Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Será disparate falar-te assim, mas sempre me ensinaram que, neste eterno-infinito (mais um pleonasmo, desculpa!) onde ambos estamos (desculpa-me, outra vez: não estamos, só somos), ambos nós, tu e eu - nem eterna nem infinitamente, mas tão simplesmente para sempre, pois só a simples sempricidade fará sentido - será disparate (?), dizia, lembrado sem lembrança, tratar-te assim... Mas maior disparate, ainda, seria tratar-te por minha Princesa de mim... aqui (?), onde (?) - neste "assento etéreo" , disse Camões, eivado de um paganismo cósmico, greco-latino, que também ocupa representações cristãs do que não sabíamos - "aqui/onde" mulher alguma recordará qual, do primeiro ao seu sétimo marido, pois tão só na comunhão de todos os santos nos reconhecemos. Deixemos aos sábios teólogos lá de baixo - que, a nós, subidos a este assento etéreo, já nada poderão ensinar - os debates sobre o celibato do clero secular, a ordenação das mulheres, o divórcio (com as subtilezas que distinguem um contrato dum sacramento, ou os confundem)... Nós que bem sabemos como o gosto (clerical?) de um qualquer exercício de poder tantas vezes confundiu o amor do céu com a autoridade da terra... Aqui onde somos, nada nos diferencia, e só nos reúne o acolhimento da misericórdia de Deus. É bom! O nosso Camilo Português, digo-te a ti, Princesa que foste, lá anda pelo terreno do mundo intermédio, entre trevas e visões, feito cego, coitado ainda, pois cego poderá ser por umas ou por outras. Queira Deus que não lhe falte esse tactear que encontra as pedras certas do caminho, nem se lhe apague a lanterna que na mão leva, como Diógenes, na busca do Homem que tão dificilmente enxergamos "lá em baixo". Já eu, há década e meia, dele me tinha despedido, quando, nesse Japão tão lindo, que fora do tempo partilhámos e neste "assento etéreo" comungamos, ele reuniu, com monges e coros budistas, o Coro Gregoriano de Lisboa. Em 1995, logo a seguir à devastação - e no sítio dela - do grande terramoto de Kobe. E em templos, cristãos e budistas, em Tokyo ou em Tera-Dera, no respirar silencioso e cheio das montanhas, se ouviram cânticos de concórdia, humildade e paz.
Mas este nosso malandro (há partidas que não se pregam a ninguém, nem a mim que estou nos céus!), já tinha cantado a "casa da Mariquinhas" - fado soez, e de Lisboa, nessa garganta que amava Coimbra - em jantares que fazia lá em casa... À guitarra portuguesa, acompanhava-o S.A.I. o Príncipe Takamado, primo direito do Imperador, 7º na linha de sucessão. Nesses "agapés" reuniu Fernando Alvim, João Torre do Valle, Mísia, António Chainho e Mário Pacheco. Já eu era ser deste eterno assento: não me era dado invejá-lo. Ainda te disse, Princesa, quando ambos por lá andávamos, que davas cabo de mim. Não deste! Mas aquele maroto talvez tivesse dado, se Nosso Senhor não me tivesse feito subir, "in tempore oportuno", num elevador que, valha a verdade, sempre enjoa menos do que a barca de Caronte.
Cheguei inconscientemente a esta fase da vida que é sempre nova,pois se minguante fosse seria para depois crescente ser,e cheia já foi,não vale insistir em roncos... Felicito-me hoje no silêncio. Como nesta noite,assim tão quieta: só de ver o escuro - por vê-lo tão só e tão só de vê-lo - não sinto falta de nada,nem ausência alguma. Uma presença imensa me resguarda,e nela deixo,enfim,descansar meu coração. Bebo-lhe a paz,beijo sem mais. A muito já me entreguei na vida,a entusiasmos vários,uns tarde travados, outros tarde demais magoadamente sentidos. De todos eles,razoáveis ou loucos,duradouros ou efémeros,mais ou menos pertinentes ao meu sentido de mim,não guardo saudade nem arrependimento. Estive neles todos,por todos eles respondi e respondo. E é com um sorriso compassivo da alma,agora,no compreensivo silêncio desta noite húmida e tão quieta,que na negridão vejo todos esses momentos de alegria densa ou fátua,de tristeza fraca ou dorida,de persistência e desânimo,de cobardia que inesperada coragem venceu... Foram todos meus,pois ali estive. Deles também fui diferentemente,porque o ser que sou nem sempre esteve do mesmo modo. Não apago,nem sequer me desculpo. Abandono-me a um juízo silencioso e sábio,que em meu recolhimento me inspire a quietação da íntima alegria: saber agradecer o ser que sou,sem me presumir nem pretender o que não sou.Não sei ainda,talvez,não sei o que é amor. Tê-lo ei confundido com desejo,com procura de posse,com carência de carinho dado e retribuído,com inesperadas coincidências de risos,sorrisos,olhares,ditos,ou gestos acautelados,segredos pressentidos como intimidades por vir... Mas fui aprendendo,nos sobressaltos da vida e dos sentimentos,em todos os modos em que estivesse,uma como que densidade de mim. Afinal,o meu pensarsentir,como onda vinda do antiquíssimo mar profundo do meu ser,só ansiava,verdadeiramente,por essa fidelidade que é,tão simplesmente, querer bem. Aí principiava o meu siêncio. Aqui,onde o silêncio principia e o amor começa. Descobrimento.Cheguei a esta idade em que o olhar da alma já não tem cansaço,e vai iluminando,no espelho que me devolve,as ilusões que antes eu já tomara por importantes feitos meus. Com tranquila alegria e piedade de mim,com essa misericórdia que,como graça imerecida, talvez,mas bem-vinda por me tornar novamente pequenino,me diz como só a infinita ternura de Deus pode ser a morada em que habite o coração dos homens. Caminho numa procissão em que todos seguimos de mãos dadas,vou-me chegando àquela fronteira além da qual apenas sinto que as inúmeras mãos à minha frente,mesmo quando já invisíveis,me continuam a puxar. E como Orfeu,cheio de música,esperança e sonho,fiel aos amores que tive e me foram dados,olho para trás e chamo,puxo pelos que também hão-de vir. Porque, todos juntos, até Hadés traremos para cima, - com Eurídice,que Flora alegremente seguirá - à superfície da luz,ao Reino de Quem escolheu a misericórdia e o sacrifício não.Vês,minha Princesita de mim? Estou velho e sou alegre. Mesmo quando rabujo,acredita. E a mão que hoje estendo,esta em que tão docemente sempre senti o manso calor da tua,não é só minha,quiçá nem sequer me pertença. É legião. São as nossas mãos,as que todos nos damos para chegar lá acima. E descansar na paz.