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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins  
de 30 de dezembro a 5 de janeiro de 2014

 

Manoel de Oliveira realizou «Palavra e Utopia» (2000), obra fundamental sobre o Padre António Vieira, a sua vida e obra, que nos permite tomar contacto com alguns dos textos fundamentais da oratória e da epistolografia do grande prosador da língua portuguesa.

 

 

 

A INVOCAÇÃO DO PADRE VIEIRA
L
ima Duarte, o versátil ator brasileiro, personificou a figura do Padre António Vieira, numa homenagem muito especial que a Universidade de Coimbra prestou ao orador sagrado no final de novembro. Passavam 350 anos, dia por dia, sobre o momento em que, em 1663, foi proferido o Sermão de Santa Catarina, Virgem e Mártir. Tendo a cidade do Mondego sido palco do estranho julgamento e da condenação de Vieira pela Inquisição («seja privado para sempre de voz ativa e passiva, e do poder de pregar, e recluso no colégio, ou casa de sua Religião, que o Santo Ofício lhe assinar, donde, sem ordem sua não sairá»), é significativo que a memória tenha sido recordada, em reconhecimento do muito devido ao mestre maior da língua portuguesa. E foi com emoção que nessa noite, no emblemático Teatro Gil Vicente, com a presença de Manoel de Oliveira, tivemos a apresentação do filme «Palavra e Utopia», uma das suas obras mais marcantes, que aproveita, de modo magistral, a vida e obra do Padre Vieira, partindo de Coimbra e dando-nos a panorâmica singularíssima da sua vida, através da sua oratória e epistolografia. E o certo é que deparamos com a procura pelo jesuíta da razão de ser de um povo paradoxal, que combate e defende, a um tempo, o mito e a racionalidade. Em 1663, foi chamado a Coimbra para responder perante o Santo Ofício sobre as suas considerações a propósito das «Trovas» de um sapateiro ignoto, que tinha por nome Bandarra. E, depois de ter sido um dos conselheiros favoritos de D. João IV, Vieira vê-se na necessidade de demonstrar a sua inocência, a propósito de uma suposta heresia. Era o tempo de D. Afonso VI, cujo séquito não escondia animosidade contra o jesuíta. Perante os juízes, revê a sua vida: desde a juventude brasileira, passando pelo noviciado baiano, pela sua defesa da causa dos índios e pelos primeiros sucessos do púlpito. O filme conta com três atores que representam o mestre dos «Sermões», Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra e Lima Duarte, em três momentos de sua vida. E foi este último que ali esteve connosco, para nos lembrar a efígie do homenageado, mesmo recordando-me que se sentia, modestamente, talvez mais uma reencarnação de Zeca Diabo, do que a do grande Vieira.

 

«PALAVRA E UTOPIA»
No filme, a Bahia e Roma são polos que evidenciam os desgostos de Vieira, obrigado a partir para a cidade papal para se proteger da decisão inquisitorial, que entretanto fora atenuada, em 1668, pelo perdão de todas as penas a que fora condenado, mantendo-se apenas a «proibição de tratar as proposições heterodoxas contidas na sentença». No entanto, antes de partir, dirá em Lisboa: «Quem fez o que devia, devia o que fez: e ninguém espere paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se venci, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à Pátria, fiz o que devia a mim mesmo». Em Roma, conta com o apoio do Superior Geral da Ordem, Padre João Paulo Oliva, e ganhará fama, que chega à corte da Rainha Cristina da Suécia, que abdicara e se convertera ao catolicismo. Os objetivos formais da sua ida são: reativar o processo de canonização do Beato Inácio de Azevedo e dos trinta e nove companheiros martirizados pelos huguenotes franceses, tratar do melindroso tema dos cristãos-novos e obter um breve pontifício que o isente da jurisdição da Inquisição portuguesa. Os cinco anos de Roma são de intensa atividade, designadamente epistolar, com o Duque de Cadaval, o Padre Manuel Fernandes, D. Rodrigo de Menezes, os Marqueses de Gouveia e de Minas e, sobretudo, Duarte Ribeiro de Macedo – mantendo-se o clérigo ao corrente de todas as vicissitudes políticas nacionais. Em 1670, profere na igreja de Santo António dos Portugueses, o sermão de 13 de junho, na ocasião em que o Marquês de Minas, embaixador extraordinário de Portugal, fez a embaixada de obediência ao Papa. Então dirá sobre a fama de António de Lisboa: «Sem sair ninguém pode ser grande»; e «por isso nos deu Deus pouca terra para o nascimento e tantas para a sepultura; para nascer pouca terra, para morrer toda a terra; para nascer Portugal, para morrer o mundo». Em dezembro de 1673, a rainha Cristina designa-o pregador oficial da sua Casa, mas o Padre recusa tão aliciante proposta, para não perder a confiança do regente português, o futuro D. Pedro II, e para não ficar definitivamente afastado da pátria. O principal resultado da estada tem a ver com este último aspeto: Clemente X (representado por Duarte de Almeida, ou seja, por João Bénard da Costa) assinará a 17 de abril de 1675 a libertação definitiva do Padre Vieira, sujeitando-o à Congregação romana do Santo Ofício e absolvendo-o de todas as penas, censuras e restrições eclesiásticas, até então proferidas contra ele. Conseguira-se o essencial e, assim, já podia regressar a Portugal, julgando contar com o acolhimento favorável de D. Pedro. No entanto, uma vez regressado e apresentando-se-lhe, conta com uma reação fria e pouco disponível. Estava chegado o fim da sua influência, apesar de sinais muito ténues de apreço formal. Conselhos menores são ainda solicitados, mas há desconfiança relativamente ao seu pensamento sobre os cristãos-novos. A ironia e a distância de Vieira relativamente a D. Pedro são, aliás, evidentes num breve remoque presente no filme…

UM VARIADO TEATRO DO MUNDO
Aníbal Pinto de Castro, analista rigoroso do Padre Vieira, diz-nos que «a sua visão do mundo e da vida transforma-se (…) num grande e variado teatro do mundo, dinamizado, qual “perpetuum mobile”, pela força caleidoscópica da mudança». E é esse teatro do mundo que Manoel de Oliveira bem entende em «Palavra e Utopia». Do mesmo modo que ilustra na prática o que Margarida Vieira Mendes afirmou, melhor que ninguém: Vieira fez da «própria palavra uma força, uma espécie de energia, capaz de influenciar e motivar a ação». A oratória barroca, apresentando a coincidência dos opostos («coincidentia oppositorum», na expressão de Dâmaso Alonso) procurava, afinal, pela contradição e pelo paradoxo, suscitar a transformação e a mudança. «Quando vejo que Deus me compra com todo o seu sangue, não posso deixar de cuidar que sou muito (disse Vieira no Sermão da Quarta Dominga do Advento, de 1650); mas quando vejo que eu me vendo pelos nadas do mundo, não posso deixar de crer que sou nada»… Como considerou António José Saraiva, ao falar do «discurso engenhoso»: «a orgânica do discurso consiste em tirar de determinada palavra (…) um número indefinido de outras palavras, que se organizam segundo as leis de uma composição, decorrente mais de uma estética geométrica do que de uma geometria dedutiva». Em «Palavra e Utopia» há a compreensão dessa ligação entre a palavra e o sonho, entre o verbo e a ação. Enigmaticamente, porém, as últimas palavras de Vieira no filme são: «tudo é vento, tudo é fumo»… Mas António Vieira nunca desistiu da articulação entre dizer e agir. Por isso, definiu regras para que a multiplicação de temas e a prolixidade na sua apresentação não prejudicassem a eficácia do discurso…


Guilherme d'Oliveira Martins

JÁ LÁ ESTIVEMOS…

 

Minha Princesa do Céu:

Será disparate falar-te assim, mas sempre me ensinaram que, neste eterno-infinito (mais um pleonasmo, desculpa!) onde ambos estamos (desculpa-me, outra vez: não estamos, só somos), ambos nós, tu e eu  -  nem eterna nem infinitamente, mas tão simplesmente para sempre, pois só a simples sempricidade fará sentido  -  será disparate (?), dizia, lembrado sem lembrança, tratar-te assim... Mas maior disparate, ainda, seria tratar-te por minha Princesa de mim... aqui (?), onde (?)  -   neste "assento etéreo" , disse Camões, eivado de um paganismo cósmico, greco-latino, que também ocupa representações cristãs do que não sabíamos  -  "aqui/onde" mulher alguma recordará qual, do primeiro ao seu sétimo marido, pois tão só na comunhão de todos os santos nos reconhecemos. Deixemos aos sábios teólogos lá de baixo  - que, a nós, subidos a este assento etéreo, já nada poderão ensinar  -  os debates sobre o celibato do clero secular, a ordenação das mulheres, o divórcio (com as subtilezas que distinguem um contrato dum sacramento, ou os confundem)... Nós que bem sabemos como o gosto (clerical?) de um qualquer exercício de poder tantas vezes confundiu o amor do céu com a autoridade da terra... Aqui onde somos, nada nos diferencia, e só nos reúne o acolhimento da misericórdia de Deus. É bom! O nosso Camilo Português, digo-te a ti, Princesa que foste, lá anda pelo terreno do mundo intermédio, entre trevas e visões, feito cego, coitado ainda, pois cego poderá ser por umas ou por outras. Queira Deus que não lhe falte esse tactear que encontra as pedras certas do caminho, nem se lhe apague a lanterna que na mão leva, como Diógenes, na busca do Homem que tão dificilmente enxergamos "lá em baixo". Já eu, há década e meia, dele me tinha despedido, quando, nesse Japão tão lindo, que fora do tempo partilhámos e neste "assento etéreo" comungamos, ele reuniu, com monges e coros budistas, o Coro Gregoriano de Lisboa. Em 1995, logo a seguir à devastação  -  e no sítio dela  -  do grande terramoto de Kobe. E em templos, cristãos e budistas, em Tokyo ou em Tera-Dera, no respirar silencioso e cheio das montanhas, se ouviram cânticos de concórdia, humildade e paz.

Mas este nosso malandro (há partidas que não se pregam a ninguém, nem a mim que estou nos céus!), já tinha cantado a "casa da Mariquinhas"  -   fado soez, e de Lisboa, nessa garganta que amava Coimbra  -  em jantares que fazia lá em casa... À guitarra portuguesa, acompanhava-o S.A.I. o Príncipe Takamado, primo direito do Imperador, 7º na linha de sucessão. Nesses "agapés" reuniu Fernando Alvim, João Torre do Valle, Mísia, António Chainho e Mário Pacheco. Já eu era ser deste eterno assento: não me era dado invejá-lo. Ainda te disse, Princesa, quando ambos por lá andávamos, que davas cabo de mim. Não deste! Mas aquele maroto talvez tivesse dado, se Nosso Senhor não me tivesse feito subir, "in tempore oportuno", num elevador que, valha a verdade, sempre enjoa menos do que a barca de Caronte.

Beijo diáfano.

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira 

A DESFORRA DE ORFEU…

 
Minha Princesa de mim:
Cheguei inconscientemente a esta fase da vida que é sempre nova, pois se minguante fosse seria para depois crescente ser, e cheia já foi, não vale insistir em roncos... Felicito-me hoje no silêncio. Como nesta noite, assim tão quieta: só de ver o escuro  -  por vê-lo tão só e tão só de vê-lo  -  não sinto falta de nada, nem ausência alguma. Uma presença imensa me resguarda, e nela deixo, enfim,descansar meu coração. Bebo-lhe a paz, beijo sem mais. A muito já me entreguei na vida, a entusiasmos vários, uns tarde travados, outros tarde demais magoadamente sentidos. De todos eles, razoáveis ou loucos, duradouros ou efémeros, mais ou menos pertinentes ao meu sentido de mim, não guardo saudade nem arrependimento. Estive neles todos, por todos eles respondi e respondo. E é com um sorriso compassivo da alma, agora, no compreensivo silêncio desta noite húmida e tão quieta, que na negridão vejo  todos esses momentos de alegria densa ou fátua, de tristeza fraca ou dorida, de persistência e desânimo, de cobardia que inesperada coragem venceu... Foram todos meus, pois ali estive. Deles também fui diferentemente, porque o ser que sou nem sempre esteve do mesmo modo. Não apago, nem sequer me desculpo. Abandono-me a um juízo silencioso e sábio, que em meu recolhimento me inspire a quietação da íntima alegria: saber agradecer o ser que sou, sem me presumir nem pretender o que não sou. Não sei ainda, talvez, não sei o que é amor. Tê-lo ei confundido com desejo, com procura de posse, com carência de carinho dado e retribuído, com inesperadas coincidências de risos, sorrisos, olhares, ditos, ou gestos acautelados, segredos pressentidos como intimidades por vir... Mas fui aprendendo, nos sobressaltos da vida e dos sentimentos, em todos os modos em que estivesse, uma como que densidade de mim. Afinal, o meu pensarsentir, como onda vinda do antiquíssimo mar profundo do meu ser, só ansiava, verdadeiramente, por essa fidelidade que é,tão simplesmente, querer bem. Aí principiava o meu siêncio. Aqui, onde o silêncio principia e o amor começa. Descobrimento. Cheguei a esta idade em que o olhar da alma já não tem cansaço, e vai iluminando, no espelho que me devolve,as ilusões que antes eu já tomara por importantes feitos meus. Com tranquila alegria e piedade de mim, com essa misericórdia que, como graça imerecida, talvez, mas bem-vinda por me tornar novamente pequenino, me diz como só a infinita ternura de Deus pode ser a morada em que habite o coração dos homens. Caminho numa procissão em que todos seguimos de mãos dadas, vou-me chegando àquela fronteira além da qual apenas sinto que as inúmeras mãos à minha frente, mesmo quando já invisíveis, me continuam a puxar. E como Orfeu,cheio de música, esperança e sonho, fiel aos amores que tive e me foram dados,olho para trás e chamo, puxo pelos que também hão-de vir. Porque, todos juntos, até Hadés traremos para cima,  -  com Eurídice, que Flora alegremente seguirá  -  à superfície da luz, ao Reino de Quem escolheu a misericórdia e o sacrifício não.Vês, minha Princesita de mim? Estou velho e sou alegre. Mesmo quando rabujo,acredita. E a mão que hoje estendo, esta em que tão docemente sempre senti o manso calor da tua, não é só minha, quiçá nem sequer me pertença. É legião. São as nossas mãos,as que todos nos damos para chegar lá acima. E descansar na paz.

Camilo Martins de Oliveira

ENTRE ORFEU E EURÍDICE

 

Minha Princesa de mim (serás?):

Olho para o "Orfeu e Eurídice" do Jean Raoux, quadro exposto aqui, no J. Paul Getty Museum de Los Angeles. Pintura talvez já moldada por uma qualquer achega iluminista: uma alma do sec.XVIII interroga um mito clássico e interpreta-o. O lírico Orfeu dá a mão direita à infeliz Eurídice, enquanto a sua esquerda, segurando o violino que à moda do tempo a seu modo foi representando a lira, lhe aponta a saída para a luz da vida. O mundo da felicidade como destino, parece ele dizer-lhe, está lá fora, fora do tenebroso subterrâneo a que a mordedura de uma serpente, mandada por Hadés / Plutão, a encerrou.  Mas Eurídice, nesse preciso momento em que o seu amante  -  depois de ter conseguido graciosamente descer aos infernos, para do enterro deles a libertar  -  a quer levar, não é para Orfeu que olha, nem para a esperança. Vira para trás o bonito rosto, como se lhe custasse mais  despedir-se do soberano Hadés, no qual uma rendida Perséfone/Prosérpina amorosamente se reclina. E ali estão os três fados ou fadas, a fiar, desfiar, cortar o cumprimento da sua vida. Prosérpina, sabemos, ainda será descoberta e liberta por Ceres, sua mãe, a Mãe-Terra que, de Plutão, arrancará o consentimento dos nove meses de vida livre, ao sol e ao vento, para a que, todos os anos, renascerá Flora, a Primavera. Essa que só por um trimestre astral deverá submergir-se no silêncio escuro do reino das profundezas… Mas Eurídice é humana, não sabe já  -   por tanto ser do mundo intermédio  - distinguir entre trevas e luz. Numas, não vê. E, da outra, um medo a tolhe, pois que sempre tememos que nos cegue o brilho. Aos pés dessa mulher, jazem frutos que, em tempo de castigo, cegueira e submissão, Prosérpina deixou tombar, antes de voltar a ser Flora. Não os vê Eurídice, nem para o seu amante olha. Não quer deixar o que conhece agora. Reduz-se,volta para trás. Resigna-se, renuncia, anula-se. Orfeu terminará o seu percurso. Sem Eurídice. Chegará sozinho à superfície da terra, onde o seu canto e a sua lira já haviam emprenhado de concórdia, alegria e paz, as bestas ferozes com os animais todos que julgamos mansos. Mas sobre ele se precipitarão as bacantes... Como poderia Baco, deus do vinho, do esquecimento e da discórdia, consentir a vida de um coração fiel? Morrerá o amante, por muito ter amado. Se Jesus fosse, Baco teria perdoado. Zeus/Júpiter, todavia, ainda abriu ao poeta o céu. E, no infinito silêncio das noites cobertas de pérolas, ainda hoje ouvimos a voz do trovador. E vemos, estrelas que são promessas, as luzinhas em que se tornaram os pedaços da lira que as bacantes desmancharam... É tão bom, Princesa, ouvir cantar!


Camilo Martins de Oliveira 

Fernando Pessoa



SIM, POR FIM

 

Sim, por fim certa calma…

Certa sciencia antiga, sentida

Na substancia da vida,

De que não há acabar da alma,

Qualquer que seja a estrada que é seguida…

 

Fiel visão?

Crença de muitos? Não…

Que o que sinto tem differença.

É uma vida, não uma crença…

Não é pelle: é o coração.

 

Levantei-me ao ler estas palavras. Fui com elas dentro das mãos atrás do jardim da casa. Cultivei-as num vaso, enquanto lhes repetia que eram versos que à terra entregava. Abusaria delas, sem dúvida, e nada as perturbaria na sua imensa suficiência. Eu sabia. Como sabia que uivariam à lua sempre que um navio se aproximasse. Sempre que uma notável pertinência as interrogasse.

 

Teresa Vieira

28 de Novembro-2013

FERNANDO AMADO: EVOCAÇÕES DE IBSEN

“O Nosso Lugar” é o título de uma conferência proferida em 8 de Março de 1922 por Fernando Amado na Liga Naval, agremiação relevante na vida cultural e doutrinária da época: marcou, durante décadas, um espaço e uma doutrina marcante e particularmente  no período em que a sessão se realizou. O texto seria editado no mesmo ano e contribuiu de forma significativa para a definição de uma doutrina abrangente da perspetiva histórica e cultural no pensamento e na obra de Fernando Amado.

E de tal forma que “o nosso lugar” nasce tanto das opções ideológicas como da analise especifica da cultura teatral. Nesse aspeto, aliás, há como que uma autocrítica  singularmente “injusta” na medida em que o autor, ao contrario do que afirma, nunca se “desviou” nem desviará, antes pelo contrário, do teatro - “convencido como est(ava) de que, das sete Artes a que poderemos chamar poéticas (Musica, Poesia, Teatro, Escultura, Arquitetura, Pintura e Dança), é o Teatro moderno a que mais requere de Abstração, de Construção, de Variedades no Equilíbrio, ou enfim, para me servir dum termo particularmente precioso nos nossos dias: de Técnica”…

Ora, recorde-se que, precisamente por essa  época, e tal como aqui temos referido, Fernando Amado inicia uma relevantíssima obra teatral, numa linha de modernidade que se inscreve na renovação modernista da dramaturgia e do espetáculo em Portugal. Não obstante - neste texto de 1922, reconhecerá “que a satisfação do dramaturgo não foi o que predominou no meu entusiasmo”…

Em seguida, Fernando Amado desenvolve uma curiosa analise da literatura e do pensamento subjacente, numa perspetiva de modernidade intemporal - isto é, dos dramaturgos que mercaram a sua época, renovaram o teatro e perduram até hoje. Os clássicos que melhor ilustram a modernidade do termo.

E cita: “Ibsen e Shakespeare são os dois  dramaturgos máximos do Cristianismo (endente-se: era cristã, acrescenta em nota). Antes deles houve os gregos, criadores da Tragédia. Shakespeare  criou o drama. Ibsen estudou os gregos, penetrou Shakespeare e realizou a fusão da Tragédia com o Drama, criando assim por seu turno, um novo Teatro (a que poderemos chamar sintético) no qual a ideia sofre uma transubstanciação,  de certo modo paralela à da Musica na obra de Wagner”.

O texto prossegue numa analise alternada dos dois grandes dramaturgos, com referencias à tradição do “Teatro helénico”. “Ibsen  pegou  no contraste shakespereano  entre o horroroso e o sublime, o ridículo e o imenso, o belo e o torpe, entre a pureza e a inquietação”. Ibsen é “o mais profundo Poeta da Vida, o Mestre dos Mestres”.

E finalmente, efetua uma analise cruzada, para alem dos nomes já citados: Nitzsche, Tolstoi , constituem com Wagner e Ibsen, “os inventores maiores do seculo passado”, percursores da renovação e modernização da musica, do teatro, da literatura. De facto, sobretudo Ibsen marca  a modernização do teatro português. E  Fernando Amado-dramaturgo bem  reflete essa influencia modernizante,  como temos visto e  iremos vendo em próximos artigos. 

 

DUARTE IVO CRUZ 

NATAL E COSMOGÉNESE…

 
Ainda Meu Caro José Saramago:
No seu Caderno , o José reproduz a abjuração de Galileu aos seus "erros", feita sob pressão da Inquisição. O sábio, cuja injusta condenação seria anulada pela Igreja quase quatro séculos depois (!), teria todavia murmurado a certeza da sua evidência: E pur si muove... Com essa confidência abre Teilhard de Chardin o seuL´Avenir de l´Homme, cujo editor, aliás, lhe pôs, como cabeçalho, um passo de uma carta do autor à Senhora Georges-Marie Haardt: Todo o porvir da Terra,como da Religião, me parece suspenso no despertar da nossa fé no futuro...Como vê, nem todo o pensamento cristão, católico, apesar do peso de uma certa inércia "conservadora" e "beata", é necessariamente um "arrumar de botas".Conta o jesuita Pierre Teilhard de Chardin que, menino ainda, procurava pelos campos circundantes, até vasculhando a terra, objetos e fragmentos perdidos de ferro, desde chaves de charrua a pedaços de obus. Eram-lhe tanto mais interessantes e agradáveis quanto mais duros e maciços fossem, sugerindo inalterabilidade e duração. Sorrindo dessas buscas e descobertas da infância,confessou mais tarde que, afinal, procurava a consistência: A Consistência: tal foi, indubitavelmente, para mim, o atributo fundamental do Ser. Diz o mesmo Teilhard em L´Avenir de l´Homme: É evidente que o Mundo, no seu estado atual,é o resultado de um Movimento. Quer olhemos para a posição das camadas rochosas que envolvem a Terra, ou para o agrupamento das formas vivas que a povoam, ou para a variedade das civilizações que dela partilham o domínio, ou para a estrutura das línguas que aí se falam, a mesma conclusão se impõe: em cada ser se apanha um passado, -  nada é compreensível a não ser pela sua história. "Natureza" equivale a "devir" , fazer-se: eis o ponto de vista para onde a experiência irresistivemente nos empurra. Que poderemos dizer senão que o Universo teve de, pelo menos dantes, mexer; - que foi plástico; -  que adquiriu progressivamente, não só em pormenores acidentais, mas na sua própria essência, as perfeições que hoje o coroam. Nada há, nem mesmo o psiquismo mais elevado que conhecemos, a alma humana, que não entre na lei comum. Também ela, essa alma, ocupa um lugar perfeitamente definido na ascenção gradual dos vivos à consciência; em consequência, também ela teve, de uma ou doutra maneira, de aparecer por virtude da mobilidade geral das coisas. Desta génese progressiva do Universo se apercebem todos os que olham de frente para a Realidade, numa claridade que torna impossível qualquer hesitação. Digam o que disserem os adversários que ainda se agitam num Mundo imaginário, o Cosmos moveu-se dantes, todo ele, não só "localiter" mas "entitative". Isto é indubitável e não voltarei a discuti-lo.  - Mas será que ainda mexe?  -  Abordamos aqui a verdadeira questão, a questão viva e ardente da Evolução. Há quem diga que Teilhard seria um dos pensadores visados pela encíclica Humani Generis de Pio XII  -  que foi detonadora das medidas de interdição impostas pelos superiores gerais dos jesuítas (Jansens) e dominicanos (Browne) aos teólogos das escolas de Fourvière (Henri de Lubac) e Le Saulchoir (Chenu e Congar), todos, uma década mais tarde, teólogos do Concílio Vaticano II  -  no caso de Teilhard talvez mais por precaução relativa ao recurso às ciências "profanas", do que por razões teológicas. Aliás, este jesuíta não era nem filósofo nem teólogo. Foi paleoantropólogo, um dos descobridores do sinantropo ouhomem de Pequim. Quanto ao mais, definia-se por uma visão espiritual do mundo e da matéria,era um místico. O seu "evolucionismo" é essa visão de um processo crescentemente complexo que vai construindo o real desde a matéria inorgânica até à noosfera (ou reino do espírito), passando pela biosfera. Tal evolução conduzirá tudo ao ponto ómega, ao en pâsi panta Theos, de que fala S. Paulo na 1ª Carta aos Coríntios: Erit in omnibus omnia Deus,Deus tudo em todos. Aí surge uma suspeita de panteísmo, como aquela que condenou à fogueira da Inquisição,no século XVI, o dominicano Giordano Bruno, que aliás perfilhava as teses da "nova astronomia", as tais que Galileo Galilei também defendeu. Frei Giordano foi, primeiro, excomungado, não só pela heresia que era considerar o Sol, não a Terra, o centro do nosso sistema astral, mas pelas suas teses evolucionistas (?) e panteístas (?):
( 1.) O Universo é infinito em extensão e diversidade,e em lado algum há permanência,pois tudo é vida,de que a mudança é condição necessária; ( 2.) Deus é simultaneamente transcendente e imanente, fonte do Universo, e nele sempre presente; (3.) Assim, o Universo é um vai e vem da natureza divina, sendo que o espírito humano, no seu exercício de procura da unidade, simplicidade,imutabilidade e eternidade na complexa mutação das coisas temporais, vai desenhando o seu regresso a Deus; ( 4.) Através do progresso da sua razão e inspirado pelo amor poderá finalmente o homem unir-se eternamente a Deus. No opúsculo Le Christique, sua última obra, Teilhard fala da Amorização do Universo...  ...e lá,sob as espécies de um Divino incarnado,uma Presença tão íntima que exigia, para se satisfazer e me satisfazer, ser,por natureza,universal. Duplo sentido (e sentimento) de uma Convergência cósmica e de umaEmergência crística que, cada uma a seu modo, me invadiam inteiramente... Em 2012, neste mesmo período do Natal, escrevi, para o blogue do Centro Nacional de Cultura, umas crónicas acerca do sermão sobre a Natividade do Senhor, que Frei Tiago Voragino, dominicano do século XIII e arcebispo de Génova,publicou na sua Legenda Aurea. Ali, a manifestação do Natal de Jesus é feita por cinco ordens de seres ou criaturas: os que são puramente materiais (corpos opacos, transparentes ou translúcidos, e corpos luminosos como as estrelas), que só têm existência; em seguida, por criaturas que têm existência e vida, como as plantas e as árvores; depois, por seres com existência, vida e sensações, como os animais; e ainda pelos que, além da existência, vida e sensações, são dotados de razão, como os seres humanos; finalmente, a incarnação de Deus foi proclamada pelos anjos, que,além dessas quatro qualidades dos homens, possuem também o intelecto. Na altura, lembrei-me de chamar Cósmico a esse Presépio de Voragino. E assim o sinto hoje,nesta manhã luminosa em que, a exemplo de S. Francisco de Assis, chamo meu irmão ao sol...  E anda por aí outro Francisco que, sendo Papa e não sendo marxista, não se ofende quando disso o apelidam. Diz que, embora pense que a doutrina marxista está errada, tem conhecido muitos marxistas que são homens bons. Eu também. E pensossinto que o José poderia ter sido  -  e talvez até fosse  -  melhor homem do que parecia ou quis parecer. Foi, por vezes,empedernido, propositadamente desagradável até. Mas também praticou o bem. E escreveu coisas muito lindas, e outras que me interrogaram e fizeram pensar. Parafraseando uma quadra do Fernando Pessoa, dir-lhe-ia, a si, lembrado da gralha do seu Cerco de Lisboa, e trocando eu um não por um só: Pouco importa de onde a brisa traz o olor que nela vem: o coração só precisa de saber o que é o bem.
   
Camilo Martins de Oliveira

Nascer é um movimento eterno...



Meu Caro José Saramago:

   Tenho-lhe escrito umas cartas, que vou guardando, quiçá para depois das "Festas"... Nessa eternidade, o José já (?) não tem noção do tempo, não saberá o que é um "engarrafamento" de trânsito, nem qualquer demora dos correios... Por cá, temos receio desses atrasos todos, nem na prestação das mensagens por telemóvel ou rede electrónica confiamos sempre. Veja bem, compreenda-me e perdoe-me: pois se, "daí" pode ver tudo, espero que compreenda as minhas reticências quanto à apregoada instanteineidade do serviço de correios para a eternidade...e me perdoe a dúvida! Saberá, melhor do que eu, como é humano o receio, o medo, a dúvida, a falta de fé. E terá também percebido como é igualmente humano o esforço de ser-se corajoso, temerário até, esperançoso numa promessa e fiel à resposta que lhe der. Ser-se humano é ser tenso, entre o passado antiquíssimo donde nos nasceu a alma e o futuro prometido que em segredo nos espera. Escrevo-lhe no domingo  -  que para si já não tem estação nem data  -  que repete a mensagem que aprendi menino ainda, quando a missa ainda era "dita" em latim: Gaudete in Domino semper! Íterum dico: gaudete! No terceiro domingo do Advento, somos chamados a entender que, na tensão de nós, se abre um coração à alegria. Que Deus não é um estranho, um ser castigador, que nos condenaria até pelo mal que não fizemos, antes é, simplesmente, o amor que está  -  porque é  -  no íntimo coração das coisas todas. A glória de Deus não é uma conquista doutrinária, menos ainda uma qualquer obrigação canónica. A glória de Deus é onde são os homens de boa vontade.
   Assim lhe confio a si, que não conheci, o que o coração me leva hoje a dizer aos meus amigos, crentes e incréus, que comigo por cá deambulam na esperança:
      Dei com o Menino Deus
      deitado à nossa condição.
      Perguntei-lhe Que fazes aí?
      Disse-me:
      A resposta terá de ser tua:
      de cada vez que socorreres um aflito,
      encheres de riso os olhos das crianças,
      alegrares os corações que encontrares,
      terás semeado a esperança
      e o gosto da graça
      da vida fraterna...
      E então saberás porque vim.
   Que este Natal seja uma promessa de Ano Bom do nosso coração.
   Esteja o José também no nosso abraço.

Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins  
de 23 a 29 de dezembro de 2013 

 

Ao longo dos três volumes da «História Económica de Portugal» (Imprensa de Ciências Sociais, 2005), organizada por Pedro Lains e Álvaro Ferreira da Silva encontramos um conjunto de análises da evolução económica portuguesa, que nos permite compreendermos o modo como fomos respondendo aos exigentes desafios que nos foram lançados, ligando os constrangimentos à capacidade de encontrar soluções que têm permitido a afirmação de um Estado antigo, habituado longamente a resistir.

 


TENSÃO E INCERTEZA
A história económica de Portugal é reveladora de uma tensão entre elementos de continuidade e descontinuidade, entre fatores de progresso e atraso, entre referências internas e externas, singularizando-se neste último aspeto pela ligação muito forte, em especial nos momentos cruciais da expansão, às tendências inovadoras da mundialização. Dada a sua antiguidade e projeção internacional, a nossa história económica contribui positivamente para o estudo das transformações na longa duração de um espaço nacional nas suas relações com a economia mundial. A precoce participação de Portugal na economia internacional exige atenção à inserção europeia, devendo dizer-se que a importância das relações com o exterior foi crescendo, mas jamais foi dominante. Isto explica a existência de períodos de fechamento cultural, que alternam com momentos de abertura. E é interessante verificar que Portugal nasceu como uma nação europeia e é hoje ainda uma nação europeia, tendo tido três impérios que apenas constituíram parte da sua vida económica. Esta verificação não pode, porém, fazer esquecer uma significativa exposição da economia portuguesa às alterações globais, mas simultaneamente uma acentuada capacidade para encontrar alternativas.

 

AS ÚLTIMAS DÉCADAS
Atenhamo-nos ao período desde 1974, cuja análise cabe a João Confraria. Depois de uma significativa abertura ao exterior, a partir dos anos cinquenta, que correspondeu ao progressivo fim da autarcia e do protecionismo, à adesão à EFTA-AECL, à abertura ao investimento estrangeiro e ao lançamento de novos projetos de desenvolvimento (simbolizados pela opção de Sines), apesar do forte condicionamento político da guerra em África e da questão colonial, a institucionalização da democracia vai corresponder a uma tensão entre rutura e transição, bem evidente no «processo revolucionário» e no debate constitucional. Em 1976, apesar de uma tendência fortemente centralizadora, verifica-se que o Estado (envolvendo administrações públicas e empresas públicas) era diretamente responsável por cerca de 24% do valor acrescentado e 45% da formação de capital fixo na economia portuguesa, valores semelhantes a outros países europeus próximos de nós. De qualquer modo, a incerteza quanto ao direito de propriedade e à liberdade de iniciativa, em virtude do processo das nacionalizações (1975) e da consagração da sua irreversibilidade, suscitou desconfianças, que viriam a dar lugar (sobretudo depois da revisão constitucional de 1982) ao desenvolvimento de medidas compatíveis com a economia de mercado, que prepararam o processo de adesão às Comunidades Europeias. Note-se que já perante a versão original da Lei Fundamental de 1976, A. L. de Sousa Franco considerava que a Constituição material já consagrava o predomínio do setor privado, como setor regra da economia (ao ser definido por exclusão de partes), pela ligação intrínseca ao direito de propriedade e à liberdade de iniciativa. Depois do período revolucionário, assistimos a uma fase de normalização (1975-77), à estabilização (1978-79), à incerteza que se seguiu ao segundo choque petrolífero (1980-85), ao expansionismo da primeira fase da integração europeia (1986-95), ao cumprimento dos requisitos para a adesão ao euro num contexto de crédito barato (1995-2001), até aos efeitos da crise financeira e das dívidas soberanas, com especial incidência nos anos subsequentes ao «crash» de setembro de 2008… Até à concretização da opção europeia (1974-1985), começaram por fazer-se sentir as ruturas financeiras externa e interna, a ausência de mercados financeiros, o aumento do emprego, a acentuação de fatores de dependência externa, a forte exposição às crises internacionais, a alteração das estruturas institucionais (desde a evolução do protecionismo do Estado Novo à adaptação à integração europeia, passando pelo centralismo nacionalizador de 1975), o rejuvenescimento ocasional da população em virtude do regresso dos retornados de África, a liquidação formal da estrutura corporativa, com sobrevivência parcial do seu espírito em algumas áreas do setor público. No campo das finanças públicas, até 1985: acentuou-se o défice orçamental, cresceu o setor público, aumentaram as despesas correntes, a tributação sofreu um incremento, os encargos com a saúde e educação aumentaram, cresceu a dívida pública e o respetivo serviço, a máquina administrativa engordou, perdendo eficácia, e não surgiram políticas estruturais de desenvolvimento indutoras de rendimento e de nova riqueza. O défice externo tornou-se uma restrição na política económica, estando na origem de dois programas de ajustamento negociados com o FMI, em 1977-79 e em 1983-85. 

 

A ABERTURA LIBERAL
As revisões constitucionais de 1982, 1989, 1992 e 1997 marcaram uma abertura progressiva à liberalização económica, num contexto europeu, pondo termo ao protecionismo e abrindo caminho à união monetária europeia e às privatizações. Saliente-se que, em 1982, a aprovação do Orçamento de Estado deixou de ser partilhada entre a Assembleia da República e o Governo, num sistema dualista, passando a um sistema monista parlamentar, cabendo ao Governo o exclusivo da iniciativa originária da Proposta de Lei do Orçamento de Estado e ao parlamento o poder também exclusivo da aprovação da Lei do Orçamento. O sistema passou assim a registar o predomínio da Assembleia da República ou do Governo conforme este último disponha ou não de maioria absoluta da câmara legislativa. Se, entre 1987 e 1995 e entre 2005 e 2009, com maioria absoluta de um só partido, o predomínio coube nitidamente ao Executivo, entre 1995 e 2002, com um Governo homogéneo mas sem maioria absoluta, o parlamento ganhou maior protagonismo. Em 1976-77, em 1978-79, assim como em 1985-87 e em 2009-11, também sem maioria, prevaleceu a Assembleia. Nos casos de coligações (1978, 1980-83, 1983-85, 2002-2005 e 2011-…) tem havido um balanceamento entre as influências dos poderes legislativo e executivo. Por outro lado, como afirmou Sousa Franco: «deve acentuar-se ainda que a Constituição assumiu e a prática confirmou – em parte por efeito do modelo impulsionador, em parte por um cero fracionamento não programado do Estado unitário e centralizado do regime corporativo – uma feição claramente descentralizadora no domínio financeiro: descentralização política nas regiões autónomas, descentralização administrativa nas autarquias locais (esta última baseada num modelo relativamente original, inspirado pela ideia de correção das assimetrias, assente na transferência automática do orçamento para os concelhos de «participações» legalmente fixadas, o que atribui aos municípios ampla latitude de poderes no campo das despesas, sem ónus da repartição tributária dos encargos, que é transferido para o Estado em termos de decisão global)…». Isto, além da previsão constitucional da regionalização, não concretizada, que mereceu a convocação de um referendo, que recusou o avanço nesse domínio. Refira-se, a terminar, que depois do Tratado de Maastricht (1991) e da concretização da União Económica e Monetária no projeto europeu, bem como da adoção do Tratado Orçamental, as Constituições materiais dos Estados-membros da União Europeia passaram a consagrar os limites para o défice orçamental (3% do PIB) e para a dívida pública (60 % do PIB). Neste sentido, e apesar de se discutir se as Constituições devem consagrar um mecanismo específico de controlo das Finanças Públicas, prevaleceu entre nós a inclusão numa lei reforçada (a Lei de Enquadramento Orçamental) da chamada «nova regra de ouro», que prevê o respeito de exigências específicas para se atingir o equilíbrio.    


Guilherme d'Oliveira Martins

UM ENCONTRO INTERSECULAR…

 

 

Minha Princesa de mim:

 

Foste tu, ou terá sido essa Rainha cujo manto franjado de infinito cintila de estrelas, lantejoulas rápidas... quem foi que me murmurou este silêncio? Assim me entrou, pelo dentro da alma, um segredo de ternura...tão imensa que me fez teu pai, teu irmão, teu amigo, teu marido por ser, teu namorado sincero, venerador e solícito. Que me fez ser outro além de mim sem me deixar de ser. O amor oferece-nos, por isso rasga. Nisto concordam o Jesus dos evangelhos  -  aquele que chama ao despojamento de nós e à ruptura  -  e o Georges Bataille que, recordando a separação de um corpo vivo simples (como a amiba) que assim morre e fica dois, diz que " l’érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort"... Ambos estes morrerão, sabemos. Mas nesse momento erótico terão sido um. E outros terão nascido, ou virão. E somos estes e aqueles, e de nós só o mistério pressentimos... "De nada novo" diria ou disse uma mulher poeta, "do nada nasceu Deus", disse o místico mestre. Mas tudo pode Deus. E a mulher, coitada, pode só com a promessa. E poderá com a graça dela, quando essa lhe for dada.  Pergunta ao mestre uma mulher-poeta:

          "E quem terá enfim coragem

          De escrever

          Que o amor mudo

          É todo o amor que há no Mundo

          E deitar mão à palavra

          Depois?"

   E será ela que responderá,como se um salmo lhe saísse das entranhas:

          "Não, não é risco morrer num dia qualquer.

          A grande insatisfação, a grande intransigência,

          A avidez mais lata do que o universo,

          Oferece e revela aquilo que esconde no tecido dos olhos,

          Suspenso projecto.

          Não, não é risco morrer naquele outro dia, já que

          Nunca germinámos para além da luz, para além

          Desse pequeno ovo em sua tímida promessa!

          Oh!, escândalo do primeiro esboço inacabado

          Em oposição àquele outro intuído!

          Festejem, pois, os deuses e os heróis que o excesso

          Não foi nosso."

Quem num casarão grande se fecha, por pensar-se-lo, ele e eu, ambos pequenos, mesmo sem janela aberta já percebe que excesso é esta alma tão enorme que temos. E neste paradoxo se juntam o mestre-místico e a mulher-poeta: "Pareceu a um homem, como em sonho  -  era um sonho acordado  -  que ele estava prenho de nada como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus". Assim se encontraram, em noite misteriosa de infinitas estrelas, Mestre Eckhart e Teresa Vieira. E vendo-os assim tão juntamente encontrados, te dei, Princesa, muito em segredo, a minha mão.


Camilo Martins de Oliveira 

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