TALVEZ O «DAO» SEJA UM CAMINHO DIFERENTE…
Minha Princesinha antiga:
Tem-me feito boa companhia - como os campos que, com promessas de sombras e frutos, me consolam a vista quando assomo à janela deste meu antro - a leitura do "Huainan Zi", essa "suite" de revisões confucionistas de ensinamentos taoistas, redigida na 2ª metade do século II antes de Cristo, pelo príncipe Liu An e alguns colaboradores. Era este homem sábio neto do imperador Liu Bang, fundador da dinastia Han. Pelo gosto que tenho de me encontrar também na diferença dos outros ou, se assim preferires, de procurar, no caleidoscópio das culturas e civilizações, tudo aquilo que possa reconhecer no antiquíssimo de nós todos, dou muitas vezes comigo a pensarsentir esse tal "já vi isto nalgum lado!” Quanto mais conheço o mundo e vou encontrando, na sua diferença, os outros, tanto mais acredito que todos fomos criados à imagem e semelhança de Deus,filhos de Eva e Adão, o primeiro homem. A ciência genética já hoje aponta uma humanidade como árvore em que os ramos vão diversificando o mesmo tronco e a sua raiz, em todos eles se encontrando genes comuns, uns mais duns do que doutros,talvez, mas vice-versa. Todavia, o mais surpreendente, para mim, não é essa familiaridade física, biológica. É, sim, a misteriosa simpatia de anseios e aspirações, de mitos e conceitos do mundo e da vida, de princípios éticos ou de ideias de organização das sociedades e tarefas. A partir do sentimento comum e íntimo da condição humana e do homem como, necessariamente, um ser em relação, por toda a terra se desenharam, propuseram e praticaram variadíssimas soluções,muitas delas contraditórias. Mas o exercício do pensamento (que é livre, sempre), a prática da sageza como conhecimento e juízo prudencial sobre as coisas da vida, levaram a que, longínquos e desconhecidos no espaço e no tempo, homens e sociedades semelhantemente pensassem e sentissem. A visita a culturas e civilizações diferentes permite-nos desenhar uma tipologia psicológica das achegas a realidades da vida, problemas e questões, conselhos e conclusões, práticas e realizações, que têm um ar de família, tal como, por toda a parte, os seus contraditórios. Como se o pensarsentir e a liberdade de consciência - e o modo do seu exercício no tempo - também tenham o seu código genético. Sempre me surge, no horizonte destas meditações, a intuição de Ortega y Gasset, essa de "yo soy yo y mi circumstancia" e, ainda, "un transfuga de la naturaleza". Nas diferentes posições em que se encontram, no tempo e no espaço, vão os homens trabalhando as suas culturas e os seus caminhos, para todos a humana condição é igual jugo e apelo à transcendência... E o átomo que em cada indivíduo e grupo social vai explodindo (o tal átomo - dizia o Alberto - cuja história o João da Ega jamais conseguiu escrever) em todos tem o mesmo potencial,esse anseio de recuperação do bem. O livro XIX do Huainan Zi trata de "O Dever de nos Cultivarmos", no sentido confucionista de nos educarmos e aperfeiçoarmos. Para tal, vai citando exemplos históricos ou fazendo comparações entre coisas,factos e actos do conhecimento comum. Queres ver alguns?
"Duangan Mu renunciara à carreira, para recolher a casa. O "marquês" Wen de Wei, passando pelo seu bairro, pôs-se de pé no seu carro, em sinal de respeito. Um criado perguntou-lhe: Porquê essa atitude de respeito? e o "marquês" Wen respondeu: Porque Duangan Mu mora aqui e eu quero homenageá-lo. O servo insistiu: Duangan Mu é um homem comum que se veste com um simples pano. Ter Vossa Senhoria tal atitude de respeito não será excessiva honra? O "marquês" Wen replicou: Duangan Mu não corre atrás das benesses do poder, apenas traz no coração o dao do homem de bem. Apesar de viver retirado num pobre beco, a sua fama espalhou-se por mil léguas. Por muito senhor que eu seja, como ousaria não lhe prestar homenagem? Duangan Mu brilha pela sua virtude, eu pelo meu poder; ele tem a riqueza do espírito dos justos, eu a de bens materiais. O poder não merece tanto respeito como a virtude, a riqueza não tem a nobreza da justiça. Mesmo que Duangan Mu tivesse a possibilidade de trocar de lugar comigo, nunca o faria. Todos os dias me sinto atormentado, até a minha sombra me mete medo. Como se pode fazer tão pouco caso de tal homem? Mais tarde, quando Qin se preparava para levantar tropas para atacar Wei, Sima Yu objectou: Duangan Mu é um sábio venerado pelo seu soberano. Toda a gente sabe que assim é,todos os senhores já ouviram falar disso. Levantar um exército para atacar Wen não seria avançar contra um homem justo?. Perante isso, Qin retirou as tropas e renunciou a atacar Wei." "... Se uma seta vai longe e trespassa os materiais mais duros, isso o deve à força da arbaleta; mas se atinge o centro do alvo e cinde o seu ponto mais ínfimo, não é à arbaleta que o deve, mas à retidão do coração do archeiro. Recompensar o bem e sancionar a violência, são regras de governo; mas o que as torna exequíveis é a sinceridade essencial. Assim, por potente que seja uma arbaleta não poderá, por si mesma, acertar no alvo; os decretos podem ser claros, mas não se aplicam sozinhos. É pois necessário partir dos sopros essenciais e permitir-lhes que propaguem o dao. Assim, o dao expandiu-se para cobrir os homens, mas se estes se recusam a segui-lo, é porque o coração sincero não chegou até eles". Para que haja entendimento e tenha medida e sentido a ação, é necessária a cultura das pessoas. Os outros seres seguem espontâneamente o seu curso natural: "Atrelamos os cavalos e pomos um jugo aos bois, fazemos com que os galos marquem as etapas da noite e os cães guardem os portões, deixando-se assim guiar pelo seu instinto natural." Mas a essencial natureza do homem pede educação. "Se o ser humano fosse privado da sua natureza, não poderia ser educado; mas se houvesse uma que não fosse cultivada, seria incapaz de honrar o dao. A natureza do casulo do bicho da seda é produzir fio de seda,mas sem o labor das operárias que o fervem em água quente e dele extraem o fio principal, ele seria incapaz de se transformar em seda. O ovo transforma-se em pintainho, mas sem o amor da galinha que lhe dá o seu calor e o choca por longo tempo, ele não se tornaria pinto. A natureza humana possui um fundo de humanidade e de justiça, mas se não estiver lá o santo para a ensinar e conduzir pelas suas leis e instituições, ela não saberia para que lado se virar." Na esteira do padre português Tomás Pereira - muito considerado pelo imperador Kang Xi, 1º da dinastia Qing - autor do primeiro tratado, em mandarim, de música europeia, os jesuítas estabelecidos na corte imperial foram compondo, nos modos chinês e europeu,música para missa e vésperas,bem como sonatas e divertimentos vários. Destaco o Pe. Amiot ou, ainda, entre outros, o lazarista italiano Teodorico Pedrini. Mas nessas primeiras décadas do século XVIII, também convertidos chineses se aventuraram a musicar liturgia, em curiosas simbioses barroco-chinas. Entre eles,o célebre Wu Li ("Yushan"), pintor e poeta que, ainda nos anos 80 do século XVII, vai de Beijing a Macau, onde ingressa na Companhia de Jesus e é ordenado padre. Aquando da sua conversão, escolhera para nome cristão Simão Xavier da Cunha. A missão jesuíta em Beijing será um dos maiores exemplos de aculturação do cristianismo fora da Europa, e granjeou, junto de sucessivos imperadores, merecido prestígio, pelas capacidades demonstradas pelos padres em áreas como a matemática,a geometria,a astronomia ou a música. Mas a cristianização da China não se verificou. Tal como no Japão, onde também se desfez o sonho de S. Francisco Xavier, a recusa essencial de participação em sincretismos religiosos tornou-o suspeito aos olhos das autoridades e do povo. Pareceu-lhes factor de segregação, ainda por cima proveniente de potência estrangeira. É interessante observar como os primeiros imperadores da dinastia Qing, que reinará de 1644 a 1911, se interessaram e acolheram os missionários jesuítas, ao ponto de os integrarem socialmente nas hierarquias confucionistas. Num período em que o taoísmo foi abandonado pela elite,que lhe preferiu o confucionismo e o budismo, não havia todavia a possibilidade de reunir num corpo estas duas, filosofia e religião, com o cristianismo. O imperador Yongzheng, que sucedeu a Qianlong veio a defender os "três ensinamentos num só": confucionismo, budismo e taoísmo (assim recuperado). Há, no British Museum de Londres uma pintura sobre seda representando um sorridente Confúcio com um alegre bébé-Buda nos braços que estende a um feliz Laozi. Assim se reunem. As três filosofias têm outro modo, diferente do cristão - que é exclusivo - de conceber a união da terra e do céu. Mas esse desejo existe. O reconhecimento mútuo do modo-como não tem sido, todavia, pacífico. Não só entre as três grandes religiões monoteístas, em que a afirmação da transcendência de Deus é sempre um exclusivo absoluto - muito embora a fé no Deus incarnado possa ter, e tenha, dado uma dimensão mais universal ao cristianismo e, sobretudo, uma razão de missão (infelizmente demasiado esquecida, como sabemos) mais fundada no testemunho ou confissão do credo do amor do que em sectarismos segregacionistas ou militâncias guerreiras e conquistadoras. Mas assim tem sido também entre as religiões pretensamente pacíficas e pacificadoras de tudo. Do sudeste asiático ao Japão, são inúmeros os exemplos de monges guerreiros budistas, p. ex.. E o sincretismo shinto-budista ou confúcio-tao-budista, para além da relativa falta de força das crenças mais marcadas pelo ciclo natural dos astros e da terra, e por um tempo circular em que o céu é sempre um regresso que até pode ser repetido, na afirmação da transcendência como o Outro absoluto, só se tornou realizável pela intervenção do poder político. Que, pela normalização do sincretismo, resolveu uma questão que, na Europa, teve o tratamento das expulsões ou conversões de judeus e mouros, como, mais tarde, entre católicos e protestantes, a aplicação do princípio "cujus regio ejus religio"... Talvez no século XXI - quando eu, contrariamente a uma amiga minha que assinará os seus escritos com data de século XXI, já não andar por cá - talvez então, com homens de boa vontade a perceber que nos temos vivido mais nos modos do tempo do que na comunhão de nós, talvez, talvez seja possível esse sorriso envergonhado e fraterno com que,também tu e eu, nos reencontramos, ao desamarrar dos burros, para voltar para casa. Bem dizia o Alberto, recitando Júlio Dantas (será? seria um autor dramático português...) : "Em que pensas, cardeal? Penso em como é diferente o amor em Portugal!" E comentava o teu cunhado: "Diferente? O amor é igual em qualquer lado, basta-lhe ser amor..." Era então de um brilho de sol e lua a ternura marota dos seus olhos. Como se uma criança dissesse: repete, repete, repete...
Camilo Martins de Oliveira