FERNANDO AMADO: A PRIMEIRA PEÇA – “A PRIMEIRA NOITE”
Data do início dos anos 20 este primeiro texto conhecido de Fernando Amado: antes, teria escrito ”O Homem Metal”, que se perdeu, mas que surge referenciado numa linha futurista próxima de certa estética do Orpheu. Em qualquer caso, “A Primeira Noite” foi escrita cerca de 1923. Trata-se de um longo diálogo entre recém–casados, Lúcia e Vasco, na noite de núpcias passada num “quarto de cama numa estalagem de província” minuciosamente descrita.
“Lúcia penteia-se diante do espelho”. A marcação é também detalhada, mostrando já o sentido de espetáculo e a capacidade de direção de atores que, meio século decorrido, haveria de comprovar em tantas ocasiões e nas aulas que frequentei no Conservatório. Lúcia “abre em seguida as janelas ao fundo que dão para a estrada e respira gostosamente o ar da noite, uma noite de Verão, claríssima, de luar”.
Mas eis que ”ouve-se a voz de Vasco chamando Lúcia!” E “pouco depois ele entra”.
E a partir daqui, desenvolve-se um longo diálogo destes recém-casados, para quem “a primeira noite” se anuncia no mínimo frustrante, para não dizer trágica. Pois Lúcia não quer compartilhar essa noite de núpcias com o marido: até reservou um quaro separado. Não há explicação imediata: ou melhor, a explicação mais implícita do que expressa, decorre da atitude machista de Vasco, essa sim expressa e claramente assumido:
Vasco – (…) Morreu a tua liberdade de menina caprichosa… Dependes de mim como de ninguém neste mundo – como nunca dependeste do teu pai e da tua mãe…Eu tenciono provar-te que não abdico dos direitos de marido… E pronto, Lúcia, agora sou eu que ponho ponto final”.
A peça desenvolve-se aliás numa alternância de afeto e paixão, que se contradiz por vezes diretamente: Lúcia e Vasco chegam a combinar para a lua-de-mel que ali se inicia, viagens que em 1923 não eram nem fáceis nem habituais - Roma, Paris, Berlim, ou mais modestamente “Deauville ou outro sítio nesse género”, por exemplo a Bretanha: Mas para Vasco as férias no mar eram “uma estopada” – “rochedos, céu e mar vinte e quatro horas por dia”!
Só que o problema é mais profundo: Vera considerou a certa altura o casamente como “um pesadelo que tem vindo engrossando à medida que se aproximava o grande dia – o grande dia, meu pobre Vaso! Estive para fugir, sabes?”
Mas o Vasco insiste com um pelo menos aparente otimismo: ”Ferra-lhe em cima uma boa soneca, e verás que já amanhã o teu pesadelo terá dado a volta ao mundo e serás a primeira a rir das tuas pieguices”. Resigna-se a passar a noite de núpcias no outro quarto e para ele se dirige “assobiando um foxtrot”…
E a peça termina com a Lúcia a chamar o Vasco “num grito abafado, os braços na direção dele (…) e cai de joelhos junto da cama contendo os soluços”. E grita – “Sozinha!”
Ora bem: recordemos que a peça é de 1923, o que põe o problema da adequação ou não da mentalidade machista de Vasco à época: Fernando Amado em qualquer caso condena-a.
E é notável o rigor cénico e literário desde longo e intenso diálogo realista-naturalista, que, pensamos, nunca terá sido levado à cena. Mas merecia!
DUARTE IVO CRUZ
desenho de Guilherme d'Oliveira Martins