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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NASCER É UM REGRESSO?

 

Minha Princesa de mim:

 

Enigma seria eu me ter esquecido de tão bizarra forma de tratamento: "Minha Princesa de mim"... é fórmula tão enigmática como o esquecimento. Pois quem entenderá em qualquer dia que o esquecimento, afinal, é ontologicamente aquilo cuja lembrança perseguimos, o enigma que sucessivamente não deciframos,uma enervante contradição da saudade. Esta, mais do que lembrança, é presença. Tal como a memória dos mistérios no-los traz até nós. O esquecimento, quando muito, será, na melhor das hipóteses, e por fortíssimo esforço cerebral, o sacramento da morte. Se alguém ousar entender que pode salvá-lo assim. Sinto-me, nesta noite quente e quieta, um pobre de Deus que se silencia por não se encontrar já mais no apagão da memória da sociedade em que vive. Donde vimos? Donde chegámos aqui? Como nos constituíram os que foram a nossa vida antes de nós? O que nos dizem os nomes que nos deram, e aqueles que damos às coisas? O que é o amor? Esta tarde, aqui em Florença, nos Uffizi, contemplei com vagar duas pinturas de Sandro Botticelli: "A Primavera" e o "Nascimento de Vénus". Neste, pareceu-me  -  até pelo semblante e as flores que lhe alegravam o tecido do vestido, ou as que, ainda, se juntavam em colar ao seu pescoço  -  que a moça oferecendo um manto à Vénus desnuda que, sobre uma concha, nascia das ondas do mar era Flora, que Ovídio identificou a Clore, filha de Deméter (ou Ceres, em Roma). A tal que Hades (Plutão) raptou e arrastou para o reino das profundezas, onde passou a chamar-se Perséfone (Prosérpina). (Por ela voltaremos a Stravinsky)." A Primavera", essa é certamente Flora, vestida, coroada e enfeitada de flores. Mas Zéfiro, o vento que a levou, esse também aparece soprando no "Nascimento de Vénus". Reunidos estão a deusa do amor, a da primavera que significa esse amor como efeméride e ressurreição, o vento que em pétalas sopradas a leva, mas que a conduzirá ao altar de Zeus. E lembrada é a mãe de Flora, Deméter (Mãe da Terra) ou Ceres, deusa das culturas, dos cereais e frutos que alimentam os mortais. A narrativa mitológica de Deméter e do rapto de sua filha Clore  -  que se chamará Perséfone quando Hades (Plutão) fizer dela rainha do mundo subterrâneo  - tem muitos registos. Talvez por estar em Itália, tenho aqui à mão uma canção de Calíope, no Livro V das "Metamorfoses" de Ovídio, em latim. Por isso é Deméter Ceres, e Perséfone Prosérpina. A Clore sempre chamei Flora (onde?  - procuro  -  disse-o Ovídio?) e sempre me sugeriu "éclore" (desabrochar, nascer do ovo ou da terra). E Flora são flores que se abrem ao sol e ao vento, que lhes rouba e espalha a semente, e as desflorará. O mesmo vento, Zéfiro, que soprando sobre as ondas do mar delas ergueu a espuma donde Vénus surgiu. O sopro inicial que levanta o amor de sobre as águas, e beija as flores e depois as desflora para que delas nasçam os frutos de Ceres, da mãe terra. Esta precisa da primavera, de Flora, sua filha, para que não morram as culturas dos cereais (de Ceres) e frutos que dão alimento à vida. Têm os mitos muitas versões, são, como os pensamentos dos homens, muito vagabundos. Por cada narrativa deles, poderá, irrequieto, percorrer-se o labirinto mágico das nossas imaginações. Em cada um de nós se mexe um caminho, e nele nos deixamos mover. Lembro-me de Bora-Bora, quando a onda vaga da maré nos conduzia ao abandono maravilhado a um visionário percurso por primaveras submarinas... De nós só sabemos o que sempre vamos descobrindo. Longo foi o percurso de Ceres em busca da Primavera, sua filha. Sem esta, secavam-se os campos à míngua de rebentos. E quando a descobriu no reino subterrâneo... com Plutão,senhor das profundezas,acordou que Flora ali estaria três meses do ano, que nos outros nove seria necessária à alegria! Raptada, talvez ainda, mas por Zéfiro, o deus do vento que tudo leva, mas semeia e traz de volta. Na "Perséphone" de Stravinsky, a rebuscada prosódia de André Gide é declamada pela protagonista, sobre a música, mas cantada pelo coro. Talvez porque só a música saiba contar-nos mistérios.

  
Camilo Martins de Oliveira