossa terra. Vemos manifestar-se com vigor uma curiosidade sã, uma vontade generosa de realizar, que não se limita a devaneios. Surgem núcleos diferentes na música, nas letras, no teatro, nas artes plásticas. A atividade deste Centro Nacional de Cultura é um sintoma entre tantos”.

 

DUARTE IVO CRUZ

VERDI, VERDE-GAIO, PÁSSARO, VIDA VAI…

 

Minha Princesa de mim:
 
Fui ao mercado com o Alberto. É sempre com imenso gosto que percorro com ele a Ribeira de Lisboa e conversando deambulamos por esse mercado à beira-rio... O Alberto correu mundo e fala línguas, mas nunca deixou de ser o beirão cuja primeira revelação de Deus e sentimento da graça foi essa convivência, desde pequenino, com a Natureza: temor e tormenta, bonança e libertação na alegria calorosa do sol, vida que morre na terra e da terra nasce, sombras e segredos, flores e cores, frutos e prazeres, transpiração e trabalho, mas sempre, sempre, contemplação e ação. Os campos maravilham-nos e oferecem-se-nos. O lema dos monges antigos  -  "ora et labora"  -  resume bem esse encontro do homem com Deus, da mística com a cultura, que é o trabalho agrícola. Também no Oriente acabam por se fundir no círculo da vida o ying e o yiang, a harmonia é uma submissão recíproca de quem fecunda e é fecundado, e as estações do ano acompanham essa conversão contínua da morte e da ressurreição. Talvez seja mais difícil encontrar na cidade essa íntima, genética, comunhão com o mundo. O nosso Alberto vai aos legumes, escolhe-os para que lhe saibam melhor as sopas camponesas que a Diamantina (a cozinheira lá de casa) preparará em lume brando e tapando os tachos, "p´ra que fique lá a riqueza toda,meu senhor!" Eu compro fruta e flores para levar à tua irmã. Antes de partirmos, o Alberto chama o motorista, para o ajudar a carregar no carro as gaiolas cheias de passarinhos, com cuja compra se despede. Ao chegar a casa, abrirá as gaiolas que pendurou numa parede do vasto terraço que se debruça sobre o jardim, e largará os pássaros. Com uma alegria amiga, quase infantil. Muitos deles voltarão a abrigar-se nas prisões de porta aberta, alguns virão comer à mão que esse homem lhes estende, com alpista. E este nórdico que sou, citadino e bruto, pasma para a cena, como menino para o sorriso de sua mãe. Descubro e encontro. Hoje, comprei cerejas, portuguesas da Beira, as melhores do mundo. Já lá fomos colhê-las, lembras-te? Passámos dos "boulevards" gelados de Paris no Inverno para a floração da Primavera em Sintra, até aos cerejais da Gardunha,no início do Verão. Já no Outono, fomos às castanhas, a Marvão... Citadinos embora, respirámos juntos. "A Lui che nell´erba del campo / La spiga vitale nascose, / Il fil di tue vesti compose, / De´pharmachi il succo temprò"... // "ÀquEle que na erva do campo / a espiga vital escondeu, / teceu o fio dos teus vestidos, / doseou o suco das plantas curativas, / criou o pinheiro inflexível ao suão, / o salgueiro que obedece à nossa mão, / e o larício que o inverno afronta / e o álamo que a água aguenta. / A Esse pergunta,ó desdenhoso, / porque é que na inóspita charneca, / ao sopro da brisa brava, / faz surgir a tácita flor, / que abre, perante Ele só, / o fausto do seu véu cheio de cor, / que espalha aos desertos do céu / os olores do seu cálice, e morre". Respigo estes versos do "Ognissanti" de Alessandro Manzoni,último e incompleto hino do projecto de poemas sacros que,cinquenta anos antes,em 1810,na sequência da sua conversão, esse Verdi da literatura italiana do "risorgimento" iniciara: entre 1812 e 1815, publicara "La Risurrezione","Il Nome di Maria","Il Natale" e "La Passione". Em 1822, publicaria ainda "La Pentecoste". Sinto no "Ognissanti", nesta contemplação poética da ação da graça, ou da presença íntima de Deus no coração de tudo  -   e no coração do homem que não desdenha mas abre ao mundo o límpido olhar da humildade para, em festa de Todos os Santos, comungar também no mistério da vida de todas as coisas -  o mesmo louvor das criaturas que se manifesta no "Cantico di Frate Sole" de S.Francisco de Assis. Aliás, o hino de Manzoni chama Sol a Deus, logo na primeira quadra: "Quel Sol che in sua limpida piena / V´avvolge or beati lassú...", esse Sol que no seu pleno esplendor vos envolve, ó bem-aventurados! Mas já o poeta de Assis cantava: "Laudato sie,mi´Signore,cum tucte le tue creature, / Spetialmente messor lo frate sole, / O qual é dia e pelo qual nos alumias. / E ele é belo e radiante,com grão esplendor: / de ti, Altíssimo,traz significação....   ... Laudato si´, mi´Signore,per sora nostra matre terra, / la qual ne sustente et governa, / e produz diversos frutos com flores coloridas e erva..." Aristocrata milanês, o conde Alessandro Manzoni era, por sua mãe, neto do marquês Cesare de Beccaria autor do tratado "Dei dilliti e delle penne"e, com os irmãos Verri, parte fundadora, nos anos 60 do século XVIII, de uma tertúlia que se denominava "I Pugni" e publicava um jornal: "Il Caffe". Títulos sintomáticos de um desejo de renovação cultural e social que desabrochará no "Risorgimento". Tendo ido viver para Paris, com sua mãe, depois da morte do companheiro de exílio dela, Carlo Imbonati, é na Cidade-Luz que, curiosamente, Manzoni regressará à Igreja Católica, por altura do seu casamento com Henriette Blondel, filha de um banqueiro de Genebra, e calvinista entretanto também convertida à confissão católica. Ao que parece por influência do padre Eustachio Degola, com tendências jansenistas. Tudo reunido para que o regresso à Igreja se faça como procura do espírito evangélico, do amor dos pobres e da justiça. Penso que aquele cenáculo de "Os Punhos" (não sorrias...) queria mais a restauração da tradição "italiana" do poder autárquico do que uma união nacional da península itálica. Tal como Verdi, nas suas primeiras óperas, procuraria mais a realização desse vulcão dramatúrgico que lhe musicava a alma do que a proclamação de uma Itália una e livre. Mas o império austríaco era inimigo de si próprio,não teve governo capaz de entender sentimentos ancestrais de pertença a memórias que,se reunidas e conjugadas por uma simples ideia mobilizadora de elites (que se sentem estrangeiras) e de populações (que são a maioria dos 80% de analfabetos que estatisticamente então se registam), são fermento do que chamamos "Nação". A qual, uma vez controlado um território,que com o povo institucionalmente se organiza,realiza outra ideia. Que é a de Estado. O artífice da Itália ressurgida, foi um Camillo, o Benso, conde de Cavour, ligado ainda aos nossos, pelos Lamporecchi. Soube jogar com tudo e todos, até com Garibaldi que, natural de Nice, não lhe perdoou a cedência, à França de Napoleão III, da Savoye e de Nice, ou ainda a retenção do ataque final aos Estados Pontifícios  -   que, a concretizar-se, embaraçaria o imperador dos franceses  -  em compensação pelo apoio que recebeu para a afirmação da independência e da hegemonia do reino do Piemonte na Itália libertada de Áustria... Quando morreu, em 1862, Verdi fica sem voz: Camillo Cavour fora, não só a força política subjacente ao movimento elitista e popular que tornara o grito de "Viva Verdi!" na manifestação pública da sigla "Viva Vittorio Emannuelle Re d’ Italia!", mas o homem de Estado que o convencera, como a Alessandro Manzoni, a aceitar ser eleito para o parlamento do novo reino, em Fevereiro de 1861. Demite-se logo a seguir à morte do político que tanto admirava. Não tem coragem para assistir às cerimónias fúnebres. Tal como essa coragem novamente lhe faltará, onze anos depois, pela morte de Manzoni, o unificador da língua italiana pelo dialecto toscano (e foi propositadamente passar uma temporada a Florença para "lavar nas águas do Arno" o estilo e a língua), o autor de "Adelchi", sobre o desmoronamento do reino lombardo na Itália do século VIII, e da joia do romantismo literário italiano que é o romance "I Promessi Sposi", em que a narrativa das vicissitudes do amor entre um casal lombardo será finalmente guiada pela preocupação com a pauta toscana do italiano (língua oficial e nova) e pela fidelidade ao cristianismo evangélico, na aceitação, humilde e obediente, dos desígnios da Providência... Mas Giuseppe Verdi, oferecerá à memória de Manzoni, a "Messa da Requiem" que já pensara para Rossini e Cavour. A 22 de Maio de 1874, na igreja de S.Marcos, em Milão, um ano depois da morte de Alessandro Manzoni, canta-se pela primeira vez o "Requiem", cuja intenção Verdi expusera, em carta a Ricordi, datada de 3 de Junho de 1873, escrita portanto no dia seguinte ao do seu retiro e oração junto à campa do escritor: "Gostaria de manifestar o afecto e a adoração que sempre prestei a esse Grande Homem que já não está e que Milão tão dignamente honrou. Gostaria de compor uma missa pelos mortos, para ser executada no próximo ano, no aniversário da sua morte. A missa terá dimensões muito vastas e, além de uma grande orquestra e de um coro importante, exigirá também (não posso, de momento, ser mais preciso) quatro ou cinco cantores principais. Pode considerar esta carta como um compromisso formal". A 24 de Janeiro de 1901 (já eu tinha um anito,vê tu bem!),pela madrugada,Giuseppe sente a hora da despedida. Para o encontro com a sombra e a luz, chamam à sua cabeceira o pároco de San Fedele, o padre que acarinhou os momentos derradeiros de Alessandro, quase trinta anos antes. "Um demorado aperto de mão, um olhar dizendo, uma expressão profunda, asseguravam-me de que ele tinha entrado num pensamento religioso. Foi apenas um instante, mas, para ele, para mim, um instante precioso. Tinha a língua parada, mas os seus olhos falavam-me,como me falava o aperto da sua mão. Foi o último olhar, a última saudação do grande músico italiano. Tive só tempo de os recolher. Não deu mais sinal de si e expirou serenamente"... O Alberto, depois do jantar, por me ter ouvido falar do que  -  disse eu  - seria o "Requiem" de Verdi por ele-mesmo, pôs no gira-discos a gravação feita por Carlo Maria Giulini, com a Elisabeth Schwartzkopf, a Christa Ludwig, e os Nicolai, o Gedda e o Ghiaurov. Cerrou os olhos e deixou-se estar. Admirei-o ainda mais: estava ali, sereno como um franciscano, o homem que não quer que lhe plantem ciprestes na quinta, só porque lhe lembram um cemitério... O céu é bem maior do que nós, Princesa". Alberto Martins de Oliveira morreria alguns meses depois. Terá sido levado pelos pássaros que libertou?

  
Camilo Martins de Oliveira 

3ª CRÓNICA DE GUILHERME D'OLIVEIRA MARTINS EM PEQUIM - VIAGEM DO CENTRO NACIONAL DE CULTURA À REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, MACAU E HONG KONG

 

A Cidade Proibida está no coração de Pequim e representa um tesouro que lembra vinte e quatro imperadores que reinaram durante quinhentos anos. O princípio da harmonia Yin-Yang é a chave da arquitectura e da decoração da China. A Cidade Proibida tem no seu palácio 9999 divisões e as portas estão cravejadas de oitenta e um cravos de bronze, 9 por 9. Há duas zonas nítidas no complexo imperial, a dos cerimoniais e das recepções oficiais bem como a da intimidade da vida do imperador, onde se encontravam as concubinas e os eunucos.

 

  

 

A partir da varanda sul, o imperador dirigia-se aos seus súbditos e presidia às cerimónias militares. Aí aliás, Mao Tsé-Tung proclamou a República Popular, a 1 de Outubro de 1949. O maior compartimento do palácio, a abrir a zona privada, era utilizado para a coroação do imperador: é o Salão da Harmonia Suprema. Todos nos lembramos do ambiente trágico que rodeia o filme “O Último Imperador”. Recordamo-lo ao visitar os recantos do Palácio Imperial, mas o que prevalece é a memória antiga da Dinastia Ming e Qing. Os jardins são encantadores: mil outonos e mil primaveras. Aqui eram feitos sacrifícios rituais. Na zona das concubinas há hoje, colecções de jade, de esmalte e de relógios imperiais. No Pavilhão da Longevidade Tranquila, veem-se os utensílios quotidianos do imperador. No Salão do Cultivo da Mente, habitou o filho do célebre Imperador Kangxi num momento importante em que a abertura do império poderia ter ocorrido. Infelizmente, a questão dos ritos fez retroceder tudo e levou à expulsão dos cristãos apesar das boas relações mantidas por muitos missionários jesuítas. Como já dissemos, a parte sul do Palácio Imperial tem um papel mítico especial: era onde os altos dignitários e o imperador assistiam às cerimónias militares.

 

 

Estamos na Praça de Tiananmen, a Praça da Porta da Paz Celestial. Aí está o Mausoléu de Mao Tsé-Tung. É a praça das manifestações e dos acontecimentos de 1989. Aí está o Palácio do Povo, sede do Parlamento Chinês.

 

 

 

Mas, permito-me realçar a existência do moderno Museu Nacional da China, que resultou da fusão do Museu da História da China e do Museu da Revolução representando uma nova atitude histórica. Desde a antiguidade aos tempos actuais, é o mais moderno museu da China, usando das mais actuais técnicas de museologia.

 

 

De partida para Xi’an, a velha capital da unificação chinesa, fica-nos desta cidade moderna de Pequim, a necessidade de cultivarmos o diálogo entre culturas; a marca maior do conhecimento mútuo e da dignidade humana, o que é a cultura afinal senão essa exigência de respeito e de paz.