Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
João de Deus Ramos, na sua obra «Portugal e a Ásia Oriental» (Fundação Oriente, 2012) reúne um significativo acervo de estudos e comunicações que nos permitem compreender melhor a relação de diálogo entre as culturas da China e de Portugal. Obedecendo a critérios de rigor histórico, o autor articula os factos e os conhecimentos com uma sensibilidade especial relativamente à contemporaneidade e aos desafios futuros colocados por este intercâmbio civilizacional. Trata-se, pois de uma obra de leitura indispensável, sobretudo num momento em que o CNC visita o Grande Império do Meio.
DIÁLOGO E COMPLEMENTARIDADE
A história da globalização reserva-nos casos diversos, que merecem uma atenção especial, sobretudo pela necessidade de compreendermos o significado atual do diálogo e da complementaridade entre diferentes culturas. Lembremo-nos do fascínio causado na Europa pelas civilizações orientais, e em especial pelo antigo Império do Meio. Se lermos o «Tratado das Cousas da China» de Frei Gaspar da Cruz (1569) facilmente entendemos a atração por essa importante Nação da Ásia: «os Chinas a todos excedem em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e de governo, e em abundância de possessões e riquezas». O certo é que encontramos uma imagem positiva e favorável do lado português, que contrasta, nos primeiros contactos, com alguma desconfiança e temor do lado oriental. É natural esta assimetria, sobretudo considerando que a China tem uma história muito antiga e uma tradição de distância e de proteção… Para a evolução riquíssima, em contactos e na relação recíproca, contribuíram os missionários europeus jesuítas, chegados à China nos séculos XVI e XVII, coordenados pelo italiano Matteo Ricci (1552-1610), discípulo de Cristóvão Clavius, o mais importante astrónomo do seu tempo, responsável pela reforma do calendário moderno. Francisco Xavier tinha morrido em 1552, na pequena ilha de Sanchoão, à vista do Império do Meio. Ricci chegou ao Oriente em 1582, após longa viagem iniciada em Lisboa – com chegada ao entreposto de Macau, tendo logo começado a estudar a língua e os costumes locais e estabelecendo importantes contactos com a nobreza e a intelectualidade. No ano seguinte, o Padre Matteo foi estabelecer-se na Província de Guangdong e, em 1589, vemo-lo em contacto estreito com estudiosos confucionistas, ensinando-lhes astronomia, matemática e geografia. Já em janeiro de 1601, estabelece-se na cidade de Pequim, onde publica «Os Seis Primeiros de Euclides», sendo desse tempo uma colaboração muito intensa entre missionários, letrados e académicos chineses.
A VISITA DO IMPERADOR KANGXI
Esta relação, de intenso intercâmbio, culminaria na assinatura do Édito da Tolerância (1692). Mas antes temos de lembrar o episódio da visita do Imperador Kangxi (1654-1722) à casa dos jesuítas, em 1675, altura em que escreveu o aforismo «Jing Tian», em sinal expresso de aproximação. Segundo a descrição do Padre Gabriel de Magalhães: «com aquele tão afável e honroso recado quis suprir o grande amor e afeto (…) tinha faltado». O embaixador João de Deus Ramos, em «Portugal e a Ásia Oriental» (Fundação Oriente, 2012), dá-nos uma esclarecedora síntese sobre esse episódio e o seu significado. O imperador escreveu então dois caracteres cuja leitura poderia ser feita de acordo com a mensagem cristã, sem abdicar da tradição chinesa. «Jing Tian» significava «reverenciar o céu», o que poderia para alguns não se referir ao Deus dos cristãos, já que o Imperador, ele próprio, era designado como «Filho do Céu». Apesar da ambiguidade ou do equívoco, o certo é que o gesto do Imperador teve a maior importância. Infelizmente, o desenvolvimento da chamada «questão dos ritos» levou à condenação da atitude dos jesuítas de abertura aos costumes locais, à rutura com as autoridades e à expulsão dos cristãos (1724). Note-se que os missionários comportavam-se como chineses, estudavam o pensamento de Confúcio e conheciam bem a literatura e a filosofia orientais. Entretanto, no domínio científico, «os jesuítas haviam observado a incapacidade para prever corretamente a ocorrência de eclipses, bem como para resolver a relação entre os calendários solar e lunar». A matemática e a astronomia tornaram-se decisivas. Os pedidos para Roma eram persistentes: João Rodrigues, de Cantão, pede: «Mandem-nos livros de matemática em grande quantidade». Ricci solicita apoio a Galileu e o Padre Longobardo insiste: «Mandem-nos matemáticos». E a verdade é que os pedidos foram atendidos, e vários matemáticos e astrónomos europeus foram para o Império – estabelecendo-se em Pequim, penetrando na Cidade Proibida e convivendo com os mandarins e dignitários da corte. É o momento em que o Padre Matteo Ricci passa a ser tratado como «Hsi-ju» – que significa «homem sábio do Ocidente». O seu contributo para a correção do calendário chinês é decisivo – uma vez que antes estava baseado nos ciclos lunares, tendo-se afastado dos ciclos das estações anuais. E o certo é que a medida do tempo era fundamental para o Império, já que era um instrumento de uniformização da vida civil, de coleta dos impostos e de organização das colheitas. No entanto, em alguns aspetos a astronomia ocidental estava mais atrasada do que a chinesa em aspetos cosmológicos. Por exemplo, os chineses entendiam que as estrelas não estão cravadas numa esfera, situando-as no espaço interestelar, não havendo dez esferas (como Camões descreve), onde os corpos celestes se moveriam, nem ar entre planetas e estrelas. Os experimentados astrólogos chineses tinham detetado ocorrências nas estrelas, nomeadamente a explosão em supernova de 1054, enquanto os ocidentais estavam equivocados sobre a imutabilidade dos céus.
UM INTERCÂMBIO ENTRE MATEMÁTICOS
Os astrónomos do Império faziam observação sistemática dos fenómenos celestes. Cinco matemáticos olhavam o firmamento durante a noite, de modo a que nada lhes passasse despercebido – um fixava-se no zénite e os restantes nos quatro pontos cardeais. Quando os padres jesuítas lhes ofereceram telescópios contribuíram para melhorar as suas observações, inclusive sobre as fases de Vénus, os satélites de Júpiter e a estranha forma de Saturno. Assim se compreende a grande influência que os jesuítas ganharam na corte do Imperador, tendo sido encarregados de reconstruir e equipar o Observatório de Pequim com esferas celestes, quadrantes metálicos e telescópios avançados, tornando-o o mais moderno do seu tempo. Assim, mesmo depois do édito de 1724, que expulsou os cristãos, os jesuítas foram autorizados a residir em Pequim e continuaram a ocupar lugares de relevo na hierarquia científica da corte – integrando o Tribunal Astronómico (Observatório) e o Tribunal das Matemáticas (organismo encarregado da matemática, geografia e cartografia) Em 1724, o Padre André Pereira (1689-1743), natural do Porto, tornou-se astrónomo e matemático da corte e foi promovido pelo Imperador a vice-presidente do Tribunal Astronómico. Também o Padre José de Espinha (1722-1788), natural de Lamego, foi elevado à dignidade de Mandarim, como presidente da mesma instituição. E segundo a historiografia conhecida, é de admitir que os padres de Pequim tenham ajudado a manter a situação de Macau. Em 1622, a cidade foi cercada por terra e mar pelas forças do Governador de Cantão e os padres da corte fizeram diligências coroadas de êxito para manter o «modus vivendi» de Macau. Estamos, assim, perante um notável e premonitório exemplo de cooperação cultural e científica, que hoje merece ser recordado como sinal de futuro.
Continuámos em Pequim gozando a impressão do fascínio.
O Observatório de Pequim foi o lugar de um Seminário Cientifico organizado pelo Embaixador Jorge Torres-Pereira, um velho amigo das iniciativas do Centro Nacional de Cultura. Aqui lembrámos os padres jesuítas e a excelente relação que estabeleceram com o Imperador Kangxi. Os jesuítas chegaram à China no último quartel do Século XVI durante a dinastia Ming e depressa ganharam o respeito dos letrados e dos meios cultos do império, afirmando-se como os experimentados astrónomos e matemáticos. Num gesto inédito, o imperador, em sinal de excepcional consideração, deslocou-se em 1675 à casa dos jesuítas e escreveu o aforismo “Jing Tian” que significa reverenciar o céu; o que era um sinal de aproximação relativamente ao Deus dos cristãos, apesar das desconfianças de muitos em virtude do imperador se designar a ele mesmo como filho do céu. Neste gesto havia por certo um equívoco, mas era algo muito importante que Matteo Ricci e os seus companheiros desejaram aproveitar. Daí ter sido promulgado em 1692 o importante édito de tolerância que muito beneficiou a presença dos cristãos no Império do Meio. Visitámos o que foi a casa dos jesuítas que é hoje a Igreja de Nantang ou da Imaculada Conceição fundada em 1650 pelo jesuíta Adam Schell.
E fomos ainda ao cemitério dos jesuítas onde muitas das estelas funerárias foram destruídas ao longo do tempo, a última das vezes na revolução cultural. Aqui estão recordados catorze padres jesuítas, mas falta ainda a referência ao Padre Tomás Pereira, músico, matemático, clérigo e cultivado, que se tornou próximo do imperador. O seu exemplo é premonitório uma vez que representa as possibilidades de cooperação científica cultural e educativa, hoje mais importante do que nunca.
O director do observatório, Zhu Jin, e o Professor Jin Guo Ping, traçaram um quadro que merece uma ponderada reflexão para o futuro do Observatório de Pequim, que no Séc. XVII tornou-se o mais moderno do seu tempo. O calendário chinês pôde ser regularizado graças aos conhecimentos científicos trazidos pelos jesuítas e pelo intercâmbio de saberes que possibilitou a todos um ganho significativo. É um exemplo. Um exemplo que não esqueceremos.
Estou desde domingo em Lisboa,vim passar a semana com o Alberto e a tua irmã. Cheguei cansado da viagem, não parei naqueles quinze dias de Japão, e a paragem em Paris não chegou para me desvanecer o "jet-lag". Imagina que esta noite tive um sonho estranho. Estava em Tokyo, apanhei um táxi na Aoyama-dori, ia jantar com os Sakai, ali para as bandas de Jiyugaoka. Conheço o percurso, pois a rua, como tantas em Tokyo, não tem nome, mas sei desembrulhar algum japonês para explicar ao taxista por onde seguir: "masugu", "hidari ni magaté kudasai", "ano...aré migi desu!". Mas, repentinamente, ao chegarmos a Omoté-Sandô, já não estávamos na Aoyama-dori: íamos pela avenida de Roma fora, já perto da praça de Londres,em Lisboa! O bom do motorista entra em pânico, vendo todos os carros a circular pela direita e só ele pela esquerda. E eu mergulho em angústia quando, por detrás da igreja de S. João de Deus, o táxi pára num beco que termina numa capoeira. O sonho acaba comigo, interdito, imóvel, a ver o motorista pegar num saco de grãos de milho e ir lançá-los às galinhas, cacarejando como elas. Ocorreu-me Pascal: " Je ne sais qui m’a mis au monde, ni ce que c´est que le monde, ni que moi-même; je suis dans une ignorance terrible de toutes choses; je ne sais ce que c´est que mon corps, que mes sens, que mon âme et que cette partie même de moi qui pense ce que je dis, qui fait réflexion sur tout et sur elle-même, et ne se connaît non plus que tout le reste"... Jean Guitton cita este texto para afirmar, numa nota biográfica introdutória a uma edição das "Pensées" de Pascal: "Toda a vida dele é uma tentativa desesperada, até à morte, para tentar compreender". O facto de sofrer de um mal congénito - que recorrentemente lhe trazia tremuras e perturbações intestinais e, quando criança, fobias histéricas (à água ou à aproximação dos pais um do outro) tê-lo-á empurrado para esse desespero de querer tudo entender... É curioso observar como Pascal, desde pequeno, se interessou pela geometria e pela aritmética, pela física e pela matemática. Deixou-nos ensaios sobre os corpos cónicos,o triângulo aritmético,o vácuo,o equilíbrio dos licores ou a gravidade da massa do ar. Foi considerado, por Leibniz, "um dos melhores espíritos do século". A investigação científica, que nunca abandonou, não o desviou, todavia, do recurso ao que estimava serem, pelo percurso da sua conversão religiosa, outros meios de acesso ao conhecimento.
Daí a sua crítica de Descartes: "Não posso perdoar a Descartes: ele bem quisera, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus; mas não conseguiu impedir-se de O levar a dar um piparote para pôr o mundo em movimento; desde então, já não sabe o que fazer de Deus... A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição; mas a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores". Pessoalmente, penso que Pascal esteve mais perto dos jansenistas, afetivamente - até porque a sua irmã Jacqueline, que lhe era tão querida, professara em Port-Royal - do que, teologicamente, do jansenismo. Mas é inegável que "pensassente", na tradição de Sto. Agostinho, de modo próximo do flamengo Jansenius, bispo de Ypres, no seu "Augustinus". A conversão do homem, escravizado pelo prazer, corrompido pela concupiscência, só é possível pela graça agente de Deus que, sem destruir o livre arbítrio humano, não o submete necessariamente. Conhecida por "tese da graça eficaz", opõe-se à "tese da graça suficiente", defendida, na esteira de Molina, pelos jesuítas coevos de Pascal, que afirma a ineficácia da graça sem participação do livre arbítrio. Deixemos a teólogos escolásticos as argumentações de diferenças e oposições. Creio que, em Pascal, a religião é sobretudo um exercício de abertura mística à operação da Graça. Pois que, "se não nos devemos admirar por ver pessoas simples acreditarem sem raciocinarem", também é verdade que "a maior das verdades cristãs é o amor da verdade". São aparentemente muitos os paradoxos em Pascal. Mas são os nossos, os da nossa condição. Os "Pensamentos" são uma obra incompleta, até desligada: Pascal ia-os anotando em folhas de papel, riscava depois uns, corrigia outros...ou, ainda, cortava as folhas em tiras, para separar ideias, e perfurava-as depois, de modo a poder arquivá-las diferentemente ligadas por um cordel. Numa dessas selecções,reunida sob o título "divertimento",escreve: "A nossa natureza está no movimento; o inteiro repouso é a morte... Condição do homem: inconstância, aborrecimento, inquietação... Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto fosse menos divertido, como os santos e Deus... A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e todavia é a maior das nossas misérias. Porque é o que nos impede principalmente de pensar em nós, e o que insensivelmente nos perde. Sem isso estaríamos no aborrecimento, e esse aborrecimento empurrar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento agrada-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.” Este homem, filho da nobreza de toga - não histórica, mas de ciência e cargos remunerados - fez amigos em meios muito diversos, desde a alta nobreza aos intelectuais, dos boémios aos religiosos confessos. Morreu aos trinta e nove anos, deixando obra: para além dos ensaios científicos e dos "Pensamentos", muito disto só postumamente publicado, escreveu em colaboração, ou redigiu a maior parte do textos que compõem os "Écrits des Curés de Paris" e a "Lettre d´un avocat au Parlement à un de ses amis", que, aliás, dão continuidade às suas "Provinciales", nas polémicas com os jesuítas. As cartas ao provincial dos jesuítas,"Les Provinciales", são assinadas pour Louis de Montalgue que, alhures, o próprio Pascal trata como outra pessoa,tal como fará com Amos Detonville que, relativamente aos seus trabalhos matemáticos para o "concours de la roulette, que ele abre, assinará a " Lettre à M. de Carcavy"; o mesmo fará com Salomon de Tultie, autor da "Apologie de la réligion chrétienne". Nenhum deles é simplesmente um pseudónimo: Pascal imagina-os e cria-os como personalidades distintas dele mesmo. São heterónimos, são outras pessoas. Recentemente, na sequência daquela antologia que o Adolfo Casais Monteiro publicou no Brasil - e de que te oferecerei um exemplar, que me fora cedido pelo Alberto - fala-se muito, aqui em Portugal, do poeta Fernando Pessoa e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis Talvez venha a ser uma das maiores revelações literárias do nosso século...Tenho-me interessado por ele, fascina-me esse tal desespero de uma procura de si. Como em Pascal. Por mim,vou-me hoje contentando com a luz acolhedora de Lisboa, que aqui no jardim ilumina as minhas leituras e a procura de ti, que esta carta é. Afinal, sempre procurei, em mim e na minha relação a ti, um caminho para que te sentisses bem... E o amor talvez seja esse querer bem, um caminho com curvas e alguns enganos, mas que segue procurando. Será isso a fidelidade. Esta, tão funda, que até ti me trouxe, num táxi que apanhei em Tokyo, se perdeu em Lisboa, e acabou por embarcar Pascal e Fernando Pessoa".
Desde que li e traduzi esta carta de Camilo Maria, só ando de táxi!
Sempre me orgulharei de ter sido aluna na Universidade Clássica de Lisboa ou, através dela, não tivesse chegado à amizade, à profunda admiração e ao trabalho, todos países cuja língua dominava o Senhor Professor Doutor António Luciano de Sousa Franco, e que me deu a honra de comigo os partilhar.
Era o Senhor Professor Sousa Franco doutorado em Ciências Jurídico-Económicas tendo-se tornado prestigiadíssimo Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e reconhecido no seu Saber, internacionalmente, como poucos o foram.
Um dia, no corredor que levava ao célebre “PBX” da F.D.L., era então eu aluna do 3º ano, quando ouvi atrás de mim a voz do Professor que se me dirigia, dizendo:
- Ciências Jurídico-Económicas são uma óptima herança de si para si.
Parei. Cumprimentei o Sr. Professor e ganhei coragem para lhe dizer:
- Teimo, Sr. Professor para que essa consiga ser a minha opção. Teimo e não tenho ainda idade para teimar. Direito e Economia não serão passos demasiado grandes para mim?
Um dia, bem mais tarde, era então Presidente do Tribunal de Contas o Professor Doutor Sousa Franco, e por entre um pequeno-almoço apressado, disse-me a sorrir:
- A nau assentou? Ou nunca vai assentar?
-Sr. Professor, como sabe, continuo a escrever e a ver luz na docência e na investigação. Pedia-lhe uma palavra a este ritmo.
- Ora, ora, a Teresa cumpre. Vamos lá atacar as incapacidades de mercado.
E olhou-me como só os singulares e poderosos Professores podem olhar para os seus alunos.
O Professor Doutor Sousa Franco destacou-se, nomeadamente no ensino de Finanças Públicas, em Direito da Economia e Direito Comunitário e, de 1979 a 1985, na qualidade de Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, constituiu o prumo de uma serena e segura igualdade de tratamento ao alcance dos alunos.
Ele queria muito que os alunos encarassem o futuro como um retorno à prometida forma de vida que no inicio desconhecíamos o que fosse.
Guardo as cartas que me escreveu. Todas me incentivavam ao trabalho de pesquisa. Todas reflectiam o afecto que só a amizade tem, e a aposta feita, de que, meu não seria o universo atrofiado.
Já Ministro das Finanças, se referiu numa breve carta - que me dirigiu na sequência do envio do meu último livro de então - ao que ele chamava de “a sua obra literária que tanto me engrandece”. E comovida pelo elogio que não merecia, buscava logo outras modos de explicar o multiplicador aos meus alunos, de jeito que honrasse o Professor, se viesse a saber o quanto a economia financeira e a distribuição de recursos na nossa Europa, eram por mim lados da mesma moeda, mesmo em tempos de incerteza, de opções e informações de contraste aberto.
Devo dizer que ter conhecido o Professor Doutor Sousa Franco nas vertentes que mencionei, foi o mesmo que abrir uma porta e reconhecer um habitat natural de honestidade, lealdade e modelo de estar enraizado ao burgo-planeta, com todos os desafios que isso implica.
Estava num hotel no Algarve quando o meu marido, num quadro pleno da gravidade e do entendimento da notícia revelada pela televisão, me disse quase sussurrando, quase amparando-me:
- Faleceu o seu Professor. Um ataque cardíaco, na campanha em Matosinhos. Sei que ambos sempre se lembrarão um do outro.
Vi-me enfim, muito pequenina no anfiteatro 1 da Universidade Clássica de Lisboa, a leccionar uma aula sob o atento escutar do Professor. Olhei para o mar e lembrei-me de uma frase da Bíblia
Não amemos de palavras nem de língua, mas por acções e em verdade.
A cidade de Pequim surpreende-nos pelo desenvolvimento, pelo trafego automóvel, pelos novos edifícios, pelo movimento incessante das pessoas. Quem conheceu a cidade nos últimos quarenta anos, não deixa de se admirar pelas transformações realizadas.
Nesta peregrinação do Centro Nacional de Cultura, começamos simbolicamente por visitar um dos troços da Grande Muralha. É impressionante a concessão deste muro criado para proteger o grande Império do Meio. Em Mutaniu, onde chegamos de teleférico, o panorama é o do encadeamento fantástico das montanhas do norte que rodeiam a cidade de Pequim. A construção começou em 221 anos a.C. numa primeira versão precária de adobo mas foi a Dinastia Ming de 1368 a 1644 que construiu a muralha tal como hoje a conhecemos para protecção dos Mongóis e dos Manchus. No entanto, em 1644, no final dessa mesma Dinastia Ming, o General Wu Sangui abriria as portas da muralha à invasão Manchu que estabeleceria a Dinastia Qing pelo que o sistema de nada serviu quando foi posto à prova. Mas a construção é impressionante e o coroar das montanhas pelas ameias que se prolongam a perder de vista assemelha-se a um fecho de cremalheira entre tecidos. E ao ver essa separação humana, lembramo-nos do Veneziano Marco Polo que chegou ao norte da China pela mão dos Mongóis entre 1271 e 1295. Foi esse o momento em que o Império do Meio se abriu ao conhecimento dos Europeus. Se a chuva fez questão de aparecer na nossa visita à Muralha, o mesmo não aconteceu ontem de manhã quando fomos bem recebidos no Parque que rodeia o Templo do Céu.
Vimos centenas de praticantes de Tai Chi mas também jogadores dos mais diversos jogos nas balaustradas que decoram os jardins: xadrez, cartas, paciências, grupos que cantam e tocam, de tudo um pouco.
Quando lemos “O Mandarim” de Eça de Queirós, este que aqui não esteve, fala-nos de três guarda-sóis sobrepostos neste Templo do Céu que vemos em todo o seu esplendor; já que o romancista refere este como um dos sítios emblemáticos da cidade. Aqui vinha o Imperador três vezes: no início do ciclo anual, na primavera e por fim no inverno para dar a Ação de Graças. As quatro colunas que sustentam o tecto do templo, de uma construção sem pregos, representam as quatro estações do ano e as decorações são fascinantes: dragões, aves, plantas, fundos verdes, azuis, vermelhos e dourados. É de facto uma cidade fantástica.
A vida cultural portuguesa, ao longo do seculo XX, foi abundante em dissidências e incompatibilizações pessoais e artístico-literárias: mas também o foi no cruzamento de colaborações e relacionamentos, estéticos e pessoais que, muitas vezes - outras não!... - ultrapassavam as clivagens de escola, de estética e de ideologia. Isto, note-se, independentemente de uma maior ou menor convergência profissional ou amizade pessoal..
Carlos Selvagem, oficial do Exército, historiador militar e Governador colonial, não tem um currículo convergente com o de Almada Negreiros. Mas, para lá da convivência ao longo de décadas, unia-os a atividade criativa como escritores e o sentido de uma cultura subjacente ou expressa na obra dramatúrgica. Que por vezes convergia: por exemplo a peça Pierrot e Arlequim de Almada é de 1924 e a pantomima Serenata de Polichinelo, de Selvagem é de 1927: e no entanto, não há, na obra dramática destes dois autores, em si mesmos tão diferentes, uma trajetória ou uma influência reciproca direta.
Mas surgem ligados em 1944 na produção de um espetáculo memorável - Dulcinéa ou a Ultima Aventura de D. Quixote, de Carlos Selvagem levado á cena no Teatro Nacional D. Maria II por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, com cenários e figurinos de Almada. E aí, encontramos de facto, a convergência estética, que tornou este espetáculo de certo modo memorável, passados que serão, dentro de meses, exatos 50 anos desde a estreia.
É que o texto de Selvagem assuem uma linguagem cénica e literária de tom poético, seja este épico ou lírico, na visão quase mística da figura do protagonista. Estamos evidentemente num reino de fantasia, o Reino da Tristânia - e desde logo a designação diz muita coisa - e estamos perante um conflito “político” e pessoal. D. Quixote enfrenta os poderes constituídos do Reino, O Alcaide-Mor, o Banqueiro, o Capitão Geral, os quais contratam a prostituta Florinda passa se fazer passar por Dulcineia e derrotar de vez D. Quixote. Mas este é traído por D. Roberto, enquanto a Florinda se apaixona por D. Quixote. Florinda é condenada á morte e D. Quixote expulso sobe a acusação de ser, ele próprio, o Encoberto!
A peça inscreve-se pois por direito próprio e com grande qualidade na corrente sebastianista da cultura portuguesa. E t assume uma linguagem poética que não é comum, nesse registo, na aliás notável dramaturgia de Carlos Selvagem, em que domina um realismo de conteúdo e crítica social ou dramatização histórica.
Ora bem: para este espetáculo criou Almada um admirável conjunto de figurinos, parte deles reproduzidos no volume intitulado “Almada - A Cena do Corpo”, editado por ocasião da exposição realizada no Centro Cultural de Belém em 1993-1994. Aí encontramos efetivamente quatro aguarelas de Almada, correspondentes às personagens de indumentárias respetivas de D. Quixote, de um Alabardeiro, de um fidalgo e ainda os projetos de uma liteira e de um chapéu. Mas a coleção referida abrange um conjunto de 11 projetos de Almada, que bem mereceram na altura e exposição - e bem mereciam hoje ser recuperados e devidamente estudados, pois comprovam, uma vez mais, a criatividade ímpar ao autor e a sua intervenção constante nas artes de espetáculo.
És pequenina hoje, não digo idade, porque a idade é um passeio que as almas não percorrem. Mas rompeste a escuridão inicial das águas, donde nascemos todos, como o universo. O espírito de Deus pairava sobre as águas, a terra era vazia e vaga e Deus disse: Que a luz seja! E a luz surgiu. E S. João dirá: "No princípio era o Verbo"... Nasces, luz do meu coração, no ano em que abriu os olhos essa Marguerite Antoinette Jeanne Marie Ghislaine, filha de Michel Creenewerck de Crayencour e de Fernande de Cartier de Marchienne, minha parente ainda, ali das bandas de Namur. Conhecem-na hoje por Marguerite Yourcenar. E por esses escritos - "Mémoires d´Hadrien" e "L´Oeuvre au Noir" - que a levarão um dia à fama universal. Mas é de "Anna,Soror..." que te venho falar hoje. "Nascera em Nápoles, em 1575, por detrás das espessas muralhas do forte de Sant´Elmo, de que seu pai era governador..." A novela escrita, abandonada, retomada por Marguerite Yourcenar, conta vidas e mortes várias, de antepassados parentes, mais teus do que meus, dos Crayencour certamente. Mudou-lhes os nomes, as nossas famílias têm hoje, afinal, os apelidos e títulos que as últimas conveniências guardaram, e as memórias guardadas para novas conveniências...se vierem! "Anna Soror..." é uma meditação sobre a linhagem e o incesto, sobre a devoção à paixão de um deus incarnado e o espinho agudo do amor humano, sobre a condição de quem se debate entre um horizonte além e um impulso imediatamente poderoso. De Anna se apodera o ideal indefinido e incerto de Séneca e Platão - que Valentine, a mãe de ambos, Anna e Miguel, lhes lia --- e, ainda, o da entrega religiosa ao ciúme de um cristo crucificado... Tudo o que, no interior das defesas do forte de Sant´Elmo, a faça afastar de si e dos seus desejos. Ela mais não quer, verdadeiramente, do que quedar-se, ali, a forças que lhe dão forma. Quando se descobre e se entrega ao amor do irmão - quando ele mesmo não resiste mais a essa força sem data nem explicação possível, mas que já o empurrou também para a aventura militar em que vai encontrar a morte - Anna sabe que, por muitos anos que viva, já morreu. Marguerite Yourcenar confessa que esse texto, escrito quando tinha apenas 22 anos, é o que menos modificações sofreu, para edição posterior, de todos os que escreveu na juventude. Li algures - ou talvez lhe tenha ouvido dizer - que o amor de Anna e Miguel (Miguel é um nome recorrente no ramo ítalo-espanhol da família dela, como Camilo na nossa) --- "entre ´Pietàs” desoladas, “Marias-das-Sete-Espadas”, santas “cantando pela boca das suas feridas”, no fundo de igrejas sombrias e douradas que são para eles o enquadramento familiar da infância e um supremo asilo"... Marguerite sentiu, na Nápoles "espanhola" do século XVI, profundamente, o contraste entre o sol lúdico da canção livre e a autoridade tão negra dos Filipes da Contra-Reforma. Anna aceitará, depois de ter acompanhado Dom Álvaro, seu pai, no exílio da Flandres - a que o dever de obediência ao rei católico o obrigou - o casamento com um francês flamengo, cujo nome quero esquecer, ao serviço dos Habsburgos de Espanha. A recomendação de sua mãe, na sua hora derradeira, “Quoi qu’il advienne n´arrivez jamais à vous haïr”, determinará a fuga de Miguel para a morte em combate pela cristandade, e a constância de Anna. Diz Marguerite: "A noção social do interdito e a noção cristã da culpa fundiram-se nessa chama que dura toda a vida" . Alhures, disse ela que, no exercício da escrita, se lembrara da narrativa bíblica do incesto dos filhos de David, Amnon e Tamar, no 2º livro dos Reis. Naquele tempo, ela lera a Bíblia na versão de S.Jerónimo - ou "vulgata" latina - em que os dois livros de Samuel, mais os dois dos Reis, se incorporavam no conjunto chamado dos Reis ou dos Reinos. Essa história é narrada no 2º de Samuel, nas edições de hoje. Pessoalmente, acho-a curiosa: não me parece que haja nela uma intenção de apontar o incesto fraterno, mas, claramente, uma condenação da violação. O livro do Levítico, que costumo chamar livro dos interditos, até pela literalidade de tantos tabús e proibições que ainda hoje tentam impor rabinos judeus e imãs muçulmanos - para não falarmos de "mensageiros católicos" que não terão meditado o evangelho - inclui o incesto nos crimes contra a família merecedores de castigos radicais. O Deuterenómio insistirá nas normas reguladoras das relações sexuais no seu contexto familiar e social. Recordo que, num qualquer dia em que falávamos de Donnizetti e da sua ópera "Dom Sébastien, Roi de Portugal", a última do compositor, o Alberto me disse que o desgraçado rei concentrara em si mazelas e fraquezas, por força da consanguinidade de casamentos endogâmicos: tivera pai e mãe, como todos nós, e quatro avós, mas também só quatro bisavós. Melhor teria sido se fossem, estes, oito... No relato bíblico do 2º livro de Samuel, o rei David, "quando soube daquela história, irritou-se muito, mas não quis penalizar o seu filho Amnon, porque era o seu primogénito. Quanto a Absalão (irmão de Amnon e Tamar), esse não falou mais com Amnon, pela violência que infligira à sua irmã"... Quando, antes do estupro, Amnon, pela manha aconselhada por Yononadab, sobrinho de David, alcançou o momento oportuno para dizer a Tamar “Vem! Deita-te comigo, minha irmã!”, ela respondeu-lhe: “Não, meu irmão, não me violentes, porque não é assim que se age em Israel, não cometas essa infâmia!. Para onde irei eu com a minha vergonha? E tu serias um infame em Israel! Agora, fala com o rei: ele não recusará dar-me a ti. “Mas ele não quis ouvi-la,dominou-a e,com violência, deitou-se com ela." Há aqui uma excepção ao interdito do incesto. Ao longo da História e, transversalmente, por civilizações e culturas, encontramos interdições e revogações (ou, melhor, derrogações) delas. O casamento endogâmico até de papas católicos recebeu bênçãos, ainda que com algum cuidado na ponderação dos graus de parentesco, não fosse a necessidade política ofender demais o que seria o "direito natural"... Entre os egípcios antigos, foram frequentes as uniões de faraós de sucessivas dinastias com suas irmãs. Todos conhecemos, já no período helenístico do Egipto, o matrimónio da do "nariz que mandou na história", Cleópatra VI, com seu irmão Ptolomeu XIII. Não deu grande resultado. Tudo isto me conduz à etnologia, à demanda antropológica de Claude Lévi-Strauss, no seu "Les Structures élémentaires de la parenté", sobretudo a essa interrogação da fronteira entre a Natureza e a Cultura: "O carácter primitivo e irredutível da definição do parentesco resulta imediatemente da existência universal da proibição do incesto... ... Um sistema de parentesco não consiste nos laços objectivos de filiação ou consanguinidade entre os indivíduos; não existe senão na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações,e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de facto"... Penso, cada vez mais profundamente, que a abordagem da cultura, ou das culturas vigentes, em que as pessoas vivem, é a achega necessária - aos homens de boa vontade e à Igreja - para uma compreensão adequada de muitas interrogações, reclamações e manifestações geradoras de conflitos e clivagens sociais, que por aí cada vez mais se vêem. A transumância do homem é a cultura..." Mas foi, ou não foi?, Jesus que disse que não é impuro o que no homem entra, mas o que dele sai?"
A tradução de cartas do Marquês de Sarolea à Princesa... dele!... vai-me entretendo. Para bem, espero.
«Henrique, o Infante» de João Paulo Oliveira e Costa (Esfera dos Livros, 2012) e «1394-1494 – Do Infante a Tordesilhas» de João Silva de Sousa (1995) são duas obras que permitem conhecer e compreender melhor o lugar do Infante D. Henrique no seu tempo e na história dos Descobrimentos portugueses – para além das simplificações e dos mitos…
UMA FIGURA RODEADA DE MISTÉRIO
Se há figura na história portuguesa rodeada de mistério, essa é a do Infante D. Henrique (1394-1460). Muitas são as dúvidas sobre quem foi, mas é riquíssima a sua experiência e a influência que exerceu no seu tempo e no século seguinte. Uns glorificam-no, outros apoucam-no e talvez todos estes estejam algo fora da verdadeira consideração. No caso das duas obras em referência, há o cuidado de analisar os claros e os escuros, procurando abranger a totalidade de uma vida, influente como muito poucas. Sobre os mistérios, basta lembrarmo-nos do debate sobre a vera efígie do Infante. A mais próxima imagem de quem teria sido Henrique é a que está no pórtico do Mosteiro dos Jerónimos, no entanto são as representações da «Crónica dos Feitos da Guiné» de Zurara, guardada em Paris, e a dos Painéis ditos de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, que nos permitem identificar mais facilmente Henrique, o Navegador. De facto, o Infante tornou-se um mito, apesar de ser uma das figuras históricas portuguesas sobre quem é possível definir com rigor um percurso de coerência e de vontade. A decisão da exploração da costa de África, e tudo o que se lhe seguiu, é algo que merece cuidada análise – correspondente à ponderação de decisões e acontecimentos que têm tudo menos de acaso. A conquista de Ceuta (1415) permitiu a compreensão das dificuldades colocadas, a Portugal e à Península Ibérica, na entrada do Mediterrâneo e no comércio com o Levante. As cinco razões aduzidas por Gomes Eanes de Zurara têm de ser lidas em estreita ligação com as fortes condicionantes económicas, políticas e territoriais: (a) a vontade de conhecer as novas terras; (b) as razões comerciais para a troca de produtos; (c) o poderio dos “mouros daquela terra d’África”, muito maior do que comummente se pensava”; (d) saber se haveria rei cristão naquelas paragens; (e) a expansão da fé cristã. Sobretudo, pouco se entenderá se não invocarmos a profunda crise económica e social sentida em Portugal e na Europa no último quartel do século XIV, que obrigou à procura de alternativas. Se o Infante não é uma figura isolada, o certo é que tem uma quota-parte fundamental no planeamento e na administração de um reino que não poderia nem queria ficar confinado ao território peninsular, às limitações mediterrânicas e às ameaças dos mouros, árabes e otomanos.
NOTÁVEL COMPLEMENTARIDADE
D. Henrique foi profundamente marcante e cioso dos seus domínios, era duque de Viseu, senhor da Covilhã, governador da Ordem de Cristo, senhor dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e do barlavento algarvio, mas também detentor do monopólio das saboarias, da pesca do atum, da produção do pastel ou da pesca do coral. Há, no entanto, uma notável complementaridade no seio da chamada Ínclita Geração, os Altos Infantes, devendo salientar-se a figura de D. João I, que aparece, por vezes, algo apagada, mas que se revela como um autêntico refundador do Reino, na sequência de D. Afonso Henriques e D. Dinis, cada um a seu modo criador de uma realidade política nova ligada à grande frente marítima atlântica, mas também às suas projeções mediterrânicas. Se cuidarmos bem da análise dos acontecimentos, depressa descobrimos que D. Duarte, D. Henrique e D. Pedro articulam inteligentemente ações. A leitura da célebre carta de Bruges, enviada por D. Pedro a D. Duarte, ainda príncipe herdeiro, além de nos revelar a defesa do que mais tarde se designaria como «fixação e transporte», apresenta-nos o que poderíamos designar como um projeto nacional – com um Administração moderna, uma economia adequada à inovação, uma universidade capaz de seguir o que de mais avançado outras faziam e uma procura de novos modos de funcionar e agir. Está, aliás, por esclarecer inteiramente qual a influência das informações de D. Pedro, recolhidas nesses périplo europeu, nas navegações promovidas por D. Henrique na costa africana. O certo é que quer o Livro de Marco Polo quer o misterioso mapa de Fra Mauro devem ser referidos – não que tenham definido um plano da Índia, que só o Príncipe Perfeito assumirá, mas como a necessidade de procurar, como diz Zurara, uma aliança estável para favorecer o comércio com o Levante. Não seria ainda a Índia o objetivo, mas D. Henrique estaria a pensar na Terra Santa, preocupado com o seu poderio e a sua influência, mas também com a sua vocação de cruzado do novo tempo, pensando na libertação da Terra Santa. A atitude perante o desastre de Tânger deve ser lida a esta luz. E, se dúvidas houvesse, basta lembrarmo-nos que Afonso de Albuquerque não esqueceu a ideia. Dotado de uma inteligência superior, D. Henrique ligava razões diversas – políticas, económicas, políticas e religiosas. Não por acaso, Oliveira Martins falou de «Os Filhos de D. João I». Importa, pois, reconhecer o significado da articulação de vontades e inteligências e da sua extraordinária capacidade para seduzir e para convencer. Devemos, pois, envolver na compreensão desta história o Pai, o velho Mestre de Avis, e os irmãos, a começar em D. Duarte, a continuar em D. Pedro, sem esquecer D. Isabel de Borgonha, casada com Filipe, o Bom, e mãe de Carlos o Temerário.
A FORÇA E A DIPLOMACIA
Segundo Oliveira e Costa, despojado do mito, D. Henrique não é apenas o Navegador, mas é um príncipe preocupado com o seu senhorio e com a sua influência política e um cortesão que sabia influenciar e enlear as demais figuras da corte, através de uma simpatia que o colocou sempre acima das divergências que dividiam os membros da família real. A título de exemplo, veja-se a lista de circunstâncias acompanhadas de intenso labor de nomeações e regalias: em 1416, após a tomada de Ceuta; em 1419, no reforço de efetivos nesta praça; em 1433, na sequência da morte de D. João e da passagem do cabo Bojador; em 1438, depois da empresa de Tânger, por ocasião do falecimento de D. Duarte e no começo da regência; em 1441-1442, quando foram atingidos o rio do Ouro e a meta da Guiné e na chegada dos primeiros escravos, ouro e malagueta; e em anos posteriores com o reinado de D. Afonso V e o Perdão Geral de 1453… O Infante moveu-se intensamente em todo o reino, e os períodos de maior frequência nas deslocações, «coincidem com a sua mais intensa ação expansionista: 1437-1441 e 1443-1445. Em ambos os períodos, correu de Lagos a Viseu, cidades gémeas no seu entender. Na primeira, assistia à partida e chegada das embarcações e à repartição das mercadorias; em Viseu, de ordinário, arrecadava o quinto e demais frações que lhe cabiam» (J. Silva de Sousa, p. 23). Aquando do conflito trágico, que culminou em Alfarrobeira, D. Henrique procura contemporizar, sem sucesso, mas é sob a sua influência que o corpo de D. Pedro irá para a Batalha, não podendo esquecer-se que, com interferência do Rei, ver-se-á reconhecido pelo Papa como diretor das navegações, conquistas, ocupações e apropriações de todas as terras, portos, ilhas e mares do continente africano e mesmo dos ainda a ocupar da Guiné para sul sem fixação de quaisquer limites («per totam Guineam et ultra»).