Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

LONDON LETTERS

Back to business, Autumn 2013


Vivem-se tempos interessantes. A quase paragem da administração federal nos Estados Unidos da América às mãos do impasse orçamental imposto por 40 republicanos do Tea Party evidencia o paroxismo dos riscos democráticos que envolvem Washington DC e ameaçam a economia global. Dentro de portas, finada mais uma descolorida época de conferências partidárias, o Prime Minister fez ontem uma mini remodelação governamental onde avançam os lealistas do Chancellor of the Exchequer, Rt Hon George Osborne, como prenúncio nos Commons de robustecida estratégia de rigor nas finanças públicas. — Les bons comptes font les bons amis or les Osbornites!? Já a House of Lords retoma amanhã os trabalhos com a banking reform e prometedora audição ao autor da proposta de um super regulador da comunicação social. — Well, as Germans like to say: Boredom is father of all sins! Sir Brian Leveson fala em Westminster quando está ao rubro a ira em torno do estranhíssimo ataque do Daily Mail ao patriotismo do pai do líder do Labour, o falecido Professor Ralph Miliband. A coisa é tal que tanto Mr David Cameron dos conservatives quanto Mr Nick Clegg dos liberal democrats saíram em defesa do seu adversário político. Meanwhile, em Brussels, et pour cause, o European Parliament vota o degredo dos cigarros de mentol. 
 


Os USA doam absoluta matéria de ficção. Com o surdo caso da espionagem digital aos aliados ocidentais em curso, a Casa Branca tem três em cada quatro oficias sob forçada licença sem vencimento. Entre os funcionários públicos interditos de trabalhar pontuam os adjuntos e os conselheiros do President Barack Obama, a braços na Siria com perigosa reedição da Cold War. O caso configura uma crise maior na história política norte-americana. O mais poderoso aparelho governamental do mundo está manietado pelo punhado de ativistas que propôs Mrs Sarah Palin à vice-presidência ou Mr Mitt Romney para o Oval Office. O We, The People expresso nos votos é assim sequestrado por minoritária força de bloqueio alojada em Capitol Hill. Donde: quem respeita hoje a constituição popular dos pais fundadores reunidos na Philadelphia de 1787, September 25? Ou regressando a questão elementar dos dias de Oxford: — Does constitutional theory matter?
 


O President do Queen's Bench Division, a ala pública no High Court of Justice, depõe nos Lords. A sua proposta de um powerfull new press watchdog dista de ser pacífica, ainda que seja popular. Se o caso do pai de Mr Edward Miliband, cujas ideias marxistas sustentam a capa do Daily Mail com o título “The man who hated Britain”, avivou a zanga dos políticos com os jornais, também avultam as críticas à eventual criação de um organismo suscetível de instrumentalização e ameaça potencial a tricentenária liberdade fundamental britânica: o free speech. Este é um debate a acompanhar, quando as teses sobre a valia constitucional de novo se dividem entre historicistas da intenção originária dos constituintes e contextualistas do propósito dos seus intérpretes.


De Stockholm chega a nova. O Dr Peter Higgs é Prémio Nobel da Física devido à investigação em torno da designada “partícula de Deus”. Parabéns ao professor da University of Edinburgh (Scotland), likewise ao Dr François Englert, da University Libre de Bruxelles (Belgium) que com ele partilha o alto galardão, sobretudo pela beleza das ideias sobre o pluralismo radical que a todos envolve. Algo que explica o porquê de os átomos se unirem, ou não: — An invisible ocean of energy suffusing space is responsible for the mass and diversity of the universe!

 

St James, 8th October

 

Very sincerely yours,

 

V.

EM MEMÓRIA DE S. CAMILO DE LELLIS

 

Minha Princesa de mim:

 

Passei quase toda a noite a ler, mas levantei-me às 5. Para abrir muitas janelas, nos três pisos desta casa em que estou sozinho. Assim foi entrando, até às 7h30, a frescura de uma madrugada tépida... Cerrei então tudo, para que a casa guarde ciosamente, na sombra, algum refrigério. O dia anuncia-se muito quente, não posso deixar entrar o sol, nem sequer a reverberação da luz exterior. Faço como o andaluz, recolho-me no segredo da quase escuridão. Eu mesmo me encerro e mergulho numa penumbra interior e silenciosa. Refresco a alma, só me faz bem... Escuto, no meu antro, as sonatas e partitas para violino solo, de Bach. Ocorreu-me ouvi-las, ao reler, durante a noite, o "Ana Karénina". Porquê? Talvez porque,no caminho para a estação ferroviária onde fatalmente se atiraria para debaixo de um comboio, a infeliz Karénina fosse pensando que não é por muito correr que conseguimos fugir de nós mesmos. Morreremos como borboletas na chama das paixões que nos consomem... Fujo hoje à canícula do dia, no silêncio e na sombra me hei-de encontrar com a saudade antiga de mim. Pararei no sossego e deixarei que o meu olhar se vá lavando, no escuro, de tantos enganos e ilusões que o turvam. Até que madrugue uma alva mansa e na manhã que nascer no meu coração a luz se vá fazendo dia. O dia em que terei de viver,agora e na hora da minha morte. Foi na festa de S.Camilo de Lellis  -  um estouvado militar que, no dia em que abriu o olhar sobre a desumanidade do sofrimento físico dos estropiados da guerra, se converteu ao serviço de doentes, feridos e necessitados  -  que a senhora Hoshino devolveu o corpo à terra. Em Tokyo, no Verão quente e húmido. Suicidara-se com barbitúricos, dois dias antes. Era mãe de dois adolescentes e mulher do filho da senhoria da casa onde eu morava. Esta situava-se num parque adjacente à habitação dos senhores que desde o início do período Edo ali possuíam vasta propriedade. Vivendo sozinho, tinha eu por hábito descuidar as janelas abertas e ouvir os "meus discos" de música "clássica" alto e bom som. Certo dia, fui convidado para um jantar japonês em casa da senhora viúva Hoshino, sogra da outra e proprietária da minha moradia. Gentilmente, em sinal de hospitalidade amiga, tocou para mim o seu "koto", falou-me do marido defunto, professor universitário, e das voltas que com ele dera pelo mundo, de arte, literatura e filosofia. Perguntou-me sobre a minha religião, e se a praticava no Japão. Á boa moda nipónica, sempre afável, sem deixar de ser formal. Disse-me que o filho e a nora tinham reparado no meu gosto pela música, porque o som lhes chegava à dependência onde viviam, mais próxima da minha casa... Recebi o recado e, no dia seguinte, fui bater à porta do casal e pedir-lhes desculpa pela perturbação que lhes causava. Responderam-me que continuasse e até aumentasse o volume, porque era sempre lindo o que ouviam. O meu motorista, que conhecia bem a cidade e o bairro, teve dificuldade em identificar a igreja onde se celebrou o ofício fúnebre. Era um templo católico, os Hoshino pertenciam a uma casta da nobreza japonesa que, depois da restauração Meiji, e ao cabo de 250 anos de clandestinidade, voltara ao culto da igreja romana. Nunca mo disseram, e vivi dez anos naquela casa. O filho de 13 anos tocou, durante a cerimónia, o adagio da 1ª sonata para violino solo do Bach. Eu dei o braço à senhora Hoshino, velhinha, a caminho da mesa da comunhão. No fim, avó, filho e netos disseram-me que a morta gostava muito da música que lhes chegava de minha casa. No romance de Tolstoi, não é o adultério de Ana, nem a sua perdição, o tema central. A história infeliz do amor da mulher, cujo nome serve de título ao livro,com o conde Vronski é contraponto da aventura interior de Lévin,quiçá a personagem mais próxima do seu autor,em todo o universo romanesco do grande escritor russo. Tal como a Karenina, Lévin é um "misfit", um desadaptado à sociedade em que vive como que desalojado dela. Mas Ana sente-se injustamente castigada pelo ostracismo a que é votada por ter abandonado o marido ,num ambiente social em que se toleram tantos outros adultérios, desde que seja respeitada a convenção da hipocrisia. Ela só questionará o impulso da sua paixão quando o afastamento do seu círculo social lhe provocar desconfianças e ciúmes. Assim perderá a luta contra a convenção social e será letalmente vencida pela sua própria paixão... Constantino Lévin, perante uma primeira recusa de Catarina Schebartski, com quem virá, afinal, a casar, entrega-se ainda mais aos seus projetos de desenvolvimento rural, afasta-se de uma sociedade cosmopolita e fútil e vai descobrindo, no convívio e no trabalho dos campos, o povo dos "mujiks", ao qual se sente aristocraticamente superior, mas que irá progressivamente chamando a participar na sua obra. Esse homem, que deixou de ser crente, não entende logo o itinerário que Deus lhe predestinou para se lhe revelar: o do serviço do próximo, dos outros. Quando finalmente percebe que esse desejo de encontrar os outros, de os servir, ou de servir com eles, nasce do encontro, no fundo de si mesmo, com uma identidade antiga e destinada à transcendência,ele pensa que aconteceu um milagre que naturalmente fará dele um ser perfeito. Até deparar novamente com os desagrados e zangas, enganos, raivinhas e desilusões do dia a dia. E aí se aceita a si e recebe a compreensão da luz que nele se revelou: "Não deixarei de continuar a zangar-me com o cocheiro Ivan, não deixarei de discutir nem de dizer o que penso fora de propósito. Manter-se-á a separação entre o santuário íntimo da minha alma e os outros, continuarei a pôr na minha mulher a culpa dos meus temores, e disso me arrependerei depois. A minha razão não entenderá porque rezo, mas, toda inteirinha, a minha vida, aconteça o que acontecer, em momento algum deixará de ter sentido, como dantes julgava, mas ganhará sempre o sentido do bem, de todo o bem que eu queira pôr nela. "Com esta confissão de Lévin termina o romance. A lembrar-me o provérbio português que Paul Claudel inscreveu em frontespício a "Le Soulier de Satin": Deus escreve direito por linhas tortas... Camilo é nome romano, dizem que de origem fenícia. Seja como for, é nome comum na minha ascendência ítalo-espanhola. Camilo se chamava meu avô materno e muitos antes dele. Desde pequeno me habituei a celebrar a festa do meu santo onomástico a 18 de Julho (a 14, desde o Vaticano II). Na penumbra benfazeja desta casa silenciosa e vazia, folheio o velho missal da senhora minha mãe, e encontro, a marcar a página da missa de S. Camilo, uma imagem representando um coro de anjos pintado por Fra Angelico. No verso, minha mãe escrevera uma "Prière d´une Maman": "Ao pedir-Vos que o abençoeis, e ao abençoá-lo em vosso nome, não Vos peço para ele o orvalho do céu, nem o húmus da terra; mas ousando determinar algo que Vos peça para a sua vida temporal, peço-vos que não lhe deis riqueza nem pobreza, mas apenas a modéstia e o gosto de bem servir... Como Camilo de Lellis junto dos doentes que servia em nome da cruz vermelha que trazia ao peito. "Também só muito depois da morte de minha mãe descobri a oração que, por muitos anos, ela silenciosamente por mim dizia. E de que não sou digno." Junto a esta carta de Camilo Maria, a Princesa de... guardou outra, distante no tempo, em que ele lhe falava de igrejas orientais e ícones. De outros vislumbres da misteriosa presença de Deus.

  
Camilo Martins de Oliveira 

TERESA AMADO, BEM PRESENTE!


 

 

Joana Lopes é uma leitora atenta do nosso blogue e julgou reparar a nossa suposta omissão relativamente ao falecimento de uma amiga nossa e colaboradora muito próxima. Refiro-me a Teresa Amado, que inesperadamente nos deixou. Não tem razão Joana Lopes, uma vez que o CNC, designadamente, na sua newsletter acabada de sair,  expressamente assinalou a grande perda que tivemos. Oportunamente, aliás, homenagearemos devidamente a nossa grande e próxima amiga. Teresa Amado deu sempre tudo ao Centro Nacional de Cultura e nunca o poderemos esquecer. E não se trata apenas de lembrar a antiga diretora, uma vez que era de agora a sua permanente colaboração connosco. Eis por que razão lembramos sentidamente Teresa Amado! Não a esquecemos, não esqueceremos!

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins 
de 7 a 13 de outubro de 2013

 

A Biblioteca Nacional de Portugal organiza, por ocasião do segundo centenário do nascimento de Sören Kierkegaard (1813-1855) a mostra bibliográfica intitulada «Um Dinamarquês Universal», comissariada por Elisabete M. de Sousa e José Miranda Justo. A inauguração foi oportunidade para ouvirmos uma luminosa lição de Eduardo Lourenço, cuja obra está profundamente ligada ao pensador dinamarquês.

 

 

 

O DESESPERO HUMANO
Quando Leonardo Coimbra morreu tragicamente no início de Janeiro de 1936 em resultado de um acidente de automóvel ao regressar de casa da família na Lixa, tinha em mãos a tarefa de escrever o prefácio a uma obra e sobre um autor que iriam, por certo, levar ao repensar da sua reflexão, se o escritor tivesse vivido mais tempo. Coube a Adolfo Casais Monteiro escrever esse texto sobre «O Desespero Humano (Da doença até à morte)», que continua a ser referencial na receção em Portugal da obra de Sören Kierkegaard. A obra foi publicada no próprio ano de 1936 na coleção «Filosofia e Religião» da Livraria Tavares Martins, fundada por Coimbra, e Casais Monteiro salienta que o livro do dinamarquês foi um dos que mais impressionou Leonardo nos últimos anos de vida. «O prefácio a esta tradução ia escrevê-lo quando a morte o levou, e é indubitável que era ele a única pessoa que em Portugal poderia realizar devidamente essa ousada empresa: apresentar a obra de Kierkegaard ao leitor português». E o certo é que o filósofo dinamarquês era «ignorado em Portugal». Com finura e inteligência, Casais dá-nos nesse prefácio, de modo clarividente, uma leitura esclarecedora que permite entender a importância de Kierkegaard na história do pensamento europeu. E salienta que «“os metafísicos por paixão” irão sem dúvida ao encontro do Kierkegaard inquietante, do adversário de Hegel, do precursor de Chestov na “luta contra as evidências”». A verdade é que só nos anos seguintes e sobretudo no pós-guerra é que esse autor, esquecido depois da morte, se tornou pensador fundamental pela valorização da singularidade existencial. E, como afirmou Jean Wahl, se tudo começa em Kierkegaard numa conceção religiosa determinada, centrada no luteranismo, o certo é que passa a constituir-se método de aplicação muito geral «para chegar a um pensamento apaixonado e dramático». Os existencialismos e a valorização da singularidade tornarão o dinamarquês referência essencial – e lembro-me bem do testemunho de João Bénard da Costa sobre o entusiasmo que sentiu pelo estudo de Kierkegaard, impulso apenas refreado pelo seu desconhecimento da língua dinamarquesa. Não fora isso, certamente que se teria abalançado para o estudo apaixonado da obra do extraordinário pensador. E ao ater-se a Emmanuel Mounier não deixou de dar especial relevo à «Introdução aos Existencialismos», onde o autor francês atribui papel crucial a Kierkegaard - «um desses homens que, em bom rigor, não podem ter discípulos, porque não deixaram sistema, mas que no entanto têm numerosa posteridade».

 

ONDE O NORTE E O SUL SE APROXIMAM
Na aparente distância entre o norte e o sul, Kierkegaard aparece na Península como um autor importante, capaz de fazer luz sobre muitas das interrogações e mistérios das nossas próprias culturas. E Miguel de Unamuno foi um dos autores que melhor soube ler o dinamarquês como precioso revelador do «sentimento trágico da vida». Oiçamo-lo: «A filosofia é um produto humano de cada filósofo, e cada filósofo é um homem de carne e osso como ele. E, faça o que fizer, filosofa não apenas com a razão, mas com a vontade, com o sentimento, com a carne e com os ossos, com a alma toda e com todo o corpo. Filosofa o homem». Esta é a singularidade que torna Kierkegaard incómodo, mas atraente, indo ao encontro da necessidade de superação dos excessos sistémicos e positivistas. Daí que, ao falar de Unamuno, tenhamos de falar do nosso Antero de Quental, do seu pensamento e da sua poesia, num drama pessoal que o aproxima das preocupações que o mestre de Salamanca encontrou na sua fulgurante aproximação a Kierkegaard. E nesse caminho cabe a célebre história que é digna das preocupações de Antero e Unamuno e que o dinamarquês conta no seu diário: um dia, o pai do filósofo, «rapazinho, guardador de carneiros nas charnecas da Jutlândia, sofrendo grandes males, cheio de fome e de frio, ergueu-se sobre umas colinas e amaldiçoou Deus» - e este homem não era capaz, aos oitenta e dois anos, de esquecer esse instante tremendo… Esse drama individual não poderia ser olvidado. E por muito que as dimensões estética, moral e religiosa se devessem relacionar, num caminho de maturação para chegar ao último estádio, tudo obrigaria a uma opção singular, imperfeita, estranha e inusitada. E Adolfo Casais Monteiro salienta: «O que Kierkegaard exige acima de tudo é que não se procure a fé e a verdade pelo abandono do humano; o que ele incansavelmente afirma é que a fé se conquista “quando o eu mergulha através da sua própria transparência até ao poder que o criou. (…) Por isso mesmo ele afirmou que o “cristianismo do Novo Testamento não existe», querendo dizer com isso que os homens não vivem o cristianismo, que lhe permanecem exteriores».

 

A HETERODOXIA MANIFESTADA
Eduardo Lourenço (E.L.) é, sem dúvida, quem, entre nós, melhor conseguiu chegar ao âmago do pensamento de Kierkegaard, sobretudo num texto publicado em «Heterodoxia – II» intitulado «S. K. Espião de Deus». Por isso ninguém melhor do que o ensaísta para intervir na Biblioteca Nacional, há dias, na inauguração da exposição em que se assinala os duzentos anos do nascimento do filósofo: «Um Dinamarquês Universal», excelentemente comissariada pelos Professores Elisabete M. de Sousa e José Miranda Justo. Foi uma luminosa charla, a que ouvimos a E.L. nesse fim de tarde ainda de verão. E não se esqueça «Kierkegaard e Pessoa ou as Máscaras do Absoluto», onde o ensaísta compara os processos criativos de fragmentação das personalidades literárias dos dois autores. Naquela tarde, reencontrámos a atualidade e a originalidade de alguém que esteve esquecido durante quase um século, mas que hoje é de referência essencial – autor genial de «O Conceito de Angústia», traduzido entre nós por João Lopes Alves, bom amigo que há pouco nos deixou (1). Foi-nos recordado por E.L. como o encontro com Regina Olsen foi o acontecimento central da vida de Kierkegaard. «Para não a ter perdido (…) ter-lhe-ia sido necessária uma fé semelhante à de Abraão, uma fé absoluta. Mas a sua não era dessa qualidade. Para o ser, seria necessário que Deus lhe retirasse da alma a sua melancolia e esse espinho que não lhe podia consentir uma verdadeira relação humana com ninguém. O seu interlocutor era essa mesma melancolia como sinal de Deus, pois Deus mesmo guardava e guardaria sempre o incógnito». No entanto, o «homem não precisa de ir mais além de coisa alguma mas de estar exatamente em si mesmo. A essência da vida humana é repetição. A Lei Nova é sempre a Lei Antiga não cumprida. (…) É para uma morada antiquíssima que marchamos». E a solidão torna-se um modo de conforto e o assumir da angústia uma maneira de a esquecer. E, assim, ao «espião de Deus» caberia descobrir «o remédio contra o aguilhão que o hábito converteu em nova e mais radical morfina da alma humana»…

  1. Manifestamos uma sentida homenagem a um dos mais denodados sócios do CNC, filósofo com provas dadas, jurista respeitadíssimo, um dos nossos melhores fiscalistas e cidadão sempre empenhado e ativo.

Guilherme d’Oliveira Martins

O MUSEU DO PRADO E PORTUGAL

 

A imprensa portuguesa deu o merecido relevo à assinatura em Lisboa, no dia 9 de Setembro, de um acordo entre o Museu Nacional de Arte Antiga e o Museu do Prado. Acordo histórico, como bem definiu António Filipe Pimentel, director do MNAA, pelo qual as duas instituições permutarão exposições e emprestarão reciprocamente peças dos respectivos acervos -  excelente iniciativa  que seria muito desejável que frutificasse e se estendesse a outros campos da vida cultural dos dois países.

 

A este propósito, vale a pena recordar o papel fundamental que uma princesa portuguesa teve na fundação daquele que é indubitavelmente um dos principais museus do mundo inteiro, pela qualidade das suas obras e pelo número de visitantes, que em 2012 somaram 2,9 milhões.

 

Conforme referido no portal do museu, apesar de construído em 1795 para acolher um Gabinete de Ciências Naturais, sendo rei Carlos III, o destino final do edifício só ficou definitivamente estabelecido no reinado de seu neto, Fernando VII, por inspiração de sua mulher, a rainha Maria Isabel de Bragança, que pôs neste projecto todo o seu empenho.

 

A infanta D. Maria Isabel, filha de D. João VI e de D. Carlota Joaquina, que nasceu em Queluz em 1797, teve o seu casamento ajustado em 1815 com o rei Fernando VII de Espanha, juntamente com o de sua irmã D. Maria Francisca com D. Carlos Maria Isidro de Borbón, irmão do monarca, cujas posteriores pretensões à Coroa espanhola viriam a causar as Guerras Carlistas.

 

Encontrando-se na ocasião a Coroa portuguesa instalada no Rio de Janeiro, as duas infantas navegaram em 1816 até Cádiz, em cuja catedral foi celebrado o casamento, sendo os noivos representados pelo duque do Infantado. E logo seguiram para Madrid, onde rectificaram  o seu matrimónio na Igreja de São Francisco o Grande, vizinha do Palácio Real.

 

Começava então uma vida de extrema infelicidade para a jovem rainha, devido à vida devassa de seu marido, completamente desinteressado pela sua mulher,  e também ao sentimento geral que fora criado a seu respeito, devido à sua nula beleza física e à falta de dote que fosse engordar os régios cofres. “Fea, pobre y portuguesa, chúpate esa”, dizia-se em Madrid.

 

Para dissipar as suas mágoas, a rainha ocupou-se então na protecção das artes e dos artistas e na criação do Museu do Prado, enquanto escrevia um diário íntimo recheado de amargura e de melancolia e umas cartas queixosas a sua mãe,  que nas suas respostas pouco a consolava, concluindo sempre com as palavras “a resignação é a divisa dos santos”.

 

Mas pouco durou o sofrimento de D. Maria Isabel, por motivo de uma gravidez mal sucedida, que pôs termo à sua vida aos 21 anos de idade. Demasiado cedo para poder assistir à inauguração do museu que lhe ficou a dever a sua fundação, o que só viria a acontecer em 1819, quase um ano após a sua morte.



MÁRIO QUARTIN GRAÇA

DE CAMA, ENTRE ITÁLIA E A RÚSSIA

 

Minha Princesa de mim:

 

Estou doente, não saio de casa. Além das dores e maleitas habituais, fui prostrado por um cansaço que me prega à cama. Vou-me distraindo a ler, e hoje também já consegui ouvir um pouco de música. Como não gosto de palavras cruzadas nem de paciências de cartas, para "jogar" um bocadinho, pus-me a ler e comparar libretos de óperas, e pondo algumas a tocar. Assim como quem se entretem com acertar nas diferenças entre dois desenhos semelhantes... Deu-me ainda para intuir estruturas musicais em pinturas (no Kandinsky, por exemplo) ou em textos literários, mas não poéticos (de Gogol? de Tolstoi? de Saint-Éxupéry?). Agora escrevo-te, é uma forma de conversa. "Un Ballo in Maschera" é a mesma história contada pela mesma música, mas decorrendo em duas diferentes épocas e locais, e com personagens diferentes. "Stifellio" e "Aroldo" são duas óperas que contam a mesma história moral em épocas e locais distintos, por distintos registos musicais para distintas personagens. O compositor é Verdi. O causador inicial desses embrulhos é a censura institucional. O "Baile" estreou-se em 1859, em Roma, na versão cujo cenário é Boston, nos EUA, e os protagonistas são Riccardo (Conde de Warwick e Governador de Boston), Amelia (sua mulher) e Renato (seu amigo e secretário). Ricardo e Amélia apaixonaram-se, mas Amélia quer esquecer esse amor, antes que a mútua atracção se consuma no que seria um adultério e a traição de um amigo. À declaração de amor de Ricardo, ela responde com a súplica de que ambos deverão respeitar os seus compromissos de fidelidade e amizade. Ricardo cede e concorda. Mas o dueto foi ouvido por Renato que, pouco depois, descobrirá que a dama é a sua mulher. O ciúme levá-lo-á a querer matá-la e, afinal, a aliar-se aos que conspiram contra o seu amigo. Este será a vítima mortal, num baile de máscaras, pela mão de Renato. Todavia, antes de morrer, consegue ainda proclamar a inocência de Amélia e perdoar a quem o assassinou. Uma história de ciúme, como tantas outras, de que o drama de Otelo será talvez a expressão mais torturada em óperas de Verdi. Mas esta história, cujo libreto verdiano foi escrito por Antonio Somma, baseado numa peça de Eugène Scribe, inspira-se no assassínio histórico  -  em 16 de Março de 1792, por razões políticas e sem motivo passional, ainda que num baile de máscaras em Estocolmo  -  de Gustavo III, rei da Suécia, por um dos cabeças do partido aristocrático e anti-reformista, Jacob Johan Anckarström. Assim, na peça que Scribe escreveu para "Gustavo III" ou "Le Bal Masqué" de Daniel Aubert, e na primeira versão de "Un Ballo in Maschera" de Verdi, tudo se passa em Estocolmo, entre o rei Gustavo III, Anckarström, e Amélia que, com o pajem Óscar, é a única personagem com o mesmo nome nas duas realizações. Mas a estreia estava primeiramente prevista para Nápoles, em 1858, quando se deu um atentado contra a vida de Napoleão III. As autoridades napolitanas entenderam então que estava fora de questão autorizarem a produção de uma ópera (a 23ª de Verdi) com um tema tão escaldante como um regicídio. Após várias tentativas de relocalização do cenário da ação, de modificação de nomes ou, até,transformação de algumas personagens (Amélia passaria de pretendida a irmã do "rei"...), transportou-se tudo para os EUA, quando o Massachusetts ainda era colónia britânica, e onde poderia ocorrer a liquidação de um governador emotivo e descuidado,mas sempre generoso (até no perdão),por um colaborador ciumento... Entretanto,a versão "sueca" seria mais tarde, por várias vezes, levada à cena, Duas delas, pelo menos, nos anos 40 e 50 deste nosso século XX, no Metropolitan Opera de New York...onde, para comodidade dos cantores, se mantiveram os nomes das personagens da versão americana. Ganhou assim a Suécia um rei Ricardo, cujo secretário respondia ao nome bem escandinavo de Renato! Já "Stifellio" será uma das óperas mais esquecidas do compositor do Risorgimento. O próprio confessou um dia que "de todas as óperas minhas que não se representam, por lhes contestarem os conteúdos, há uma que eu não queria ver esquecida: Stifellio". Pessoalmente, minha Princesa, pensossinto que Verdi gostava do "conteúdo" da ópera,do tema do perdão, finalmente generoso, do marido à mulher adúltera. E gostava tanto que lutou contra a pressão dos censores e dos teatros para que retirasse a confissão de Lina a Stifellio do seu contexto religioso e eclesial. Na verdade, o marido é, aí, um pastor protestante, um padre casado, e é ao marido e ao padre que ela quer simultâneamente confessar-se. A cena final passa-se na igreja em que Stifellio vai proferir um sermão. Para se inspirar,abre ao acaso uma Bíblia e lê o passo do evangelho que relata a intervenção de Jesus a impedir a lapidação da mulher adúltera. Ao dizer, do púlpito, "e a mulher perdoada levantou-se", o pastor olha para a sua, ainda ajoelhada no chão, e acrescenta: "perdoada! Deus assim o decretou." E Lina levanta-se e erguendo as mãos ao céu exclama "Gran Dio!" Cai o pano. Esse libreto é de Francesco Maria Piave, seguindo a peça de Eugène Bourgeois e Émile Souvestre intitulada "Le Pasteur" ou "L´Évangile et le foyer". O que censores (oficiais,religiosos ou populares) apontam é, em terra católica e italiana, e em estado dos Habsburgos de Áustria, o facto de se tratar de um casal em que o marido é um padre casado. O que talvez lhes desagradasse mais seria a apologia do perdão de uma falta que maculava a "honra" de um homem (macho). Por isso mesmo, a posterior substituição, seguindo revisão do libreto pelo mesmo Piave,que relocaliza o drama na Inglaterra de 1200, de Stifellio por Aroldo,cavaleiro saxão que regressa da cruzada, e de Lina por Mina, medieva mulher deste, embora recolocando tudo num contexto já batido por narrativas europeias e já sem escândalo, não levará a nova ópera, refeita musicalmente também, ao êxito. Penso por vezes nesse tema da ofensa da honra de um homem pelo comportamento de uma mulher, sem que a inversa seja jamais apontada... Talvez um dia te escreva ou fale numa questão que é eminentemente cultural. Hoje, na vadiagem por livros e leituras, caí em contos de Tolstoi. Não, não te citarei a "Anna Karenina", essa fica para outra vez... Mas "O Diabo" é um conto trágico, em que um homem que era bom sucumbe, mais do que à tentação da carne, à vertigem da sua auto destruição por força dum sentimento de culpa e condenação do adultério que comete pelo vício dos sentidos… É curioso como Tolstoi tantas vezes aborda essa tensão do homem entre o desejo da pureza e o diabo da carne; entre o caminho doloroso, esforçado e inseguro, da perfeição e o rodopio descendente para o esquecimento, a má consciência e o mal. "O Padre Sérgio" será um dos textos por que o escritor russo procurará exprimir a carga psíquica dessa tensão ao longo de uma vida. O príncipe Estêvão Kassatsky, feito monge e eremita, só encontrará a paz e descansará das tentações que o perseguem quando compreende que encontramos Deus servindo os outros, e nos enganamos quando julgamos que a nossa celebração de Deus, e só ela, nos torna santos. Mas voltando ao tema da "honra" do homem e da mulher: o príncipe foge do mundo, e para um mosteiro, ao descobrir, em vésperas do seu casamento com uma linda condessa  -  e por confissão voluntária dela  -  que ela fora já amante do czar Nicolau I. Isto é inaceitável para a sua "honra" (palavra que soa aqui a sinónimo de orgulho). Na verdade, conta Tolstoi que, para Kassatski,a noiva era a incarnação da pureza inocente, do amor imaculado. Claro que ele tivera inúmeras relações carnais com diversas mulheres, mas tinham-lhe ensinado que as senhoras e, sobretudo, as meninas, mais ainda as casadoiras, do seu círculo social eram intocáveis... "
    
Camilo Martins de Oliveira 

Jean-Luc Nancy: a poesia é o sentido do acesso.

 

Retomo a leitura de Nancy pela mão do livro Resistência da Poesia, livro que reúne um texto e uma entrevista a este filósofo francês que, tão claramente exprime, o quanto a resistência da poesia reside na sua própria insistência. Por Nancy vejo-a no excesso da razão, mas num excesso que a leva, exactamente por o conhecer, a excedê-lo. É, afinal um acesso de sentido e não um acesso ao sentido.

 

Com Nancy vou à casa lá onde e aonde sempre entendi a poesia visível até por gestos do quotidiano, arte da arte no estar presente numa transversalidade da razão, que acede ao pé da sua força seja ela de “la haine de la poésie”, de Bataille ou um casamento espiritual de Artaud.

«Poesia, é fazer tudo falar - e depor, em troca, todo o falar nas coisas, ele próprio como uma coisa feita e mais que perfeita». Assim Nancy.

E entendo os vasos comunicantes através dos quais sigo a poesia como o difícil que se não deixa fazer, sendo ela a única que o faz, fazendo a facilidade do difícil. Errado, julgo, é pensar-se que pode existir uma filosofia versus poesia, como?, se uma faz a dificuldade da outra e só juntas fazem sentido. Juntas são a proximidade íntima e controversa numa sedução de caça.

 

No entanto, os poetas podem não ser solicitados se se não sentir a necessidade do acréscimo que só o acesso aporta, e nunca conclui.

 

Daqui resulta o entender-se o literal de um verso como parte de um todo e ainda verso, no reverso do seu sentido que, no acesso à poesia, aí sim, deixa de produzir qualquer significação e passa a identidade.

 

Surge-me a poesia num exacto infinito, numa exacta insistência do primeiro a fazer, e que o faz num eterno retorno, sempre original. Depois, basta intuir no para além da mola que se enrola quedada acto, pois é de poema que vos falo.

Recordo o quanto Nancy na sua obra o Sentido ou o final do Sentido, num diagnóstico ao nosso tempo, ainda mais fundo do que o fim da história ou das ideologias, englobava ele o necessário e anterior conhecimento da nossa ontologia, alertando para o onusto a que Bataille chamava «a tentação lamecha da poesia», a tentação dos academismos que por sobriedade elevavam a prosa a expoente sem medida e sem conhecimento do que estava em jogo.

Jean-Luc Nancy afirma mesmo que « podemos suprimir o poético , o poema e o poeta sem muitos danos (talvez): Mas a poesia está lá mesmo quando a recusamos, quando dela suspeitamos ou quando a detestamos».

 

A poesia é para lá da sub-cultura ou da cultura, pois se insiste e resiste é exactamente por estar para lá, muito para lá de todas as outras razões.

 

E ainda com este livro se recorre a um outro, também de Nancy , aquele que nos diz que

as Bem-aventuranças, todas juntas, são o amor

 

Direi ainda que as poesias todas juntas ou singulares são convocação de uma efusão silenciosa, e o que as comunica, são ordens sensíveis do silêncio das Bem-aventuranças.
 

 

Teresa Vieira

Setembro 2013

Sec.XXI

FERNANDO AMADO INVENTOR/CRIADOR DE GÉNEROS TEATRAIS

Passamos novamente em revista o conjunto das peças de Fernando Amado, vinte e duas no total, sendo que uma delas “O Homem-Metal”, de influência futurista, é dada como desaparecida.

 

Mas interessa-nos agora verificar como, ao longo de dezenas de textos escritos, representados e/ou publicados ao longo de dezenas de anos, Fernando Amado, percorreu e, mais do que isso, assumiu expressões dramáticas diversas; e, mais do que isso ainda, criou para elas uma estética e uma nomenclatura extremamente expressiva e original. Aliás, em artigo anterior, já falei no “Debucho” teatral “Sua Excelência já não Atende Ninguém” representada em 1961.

 

Ora bem: de acordo com a edição da INCM que temos acompanhado, foram sete os debuchos teatrais de Fernando Amado: peças breves, concisas e diretas no conteúdo, como sempre enriquecido, na obra do autor (e não só no teatro) por uma visão ética e social do conflito, das psicologias e condutas: e tudo, repita-se, numa expressão dramática breve, concisa e direta.


Mas não foi só aqui que Fernando Amado inovou na qualificação das peças. Para lá de alguns textos sem qualificação, e para lá de um longo Debucho inteiramente monologado e como tal também qualificado, encontramos na obra teatral de Fernando Amado mais duas Comédias, um Ensaio de Diálogo, dois Mistérios, um Entremez, um Sainete e ainda um Capricho Teatral…

 

E nem de propósito: esse Capricho é nada menos do que “A Caixa de Pandora”, já aqui referenciada e analisada: e trata-se, como posso recordar, de uma peça em um ato, que mistura personagens de épocas e referencias culturais diversas, pondo-as em diálogo com o Publico, o Autor, o Critico e o Empresário - num texto dramático antecedido de um Prólogo “lido pelo autor” e, na edição, de detalhadíssimas notas de cena e de interpretação textual, como na altura própria se viu.

 

Mas vejamos agora o texto dramático mais original, pelo menos em certos aspetos, de Fernando Amado, precisamente o único que o autor qualifica como Sainete.

 

“Novo Mundo” (1947) passa-se nos EUA, ou melhor ainda, “no hall típico de uma estalagem do Faroeste”, assim mesmo, minuciosamente descrita.

 

E os personagens são dignos de um filme de cowboys ou “cóbois” como muito se dizia na época:
 

“Um magnífico Vaqueiro, de trajes reluzentes, lenço ao pescoço, coldre, esporas, sorri, amarfanhando entre os dedos um imenso chapéu. Junto dele, uma robusta Amazona, de cação, chibata e polainas”. Mas “do lado oposto, o clássico businessmen, corpulento, cabelo grisalho, charuto ao canto da boca e pés em cima da mesa. Por trás do balcão, um homem ainda jovem, a lembrar caixeiro de loja fina ou empregado superior de algum ministério, observa atento, queixo entre as mãos”…

 

E o texto assume uma irónica e inesperada ambiguidade: parte de um diálogo típico de filme do Faroeste, mas resvala para a escolha de intérpretes para uma produção. E por isso, gera-se um curioso ambiente ambíguo, pois afinal, perante o Milionário que os escolhe e Jim que o apoia, passam personagens que tanto parecem reais como fictícios, tanto verídicos como pretendentes à produção: Índio, Rei da Industria, Sufragista, Mulher Fatal, Gangster, Estrela Loira, Fred, Pastor Reformista, Dactilógrafa, 4 Jornalistas, Fotógrafo… Onde começa e onde acaba a realidade?

 

E no final, conclui o Milionário: “O que importa, afinal de contas, não são os devaneios. É a prática. É a corporação da ideia. O que importa é ir para diante - com otimismo, com rudeza, com audácia”…

 


DUARTE IVO CRUZ

RUSALKA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Escuto a "Rusalka" do Dvorak, e penso em ti, ó Princesa das cartas que te escrevo! Serás essa mulher, serás visão, anseio, aparição, sonho místico mais do que amor real? Ao longo deste convívio epistolar, nasceu naturalissimamente, entre nós, uma intimidade antiga, por paradoxal que seja uma antiguidade nascer agora... Sei hoje que este convívio contigo é essencial ao meu equilíbrio interior, à minha alegria. Porque é renúncia a outros momentos e carinhos, tem-me feito perceber que, afinal, posso bem com saudades de coisas boas: a grande saudade de ti é ontológica, não se cura nem engana, faz parte de mim. Vivo continuamente com este sentimento de um encontro único, tão profundo e intenso, de ternura. Ternura inesperada, imerecida e simples, graça que dói por ser impossível alegria. Assim trago, dentro de mim ,o inalcançável. Rusalka é o nome eslavo da ondina, ninfa da água ou sereia... Filha de Vodnik, o senhor das águas, a infeliz quer libertar-se das ondas suas irmãs que, todos os dias e noites, a enredam em nenúfares. Quer a liberdade do dia, a glória aparente da luz que, pálida, a desperta nas profundezas do lago. Daí também surge o espírito dos afogados, que procura agarrar e levar ao fundo as ninfas do bosque, que lhe fogem e se riem dele. Rusalka conseguiu trepar por um salgueiro chorão e assiste à frustração de quem, como ela, habita as águas e não é ser humano com pernas para correr à superfície da terra... A seu pai confessa a tristeza de não ser e o anseio de ser humana. Vodnik pergunta-lhe se quer ser infeliz e mortal, e prenuncia-lhe um destino desgraçado se fugir à sua condição de ser aquático. Como era o mundo, penso eu, antes de existir, quando o espírito de Deus pairava sobre as águas. Ou como cada um de nós, de olhos fechados, nas águas do ventre materno. Mas a paixão da ondina é mais forte, é já humana: não resistiu ao encanto de um príncipe que se vem banhar nas águas misteriosas do lago dela,onde ela é só a vaga que o abraça e ele não vê, onde só ela ama e não se sente amada. Por amares humanamente infeliz serás, prediz o pai. Mas infeliz, tão infeliz sou eu agora, pensa ela, pois que o meu amado não conhece o meu amor! E à lua que de tão cheia inunda o ar todo, a floresta inteira, o próprio lago, Rusalka (na mais linda ária da ópera) reza e suplica: Ó lua, que do alto desse céu de veludo rompes a noite e te passeias pela extensão da terra, e vês longe, e com teu olhar afagas os lares dos homens...pára, espera por mim! Diz-me onde está o meu amor! E diz-lhe, a ele, ó lua de prata, que é o meu abraço de água que o encerra, para que de mim se lembre nos seus sonhos! Não me abandones, ó lua, não te vás embora, sem o ires buscar e lhe alumiares o caminho até mim... Diz-lhe que aqui estou, aqui o espero. E se for eu o sonho dessa alma humana, desperta-a para mim! A feiticeira que a libertará e lhe dará pernas, adverte-a: "se não encontrares o amor na terra, viverás repudiada, de novo condenada às profundezas. Se perderes esse amor, que tanto desejas, a maldição dos senhores das águas, no fundo delas outa vez te afogará. E mesmo que encontres esse amor, terás de sofrer, pois nenhum ouvido humano poderá escutar-te... Queres tu ser muda para quem amas? A resposta da ondina é trágica:   - "Se for para conhecer o seu amor, podes crer, que com prazer aceitarei ser muda!" Mas poderá, mesmo tão generoso e puro, se for já humano, um amor vencer tantos sortilégios? A ópera de Antonin Dvorak, seguindo o libreto de Joraslav Kvapil, diz que não. Nenhum amor humano vence a sua condição. Pela alvorada, o príncipe vai correndo o seu ginete em perseguição de uma gazela branca e maravilha-se com a descoberta de Rusalka, muda e branca, branca, fria e bela... Arrebata-a para o seu palácio. Anunciam-se as bodas do príncipe com a senhora do seu encantamento. Mas a ondina permanece muda e fria... Em desespero do seu anseio, o noivo cai na trama de uma princesa estrangeira que o cobiça. O ciúme de Rusalka frustra-a ainda mais de uma redenção possível do anseio amoroso. Só se liberta da mudez que a torna incomunicável chamando pelo pai,Vodnik,o senhor das águas,que finalmente a arrasta para as profundas do lago. De onde a ondina, lembra-lhe a feiticeira só poderá libertar-se apunhalando o príncipe, fazendo correr o sangue humano, vermelho e quente que ela em si não tem. Rusalka nega-se, mas, fogo fátuo, aparecerá ao amado que a procura no bosque, e pela derradeira vez o abraçará, pela primeira o beijará. Sabendo ambos que esse beijo o matará. Mas nós não sabemos se esse príncipe que por amor morre irá, nos braços feiticeiros, poderosos e impotentes, da onda Rusalka, perder-se com ela na eternidade das águas iniciais. O dueto final é, mais ou menos, assim: Príncipe  -  "Quero tudo, e tudo dar-te! Beija-me, beija-me mil vezes! Não quero regressar, prefiro morrer! Beija-me, dá-me a paz!" Rusalka  - "O meu amor arrefece qualquer sentimento: devo destruir-te, devo acolher-te no meu abraço de gelo... Pelo teu amor, pela tua beleza, pela tua paixão tão humana e tão inconstante, por tudo o que causou a maldição do meu fado, por todo esse tanto, alma humana, Deus te guarde!" A sereia inefável, silenciosa, e tão pálida que é invisível transparência, é a forma enigmática desse anseio que connosco nasce, que nenhum desejo realizado satisfaz, nem ilusória posse iludirá. Ser humano é querer sempre mais, é o desejo de chegar ao impossível. Mas só a verdade nos libertará. E a verdade em que acredito é uma promessa: a de que, no fim deste percurso, veremos o invisível, poderemos o impossível, e encontraremos, lá no fundo das águas que nos engolem, a luz que ainda não temos bem a certeza de ver acesa dentro de nós. Talvez por ela, todavia, haja sorrisos e olhares que trocamos, uma mão estendida e dada, uma palavra, um apoio, uma entrega, que dão à generosidade dos homens a dimensão da misericórdia de Deus". Não sei em que registo o marquês de Sarolea escutou a "Rusalka". Ao ler e traduzir esta carta, pus a tocar, para mim, a versão de Sir Charles Mackerras, com a Orquestra Filarmónica Checa e a comovente Renée Fleming. Camilo Maria preferiu a canção à lua. Eu quase chorei ao ouvir o lamento da ondina, a abrir o acto III: "Força insensível da água, outra vez me arrastaste para o fundo... Porque não poderei, então, desaparecer, desaparecer finalmente?... ... Onde estás tu, ó magia das noites de Verão, sob os cálices dos nenúfares? Porque não poderei eu, no desamparo deste frio, perecer, perecer finalmente? "Mas a fluidez musical do drama tem uma beleza contínua e secreta, como se a sensualidade da própria vida antes perguntasse : Porque não poderei eu viver, viver finalmente? Como no fim da "Traviata"  ---  que é também um rio de música  ---  a morte surge como passo para o realizável. Para o encontro.

 

Camilo Martins de Oliveira 

Pág. 3/3