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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O «VIRA» NÃO É SÓ MINHOTO…

 

Minha Princesa de mim:

 

Minha de mim não é fórmula, muito menos enfática ou pleonástica. É, ousarei dizê-lo?, a expressão aparentemente contraditória do amor que te tenho: pois te chamo minha e sei que não te possuo, nem possuir desejo, e logo digo de mim, porque de ti sou. Possuído não, mas descoberto, encontrado pela ternura que te achei. Nem há aí desejo, nem direitos, nem qualquer precedência. É um encontro, há uma companhia. Um segredo partilhado, quiçá exclusivo, não por egoísmo, mas por haver assim mistérios em que só os seus íntimos podem comungar. Silenciosos entendimentos que são fidelidades inabaláveis. O coração humano pode ser generoso e discreto. Sobre um amor fundo assenta a fortaleza donde estenderemos aos outros todos a mão fraterna e o amigo abraço. Nenhuma generosidade se aguenta sem um coração ancorado. E a âncora do coração é discreta, submersa aos olhos do mundo. Menino não direi, era já moço, escutava, como já te disse, de alma aberta e ouvido atento, Beethoven e Stravinsky. A 5ª e a 8ª de um, a "sagração" e o "pássaro" do outro, foram os primeiros discos que comprei. Fui depois crescendo pelos outros todos, alemães, russos e franceses... Custou-me entrar por Wagner, mais tarde por Messiaen. Tive entusiasmos fáceis, acabei apaixonado pelos caminhos todos da música, pela inesperada matemática das mais variadas associações de sons. Creio que, para entendermos (como ouvir e perceber, no duplo sentido do "entendre" francês) música, é necessário repetirmos compassos de espera, pois que sem momentos de silêncio facilmente a música será tomada por ruído. Como nesses estádios de hoje, onde se escravizam multidões a uma barulheira infame. O barulho não pensassente, nem revela verdades sólidas do coração. Disfarça e esconde. Por isso gritam tanto os políticos, e todos os que discutem sem razão. A música medita e abre-nos; o ruído ensurdece-nos. Tenho amigos que detestam Bach por achá-lo repetitivo (?). Que diriam eles desta peça de música chinesa, transcrita no século XVIII pelo padre jesuíta Joseph-Marie Amiot, em Beijing, e que com tanto gosto escuto agora: "Hua yinyue jing yinyue pu", ou seja "À sombra das flores sob a lua silenciosa"? Acho-a muito bonita, sinto nela as flores que perfumam a lua e esse silêncio manso que nos sossega a alma. Mas para cá chegar tive de me calar e dar tempo ao tempo. E essa ascese foi já o meu primeiro benefício. Porque será que o "premier divertissement chinois", do Padre. Amiot, o "Tsien fung yun" ou harmonia dos ventos que sopram pela frente,aqui me lembra quase Haydn, e ali umas melopeias mouras que ouvi, ao ar livre de noites cálidas, em Fez e Marraquexe? E porque será que essa ocorrência  -  que me poderia levar ao flamenco andaluz ou ao cante alentejano  -  me traz tão vivamente à memória do coração dias de comunhão silenciosa e musical com fulas e malinké em aldeias distantes, no Senegal e na Guiné? Ao som das korá, segréis cantavam epopeias guerreiras e lamentos de amor... Sem perceber palavra alguma, nem sempre entendi se estava no amor ou na guerra,em ambos se manifesta o choro e a fúria. Ou não fosse Cupido, esse menino que de amor nos fere com sua flecha, filho de Vénus e de Marte... Com tudo isto, enquanto vou escutando, tocada por músicos chineses, uma sonata "sino-barroca" do setecentista Pedrini  -  padre missionário tão italiano em Beijing  -  volto ao começo desta carta, mas para que não seja eu, seja sim o árabe Djamil, poeta nómada dos finais do século VII, a dizer-te como há sempre vida num coração que morre:

          "Antes de mim morreu

          o irmão do leopardo;

          e o que foi seu dono,

          garridamente vestido,

          se desfaz em discursos fúteis:

          contenta-se com ter,

          por única posse,

          essa tristeza.

          Julgava eu,

          ou talvez o soubesse
          quase,

          que ela me levaria
          até

          à nascente de água fresca

          em que outros se saciaram.

          Àquele que já se chega à noite

          da sua vida,

          pouco lhe importa

          não ter bordão algum

          por entre os bens deste mundo,

          se tu lhe fores sua.

   E hoje, assim, Alteza, por aqui me fico. Noutro dia te direi da Senhora Murasaki e da sua "Lenda de Genji". Ou de como, no Japão do século XI, uma mulher escreveu sobre o tempo que passa e as marcas que nos faz. Como, oito séculos mais tarde, Marcel Proust em "À la Recherche du Temps Perdu"... Mas não será o tempo que se perde. Perdemo-nos nós, tantas vezes. E todavia, nunca desistimos de procurar a tal estrelinha do norte. Essa a que o Alberto, cantando, dizia: "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que eu já vou. Alumia o meu caminho, pois que o luar me enganou!" Dou-te a mão.

Camilo Martins de Oliveira 

O fruto é a ternura

 

Admira-me sim, que uma pessoa a quem o amor não tenha ferido, saiba dize-lo, escreve-lo com lucidez quase total.

Faz crer que muito pela alegria nos chega o entendimento. E afinal não, nem por uma nem por outra via, mas pelas duas, ou por uma terceira que se junta, e é núcleo da intuição de quase não errarmos. A esse fenómeno se chama sensibilidade, inteligência, campo de mérito, saber de além, acelerador de partículas de Deus, Bozão de Higgs, visão que só vê no não visto, mistério aberto a um se tutoyer que poucos conhecem.

Surpreende-me que se não saiba que o adeus, é, um por enquanto, e o encontro, uma água furtada, alçapão à possibilidade.

Vai medo indefeso. Digo.

Vai que a idade chega até de motociclo ou de carroça. Vai que este lugar, é o lugar para onde volta quem parte e, se ainda parece porto, é tão só por de tão vigoroso procurar-se, ali e agora, te chamar de aurora e de irmão.

Existem olhos que conhecem os desejos para lá do recinto do mundo. Por certo conhecem a via das palavras que se aguardam sempre vindas de um alguém. Alguém que em vez de dizer ‘deixo-te’ nos sussurra ‘tenho de ir’, como se o que vai, deixasse apoio num telefone que tocará, é certo, mas cansado e desamparado pelo peso de uma porta entreaberta.

É a vida uma multidão de esperas num ápice: iguais na fome e na fartura.

E reconheço-te muito em mim. A diferença é que transponho o sonho pela persiana e o pássaro da véspera já me levou. Quantas vezes?,nem eu sabia, nem eu soube.

Apaziguava-te.

 

 

Teresa Vieira

Sec. XXI 

ALMADA NA ÓPERA E NO MNT

 

O Teatro Nacional de São Carlos organiza uma exposição denominada Noites em São Carlos, onde evoca e exibe peças e documentos do vastíssimo espólio do Teatro respeitante a produções de Almada, Verdi e Wagner. A mostra é comissionada por Fernando Carvalho que, no catálogo, evoca a colaboração de Almada em espetáculos de ópera. E efectivamente, são dele os cenários e figurinos das produções operísticas de Rui Coelho, designadamente para as óperas Inês de Castro e Crisfal, ambas de 1943. Também são reproduzidos os figurinos do Auto da Alma de Gil Vicente, na encenação de Amélia Rey Colaço, em 1965.

Os originais e os figurinos pertencem hoje e estão expostos no Museu Nacional do Teatro: constituem aliás um dos grandes momentos da exposição visitada na passada semana pelo CNC.

Vejamos esse espólio. Não se trata apenas - e já seria muito - de um conjunto de cenas e figurinos desenhados por Almada. Na mostra do MNC, impõe-se e transparece uma interpretação dos personagens na perspetiva da modernidade e atualidade do texto de Gil Vicente, mas com um rigor e um “respeito”, digamos assim, do próprio texto vicentino, da sua época e da sua simbologia, numa conciliação exemplar do fator histórico e da interpretação moderna, viva e atual, da cena.

É evidente que no Auto da Alma, o texto e o conteúdo, a tentação e a sublimação são de todas as épocas; mas Almada e Amélia souberam resistir a certas “transplantações” e certas modernizações por vezes discutíveis dos textos: o resultado desses exercícios por vezes torna-se muito interessante; mas por vezes, conduz ao “envelhecimento” precoce de versões-interpretações que, precisamente, se querem atuais.

Por seu lado, a mostra do TNSC abre com uma evocação/homenagem a Almada, da autoria de Luís Vieira Batista. Trata-se de uma torre/biombo triangular com pinturas evocativas de obras referenciais de Almada - o Ponto de Bauhutte, A Engomadeira e auto-retratos de Almada. E o catálogo reproduz também o auto-retrato em Família (1944) com Sara Afonso e os filhos José e Paula. E finalmente uma detalhada cronologia da vida e obra de Almada Negreiros.

Mas contem ainda duas reproduções de cenas das óperas de Rui Coelho a que acima aludimos - Inês de Castro e Crisfal. Trata-se respetivamente de um interior e de uma paisagem.

Guilherme d’Oliveira Martins e José Carlos Alvarez assinaram um protocolo de cooperação entre o CNC e o MNT. É uma colaboração que será  muito benéfica para a cultura portuguesa, pois ambas as entidades reforçam uma colaboração institucional e uma complementaridade de investigação e de difusão cultural.

 

DUARTE IVO CRUZ 

LONDON LETTERS


European countdown, 2014-17

 

Eis dados estatísticos quase supreendentes. Inquiridos sobre se o país é europeu ou não-europeu, 50% dos Britânicos afirma que não o é face a 40% de respondentes dizendo que sim é. Análoga percentagem de culturalmente não identificados com a imagem corrente da European Union atinge os 31% em France e 11% na Germany ou ainda 26% em Poland. — À chose faite conseil pris! Os números são de um relatório independente da Opinium Research e condensam maior expressividade na gama das fidelidades políticas. Apenas 4% das gentes de Her Majesty se reconhece na eurocidadania. — Practice makes all things easy. Resultado? Se o referendo sobre a Brexit fosse amanhã, 36% votariam pela permanência na EU do United Kingdom. Hoje, pelas 17 horas, reúne pela primeira vez o terceiro governo da Kanzlerin Angela Merkel no mais poderoso país da eurozone, a seis meses do sufrágio parlamentar para Brussels, quando bandeiras ucranianas se manifestam nas praças de Kiev por tal adesão e os desempregados de longa duração somam dois milhões só no outro lado de La Manche.

O retrato diz do estado dos laços emocionais que perpassam o continente e do desencanto que germina nas bases do projeto europeu. Algo bem diverso do clima envolvente do 1975 referendum on Britain membership of the European Union, em pleno condomínio USA-URSS com a East e West Germany, pilotado em London por Mr Harold Wilson e Lord Roy Jenkins, aliás, em aberta sintonia com Monsieur Jacques Chirac em Paris e o Kanzler Ludwig Erhard em Berlin — ministro de Herr Konrad Adenauer desde 1949 e autor do milagre económico (Wirtschaftswunder). Sem forças partidárias a polarizarem o terreno como o crescente UKIP e a convergência dos europeístas no centro eleitoral, à data, 67% vota a favor e 33% contra o Common Market. Mesmo com a coordenação das lideranças, dentro e fora de fronteiras, o debate gerou um dramático duelo sobre os riscos e benefícios. O Labour Government disse «sim à Europa», mas com a oportunidade de os ministros e os parlamentares expressarem livremente os seus pontos de vista. A clivagem assim aberta ainda é visível a 40 anos de distância, seja nas bancadas de Westminster, seja na cartografia socioeconómica britânica, seja finalmente na recetividade das chancelarias continentais. Acresce a modernosa paisagem internacional, que se distingue tanto na balança de poderes como nas fórmulas dos tratados e instituições.

A gestão da pertença britânica em muito passa pelo atual trio de protagonistas: Frau Merkel e o Prime Minister David Cameron ou o Opposition Leader Mr Ed Milliband. A tudo permanecer igual, hipótese ao gosto dos economistas, em 2017 ocorrerá uma hecatombe política na Europe. Sinal dos tempos, e da minha pessoal ignorância, tentei ler o acordo da ‘Grand Coalition’ bem como o programa do governo CDU/SPD. Posso escrever que tal me foi vedado por uma barreira cultural: apenas existem documentos sobre "a union of stability" em alemão de London a Dublin até Berlin. Fonte diplomática assinala-me que existe uma nova língua oficial europeia.

O Bundesregierung permite-me, porém, conhecer o juramento proferido pela Bundeskanzlerin. Frau A Merkel: "I swear that I will dedicate my efforts to the well-being of the German people, promote their welfare, protect them from harm, uphold and defend the Basic Law and the laws of the Federation, perform my duties conscientiously, and do justice to all. So help me God."

 

St James, 17th December

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins  
de 16 a 22 de dezembro de 2013 

 

Annie Salomon de Faria (1928-2013) foi a guardiã da célebre casa de Vence, onde Eduardo Lourenço escreveu certamente os mais célebres dos seus ensaios. Tradutora da obra de seu marido – como «Le Labyrinthe de la Saudade», Bruxelles, Sagres-Europa, 1988 -, foi artífice fundamental na divulgação da cultura portuguesa em França, sendo, como era, uma hispanista experimentada e com uma sensibilidade muito especial relativamente à singularidade da obra de seu marido. Deixa uma lembrança inolvidável.



UMA HISPANISTA MUITO ESPECIAL
Não poderei esquecer a sua amizade e as suas palavras sempre tão afetuosas. Era alguém que tinha uma relação muito especial (de conhecimento e sensibilidade) com as culturas ibéricas e a sua projeção no mundo. E tinha consciência de que o tempo futuro dará uma importância crescente a essa ligação. O certo é que, na cultura portuguesa contemporânea, a relação entre Annie Salomon e Eduardo Lourenço merece atenção especial, muito para além de considerações de circunstância. Essa justa lembrança deve fazer-se. Daí que, no momento doloroso em que dela nos despedimos, sentindo o profundo abalo de Eduardo, tivéssemos lembrado o muito que nos foi deixado pelas qualidades desta hispanista, que compreendeu como ninguém a criação moderna portuguesa e as suas originalidades. Afinal, a saída do ensaísta de Portugal e o encontro com uma investigadora de grandes méritos, como Annie, permitiram que contássemos com uma análise da evolução da cultura portuguesa por parte de Eduardo Lourenço (através da singularíssima «psicanálise mítica» do nosso destino), através de uma compreensão interna, aprimorada pelo apoio da leitura crítica de uma investigadora francesa, capaz de entender o diálogo ibérico e de o tornar plural porque não reduzido à lógica nacional. Não é, aliás, por acaso que há da parte de Eduardo Lourenço a recusa de simplificações pessimistas e de ilusões fatalistas. Sente-se a presença serena de quem podia fazer uma ponte fecunda entre a compreensão do fenómeno ibérico global, com as suas diferenças e complementaridades, e a perceção da importância das idiossincrasias portuguesas. Os complexos de culpa, a bipolaridade (entre ascensão e queda e glória e decadência) e a visão contraditória da identidade puderam, assim, relativizar-se – na original visão do autor de «O Labirinto da Saudade». E se Camões, Antero e Pessoa constituem elementos fundamentais para o entendimento da chave interpretativa de Eduardo Lourenço sobre a nossa cultura, a verdade é que não podemos compreender plenamente essa visão sem a referência a autores como Pedro Calderón de la Barca de «La Vida es Sueño», em cuja trama, platonicamente, Segismundo, filho renegado de Basílio, rei da Polónia, fechado numa torre desde que nasceu, apenas comunica com o mundo (numa nova alegoria da caverna) através do guardião Clotaldo. E se falamos de Calderón, teremos ainda de chegar a Cervantes e a Unamuno, figuras decisivas para a compreensão, por contraponto, da nossa própria mitologia – lembrando «a arena fraterna e melancólica da desistência heroica ou do triunfo da ilusão» (como se diz lapidarmente em «Poesia e Metafísica»). De facto, nota-se por trás da cortina uma presença essencial (a somar a Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima), que permite usar criticamente os mitos nas suas diferenças e nas suas relações – que Annie representa suave, mas persistentemente.

 

COMPANHEIRA DE EDUARDO… 
«Na minha vida há poucas escolhas (disse Eduardo). Deixei-me escolher. Não tenho a pretensão de ter sido escolhido. Estou em Vence por força do acaso. Ao tempo era leitor de português, havia casado em França, a minha mulher já tinha o seu lugar e eu fui para o sítio onde me ofereceram a possibilidade de ganhar modestamente a minha vida» (DN, 21.3.98). Com simplicidade, as coisas podem explicar-se assim. E há uma fotografia antiga, em Bordéus, de 1949, de Eduardo com Annie, que é muito significativa. Ele vai ligeiramente atrás, circunspecto, ela, jovem e segura, sorri. Ambos sabem que existe algo de comum que perseguem… «Não se pode viver impunemente com uma pessoa durante tanto tempo sem que os dois não sejam modificados por este relacionamento» - dirá muitos anos depois, reconhecendo um intercâmbio intelectual com efeitos positivos indiscutíveis. «O amor suporta o tempo, é também uma construção, uma espécie de desejo de que as coisas aconteçam assim, é a necessidade de suportar tudo o que carregamos de efémero» (25 Portugueses, 1999). Annie teve um papel fundamental na divulgação da obra de Eduardo Lourenço em França. Leia-se o número da revista «Esprit» de junho de 2013 e compreenda-se essa presença. Tal resultou de uma verdadeira partilha, «em momentos privilegiados de cumplicidade e identidade». De facto, pela natureza da obra do escritor essa divulgação foi abrangente, permitindo a projeção europeia da cultura portuguesa, com especial importância atribuída a Fernando Pessoa, autor praticamente desconhecido no tempo em que ocorreu este singular encontro.


A GUARDIÃ DE VENCE
Nascida na Bretanha (11.8.28), Annie fez os seus estudos primários em Rennes e licenciou-se em Bordéus em Línguas Hispânicas, tendo obtido a agregação em 1955. Era irmã de Noël Salomon (1917-1977), hispanista muito prestigiado, diretor do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Bordéus e autor de «Recherches sur le thème paysan dans la comedia au temps de Lope de Vega» (1965), tendo estudado a obra de autores importantes da literatura mexicana, como Fernandez de Lizardi. Em 1954, casa-se com o ensaísta português (que admira profundamente, até pela sua fascinante faceta de «bavard sympatique»). O casal passa a viver em Nice. Em 1974, fixar-se-ão em Vence, onde adquirem a célebre casa, onde o pensador escreve uma parte muito significativa dos seus textos, que o tornarão conhecido como o pensador mais influente e marcante da cultura portuguesa contemporânea. Mas, além da prolífera produção literária, não podemos esquecer o magnífico jardim de ciprestes que E. Lourenço plantou e manteve, confessando ter sido essa uma das empresas mais duras que levou a cabo. Hoje, parte importante da biblioteca dessa casa quase mítica encontra-se na Guarda, graças à generosidade de Annie e de Eduardo. Foi, aliás, inesquecível esse dia muito frio em que, com a presença do Presidente da República, em 2008, foi inaugurada a Biblioteca. Conversando com Annie, senti nela um especial gosto e orgulho pela criação desse núcleo fundamental do Centro de Estudos Ibéricos, criado por ideia do Eduardo e envolvendo as Universidades de Coimbra e Salamanca, tendo o objetivo de aprofundar e desenvolver os estudos, que sempre os apaixonaram. Guardo do seu convívio e da sua amizade as melhores recordações – em especial a de uma longa viagem sob a invocação de Antero de Quental e dos tempos felizes do poeta em Vila do Conde bem como, nos últimos tempos, uma correspondência reveladora de grande simpatia e de um cuidado muito especial para a preservação do espólio e da obra de Eduardo Lourenço. «A minha mulher continua a dizer-me: “tu vis comme si tu étais éternel”. E é verdade, não ligo, chego atrasado a todos os sítios. Todos nós nos conservamos essencialmente imóveis naquilo que somos. Temos que reconhecer as mudanças, mas reconhecemo-las só à força do exterior; quanto mais não fosse, por causa dos espelhos. Mas o olhar que fixa os espelhos é sempre o mesmo» (JL, 6.12.1986).


Guilherme d'Oliveira Martins

TALVEZ O «DAO» SEJA UM CAMINHO DIFERENTE…

 

Minha Princesinha antiga:

 

Tem-me feito boa companhia  -  como os campos que, com promessas de sombras e frutos, me consolam a vista quando assomo à janela deste meu antro  -  a leitura do "Huainan Zi", essa "suite" de revisões confucionistas de ensinamentos taoistas, redigida na 2ª metade do século II antes de Cristo, pelo príncipe Liu An e alguns colaboradores. Era este homem sábio neto do imperador Liu Bang, fundador da dinastia Han. Pelo gosto que tenho de me encontrar também na diferença dos outros ou, se assim preferires, de procurar, no caleidoscópio das culturas e civilizações, tudo aquilo que possa reconhecer no antiquíssimo de nós todos, dou muitas vezes comigo a pensarsentir esse tal "já vi isto nalgum lado!” Quanto mais conheço o mundo e vou encontrando, na sua diferença, os outros, tanto mais acredito que todos fomos criados à imagem e semelhança de Deus,filhos de Eva e Adão, o primeiro homem. A ciência genética já hoje aponta uma humanidade como árvore em que os ramos vão diversificando o mesmo tronco e a sua raiz, em todos eles se encontrando genes comuns, uns mais duns do que doutros,talvez, mas vice-versa. Todavia, o mais surpreendente, para mim, não é essa familiaridade física, biológica. É, sim, a misteriosa simpatia de anseios e aspirações, de mitos e conceitos do mundo e da vida, de princípios éticos ou de ideias de organização das sociedades e tarefas. A partir do sentimento comum e íntimo da condição humana e do homem como, necessariamente, um ser em relação, por toda a terra se desenharam, propuseram e praticaram variadíssimas soluções,muitas delas contraditórias. Mas o exercício do pensamento (que é livre, sempre), a prática da sageza como conhecimento e juízo prudencial sobre as coisas da vida, levaram a que, longínquos e desconhecidos no espaço e no tempo, homens e sociedades semelhantemente pensassem e sentissem. A visita a culturas e civilizações diferentes permite-nos desenhar uma tipologia psicológica das achegas a realidades da vida, problemas e questões, conselhos e conclusões, práticas e realizações, que têm um ar de família, tal como, por toda a parte, os seus contraditórios. Como se o pensarsentir e a liberdade de consciência  -  e o modo do seu exercício no tempo  -  também tenham o seu código genético. Sempre me surge, no horizonte destas meditações, a intuição de Ortega y Gasset, essa de "yo soy yo y mi circumstancia" e, ainda, "un transfuga de la naturaleza". Nas diferentes posições em que se encontram, no tempo e no espaço, vão os homens trabalhando as suas culturas e os seus caminhos, para todos a humana condição é igual jugo e apelo à transcendência... E o átomo que em cada indivíduo e grupo social vai explodindo (o tal átomo  -  dizia o Alberto  -  cuja história o João da Ega jamais conseguiu escrever) em todos tem o mesmo potencial,esse anseio de recuperação do bem. O livro XIX do Huainan Zi trata de "O Dever de nos Cultivarmos", no sentido confucionista de nos educarmos e aperfeiçoarmos. Para tal, vai citando exemplos históricos ou fazendo comparações entre coisas,factos e actos do conhecimento comum. Queres ver alguns?

 "Duangan Mu renunciara à carreira, para recolher a casa. O "marquês" Wen de Wei, passando pelo seu bairro, pôs-se de pé no seu carro, em sinal de respeito. Um criado perguntou-lhe: Porquê essa atitude de respeito? e o "marquês" Wen respondeu: Porque Duangan Mu mora aqui e eu quero homenageá-lo. O servo insistiu: Duangan Mu é um homem comum que se veste com um simples pano. Ter Vossa Senhoria tal atitude de respeito não será excessiva honra? O "marquês" Wen replicou: Duangan Mu não corre atrás das benesses do poder, apenas traz no coração o dao do homem de bem. Apesar de viver retirado num pobre beco, a sua fama espalhou-se por mil léguas. Por muito senhor que eu seja, como ousaria não lhe prestar homenagem? Duangan Mu brilha pela sua virtude, eu pelo meu poder; ele tem a riqueza do espírito dos justos, eu a de bens materiais. O poder não merece tanto respeito como a virtude, a riqueza não tem a nobreza da justiça. Mesmo que Duangan Mu tivesse a possibilidade de trocar de lugar comigo, nunca o faria. Todos os dias me sinto atormentado, até a minha sombra me mete medo. Como se pode fazer tão pouco caso de tal homem? Mais tarde, quando Qin se preparava para levantar tropas para atacar Wei, Sima Yu objectou: Duangan Mu é um sábio venerado pelo seu soberano. Toda a gente sabe que assim é,todos os senhores já ouviram falar disso. Levantar um exército para atacar Wen não seria avançar contra um homem justo?. Perante isso, Qin retirou as tropas e renunciou a atacar Wei."  "... Se uma seta vai longe e trespassa os materiais mais duros, isso o deve à força da arbaleta; mas se atinge o centro do alvo e cinde o seu ponto mais ínfimo, não é à arbaleta que o deve, mas à retidão do coração do archeiro. Recompensar o bem e sancionar a violência, são regras de governo; mas o que as torna exequíveis é a sinceridade essencial. Assim, por potente que seja uma arbaleta não poderá, por si mesma, acertar no alvo; os decretos podem ser claros, mas não se aplicam sozinhos. É pois necessário partir dos sopros essenciais e permitir-lhes que propaguem o dao. Assim, o dao expandiu-se para cobrir os homens, mas se estes se recusam a segui-lo, é porque o coração sincero não chegou até eles". Para que haja entendimento e tenha medida e sentido a ação, é necessária a cultura das pessoas. Os outros seres seguem espontâneamente o seu curso natural: "Atrelamos os cavalos e pomos um jugo aos bois, fazemos com que os galos marquem as etapas da noite e os cães guardem os portões, deixando-se assim guiar pelo seu instinto natural." Mas a essencial natureza do homem pede educação. "Se o ser humano fosse privado da sua natureza, não poderia ser educado; mas se houvesse uma que não fosse cultivada, seria incapaz de honrar o dao. A natureza do casulo do bicho da seda é produzir fio de seda,mas sem o labor das operárias que o fervem em água quente e dele extraem o fio principal, ele seria incapaz de se transformar em seda. O ovo transforma-se em pintainho, mas sem o amor da galinha que lhe dá o seu calor e o choca por longo tempo, ele não se tornaria pinto. A natureza humana possui um fundo de humanidade e de justiça, mas se não estiver lá o santo para a ensinar e conduzir pelas suas leis e instituições, ela não saberia para que lado se virar." Na esteira do padre português Tomás Pereira  -  muito considerado pelo imperador Kang Xi, 1º da dinastia Qing  - autor do primeiro tratado, em mandarim, de música europeia, os jesuítas estabelecidos na corte imperial foram compondo, nos modos chinês e europeu,música para missa e vésperas,bem como sonatas e divertimentos vários. Destaco o Pe. Amiot ou, ainda, entre outros, o lazarista italiano Teodorico Pedrini. Mas nessas primeiras décadas do século XVIII, também convertidos chineses se aventuraram a musicar liturgia, em curiosas simbioses barroco-chinas. Entre eles,o célebre Wu Li ("Yushan"), pintor e poeta que, ainda nos anos 80 do século XVII, vai de Beijing a Macau, onde ingressa na Companhia de Jesus e é ordenado padre. Aquando da sua conversão, escolhera para nome cristão Simão Xavier da Cunha. A missão jesuíta em Beijing será um dos maiores exemplos de aculturação do cristianismo fora da Europa, e granjeou, junto de sucessivos imperadores, merecido prestígio, pelas capacidades demonstradas pelos padres em áreas como a matemática,a geometria,a astronomia ou a música. Mas a cristianização da China não se verificou. Tal como no Japão, onde também se desfez o sonho de S. Francisco Xavier, a recusa essencial de participação em sincretismos religiosos tornou-o suspeito aos olhos das autoridades e do povo. Pareceu-lhes factor de segregação, ainda por cima proveniente de potência estrangeira. É interessante observar como os primeiros imperadores da dinastia Qing, que reinará de 1644 a 1911, se interessaram  e acolheram os missionários jesuítas, ao ponto de os integrarem socialmente nas hierarquias confucionistas. Num período em que o taoísmo foi abandonado pela elite,que lhe preferiu o confucionismo e o budismo, não havia todavia a possibilidade de reunir num corpo estas duas, filosofia e religião, com o cristianismo. O imperador Yongzheng, que sucedeu a Qianlong veio a defender os "três ensinamentos num só": confucionismo, budismo e taoísmo (assim recuperado). Há, no British Museum de Londres uma pintura sobre seda representando um sorridente Confúcio com um alegre bébé-Buda nos braços que estende a um feliz Laozi. Assim se reunem. As três filosofias têm outro modo, diferente do cristão  -  que é exclusivo  -  de conceber a união da terra e do céu. Mas esse desejo existe. O reconhecimento mútuo do modo-como não tem sido, todavia, pacífico. Não só entre as três grandes religiões monoteístas, em que a afirmação da transcendência de Deus é sempre um exclusivo absoluto  -  muito embora a fé no Deus incarnado possa ter, e tenha, dado uma dimensão mais universal ao cristianismo e, sobretudo, uma razão de missão (infelizmente demasiado esquecida, como sabemos) mais fundada no testemunho ou confissão do credo do amor do que em sectarismos segregacionistas ou militâncias guerreiras e conquistadoras.   Mas assim tem sido também entre as religiões pretensamente pacíficas e pacificadoras de tudo. Do sudeste asiático ao Japão, são inúmeros os exemplos de monges guerreiros budistas, p. ex.. E o sincretismo shinto-budista ou confúcio-tao-budista, para além da relativa falta de força das crenças mais marcadas pelo ciclo natural dos astros e da terra, e por um tempo circular em que o céu é sempre um regresso que até pode ser repetido, na afirmação da transcendência como o Outro absoluto, só se tornou realizável pela intervenção do poder político. Que, pela normalização do sincretismo, resolveu uma questão que, na Europa, teve o tratamento das expulsões ou conversões de judeus e mouros, como, mais tarde, entre católicos e protestantes, a aplicação do princípio "cujus regio ejus religio"... Talvez no século XXI  -  quando eu, contrariamente a uma amiga minha que assinará os seus escritos com data de século XXI, já não andar por cá  -  talvez então, com homens de boa vontade a perceber que nos temos vivido mais nos modos do tempo do que na comunhão de nós, talvez, talvez seja possível esse sorriso envergonhado e fraterno com que,também tu e eu, nos reencontramos, ao desamarrar dos burros, para voltar para casa. Bem dizia o Alberto, recitando Júlio Dantas (será? seria um autor dramático português...) : "Em que pensas, cardeal? Penso em como é diferente o amor em Portugal!" E comentava o teu cunhado: "Diferente? O amor é igual em qualquer lado, basta-lhe ser amor..." Era então de um brilho de sol e lua a ternura marota dos seus olhos. Como se uma criança dissesse: repete, repete, repete...


Camilo Martins de Oliveira 

É SILENCIOSO O BEM…

 

Minha Princesa de mim:

  

Cá estou neste casarão, com mais liberdade interior do que a de poder andar por aí, que a ciática não deixa, não... Passei a semana entre o divã onde me deito e esta cadeira onde me sento agora à secretária onde escrevo, escondido por pilhas de livros que se erguem sobre ela e outras mesas, pois já não há mais estantes possíveis que os apoiem, como aos outros que trepam pelas paredes do meu gabinete. Assim encurralado, vi-me na obrigação de ler até esquecer maleitas. Revi Confúcio e taoístas chineses no "Huainan Zi", voltei a Dostoievsky e a "Os Irmãos Karamazov", em busca de uma frase posta na boca do procurador Ippolit Kirillovitch, em tribunal, no seu discurso de acusação de Dimitri Karamazov: "Não é em vão que se é poeta, não é em vão que se vive a vida como uma vela acesa dos dois lados!"  Lembro-me de ter ouvido o Alberto fadistar uns versos do António Boto: "Não me peças mais canções / Que a cantar eu vou sofrendo / Sou como as velas do altar / Que dão luz e vão morrendo..." O poeta canta e consome-se ardendo. Mas a vela de Dostoievsky está acesa de ambos os lados. Como Léon Bloy  -  que não escrevia versos, mas de si dizia que era poeta  -  Fiodor Michailovitch consumiu a vida entre fogos: o do pecado e da miserável condição humana e o da exaltação e da Graça. Se Jacob lutou com um anjo, Dostoievsky lutou com dois: o demónio e o Outro. No final de um romance  -  que até tem um enredo policial de fazer inveja a um Perry Mason !  -  cheio de contradições pessoais e íntimos rasgões, de crime, ódio e paixão, pecado e perdão, miséria e dúvidas, Aliocha, o mais novo dos irmãos, aquele que acredita na infinita misericórdia do amor de Deus, e o procura e encontra na insaciável ânsia de amor dos homens, o bondoso Aliocha,vindo do funeral de um menino, de mãos dadas com todos os rapazes da mesma turma, exorta-os à lembrança do colega: "Recordemos a sua cara, as suas roupas, as suas botinhas pobres, o seu caixão, e o seu pai, infeliz e pecador, e como por causa dele o Illiutcheka desafiou sozinho a classe toda!" Não o esqueceremos, respondem eles, e Aliocha,"irmão" mais velho de todos, exclama: "Meus meninos, meus queridos amigos, não tenhais medo da vida! A vida é bela pelo que fizermos de bom e verdadeiro!" Eis como Dostoievsky responde à questão do mal, a essa interrogação sobre o absurdo, por vezes obsessiva. Também eu pensossinto que, mesmo e apesar de termos mordido o fruto proibido, não nos é dado por enquanto esclarecer a razão do mal. Só nos resta uma resposta possível: querer bem,fazer todo o bem possível, lutar para que o amor suave e luminoso vá vencendo a dureza do mal e as trevas da morte. Era assim a fé cristã de Fiodor Dostoievsky. E talvez nenhum escritor tenha enfrentado a urgência e a angústia dessa questão como ele o faz,através dos capítulos "A Revolta" e "O Grande Inquisidor", esse veemente requisitório de Ivan Karamazov. Deste episódio de "Os Irmãos Karamazov" disse Sigmund Freud  -  que, aliás, considerava esta obra o maior romance de toda a literatura do mundo  - que nunca lhe poderemos ou saberemos dar o devido valor. Ivan confessa a Aliocha, seu irmão: "Nunca consegui compreender como se pode amar o próximo. A meu ver são precisamente os próximos que não podemos amar, talvez possamos apenas amar os distantes...  ...Para amar uma pessoa é preciso que ela se oculte; assim que ela mostra a cara,perde-se o amor." Por repugnância ou por incompreensão, pela nossa incapacidade de compaixão. De verdadeiramente sofrermos com. O sofrimento humano é incompreensível. Ivan ainda entenderia que o dos adultos pudesse ser compreendido no castigo pela maçã indevidamente comida. Mas o das crianças, Senhor? "Das crianças pode-se gostar mesmo de perto, mesmo sujas, mesmo de cara feia (no entanto acho que as crianças nunca têm a cara feia)"...  ..."As crianças por enquanto não são culpadas de nada."  A revolta de Ivan é contra o sofrimento que castiga convertidos arrependidos e crianças inocentes, como aquela menina que os pais fecharam "à noite, num lugar imundo, no escuro e ao frio, a bater com o seu punho minúsculo no peito exausto e a chorar lágrimas sangrentas e submissas ao "deusinho" para que a defenda..."   ..."compreendes para que é necessário e para que foi criado este absurdo? Dizem que sem ele o homem não poderia viver na terra, porque não conheceria o bem e o mal. Para quê conhecer esse bem e esse mal diabólicos, se isso custa tão caro?" No pseudo-poema "O Grande Inquisidor", Ivan imagina Jesus que desce à terra, na Sevilha do século XVI, quando o inquisidor-mor acaba de presidir a um auto da fé. Não se fez anunciar, não se manifestou, mas, por misteriosa razão, o povo reconhece-o e acompanha-o, pedindo-lhe curas e milagres. Tal como, no epílogo do romance, o pequeno Iliucha devolve o corpito à terra numa urna coberta de flores, em Sevilha por Jesus passa o cortejo fúnebre de uma menina também coberta de flores. Mas agora Cristo repete as palavras que ressuscitaram outra menina, como conta o evangelho: "Talifa kumi!" Ela obedece, levanta-se, o povo comovido soluça de espanto, gratidão e alegria. É então que o velho inquisidor-mor manda prender Jesus. A multidão cala-se sem protesto, e todos baixam silenciosamente a cabeça para receberem a bênção sobre eles lançada pelo prelado. Este irá visitar Jesus à cadeia, para lhe perguntar: "És tu? Tu?...   ... Porque vieste incomodar-nos?...   ... sejas tu ou apenas uma aparência dele, amanhã mesmo te condeno e queimo na fogueira, como o pior dos hereges, e aquele mesmo povo que hoje te beijava os pés, amanhã, a um sinal meu, correrá a alimentar com brasas a tua fogueira..." Pela continuação do discurso do inquisidor espanhol e quinhentista se percebe que Dostoievsky, entretanto já desiludido do ocidente europeu, visa a Igreja Romana e, como ele diz, os Jesuítas, que, pelas suas imposições canónicas, querem matar a liberdade do espírito religioso do Cristianismo. Aliás, tal como Tolstoi  -  e, assim também, contra o clericalismo oficial da Igreja Ortodoxa Russa  -  ele aspira a uma religião cristã mais próxima da miséria dos pobres e da angústia dos homens do que da práctica institucional como expressão de qualquer poder eclesiástico. Mas, ao tocar na questão da liberdade das consciências  -  que o inquisidor-mor aponta como erro de Jesus Cristo  -  Dostoievsky põe o dedo na ferida: a questão do mal só pelo homem, que é livre, pode ser levantada, só a consciência humana distingue entre bem e mal, só ela é trânsfuga do determinismo do instinto e da "resignação" natural. Diz, a esse Jesus regressado, o Grande Inquisidor: "Em vez de te apoderares da liberdade das pessoas,ainda lhes aumentaste a liberdade! Ou esqueceste-te de que a tranquilidade e até a morte são mais queridas ao homem do que a liberdade de escoha no conhecimento do bem e do mal? Não há nada mais sedutor para o homem do que a liberdade da sua consciência, mas também não há nada mais torturante". Corro a buscar um dos registos que por aqui tenho da "Die Zauberflöte" do Mozart. Com ou sem Maçonaria, o mesmo drama jaz subjacente às interrogações dos espíritos que povoam os reinos da noite. Dirão todos os inquisidores e ditadores de "verdades" que seremos sempre cegos, porque somos cobardes e só capazes de aceitar o que nos é imposto. Podemos pensarmo-nos rebeldes, mas sem discutir seguiremos quem nos der tranquilidade e pão comestível aqui e agora. Mas diz-nos Jesus que não haverá pão sem partilha que nos saiba bem, nem bem possível se não o fizermos também, nem caminho que possamos percorrer sem risco, deserto ou noite. Não sabemos ainda o que é o bem,nem o que é o mal. Mas sentimos, no antiquíssimo de nós, que o benquerer nos liberta. Somos livres quando nos ultrapassamos e agimos como o bom samaritano ou o pai que festeja o filho pródigo. Talvez eu, novamente, blasfeme; mas creio que querer bem é dizer ao próprio Deus que é grande, injusta, enorme, por vezes quase insustentável, a mágoa dos que sofrem, sobretudo quando inocentes ou indefesos. É dizer-lhe, ainda, como nos doi a ferida funda de uma consciência livre de julgar, desejar e ansiar, mas presa nos limites da nossa condição humana. A meus olhos, só pela sua incarnação em Jesus  -  que é connosco  -  Deus se salva de ser demónio. Cai a tarde. Vou à janela ver como a noite, silenciosa e mansa, desce sobre os campos que não sabem o que ela é, nem o dia. Mas que,na sucessão de ambos e no ciclo repetido das estações do ano,vão produzindo fruto. Dou-te, Princesinha, uma mão invisível, aguardemos a lua. Não nos encerraremos em romantismos, quero só uma presença amiga, como sacramento de todos no momento desta comunhão da luz com as trevas que serão luz amanhã.

          ...e não quero ruídos

             nem iluminações!

             Quero o silêncio da noite

             a perfumar a lua...

Mesmo que a lua, aos olhos de todos, tenha também as suas íntimas contradições:

             A lua quando está no quarto

             minguante vê-se ao espelho

             no crescente e vice-versa

             a nova vê-se na cheia

             a cheia à nova a cara tapa.

             No princípio era o silêncio.

 

Camilo Martins de Oliveira.

O tempo dirá tudo à posteridade. É um falador. Fala mesmo quando nada se pergunta.

 

Foi Eurípides um poeta grego que nasceu no ano 480 a.C. no dia da batalha de Salamina  - o célebre combate entre persas e gregos – ou em 485/84 a.C. como parece resultar do conhecido Marmor Parium,  incrustação cronológica feita em mármore e que nos reporta inúmeras datas da história grega.

Foi Medeia de Eurípides representada pela primeira vez nas Dionísias Urbanas (as mais novas das festividades e de grande contributo para o desenvolvimento cultural da polis) no ano em que começou a Guerra do Peloponeso - conflito armado entre Atenas e Esparta.

Eurípides, o mais jovem dos três grandes expoentes da tragédia grega, já se debruça nesta data, em maturidade, particularmente, sobre a inquietação extrema da alma humana feminina.

Medeia surge-nos como uma mulher não consumida pelas lágrimas do seu sofrimento, mas antes promessa a si mesma de gerir num tempo só, amor e ódio, enquanto esposa repudiada e sedenta no desejo de não aceitar o tradicional conformismo feminino.

Tomada de fúria terrível, examina cuidadosamente os detalhes dos seus planos de vingança. A verdade é que nem a existência de seus filhos a conduz a não exultar os seus violentos pensamentos, e a culpa, que, quer fazer crer, residir, principalmente na princesa de Corinto, por quem, Jasão, seu esposo, a trocara.

Vem Medeia, também, a carecer de refúgio, quando, expulsa da cidade. Contudo, nada a demove da vingança maior: a de tirar do homem a sua descendência.

Quando pede um dia para encontrar outro lugar onde supostamente iniciaria nova vida, esse dia é-lhe concedido. Porém nesse dia todos os acontecimentos terríveis acontecerão.

Medeia mata os filhos que teve com o marido para dele assim se vingar, e não, sem que antes, por eles enviasse à princesa de Corinto um véu e um diadema, presentes envenenados que a matarão, bem como a seu pai, rei de Corinto, que expulsara Medeia por a temer em violência contra a sua filha.

Medeia é vista como uma das figuras mais impressionantes da dramaturgia universal. Coberta de sentimentos irracionais para os gregos, decide resolver as dores que a atormentavam.

Medeia, aquela que depois de todas as mortes às suas mãos, foge pelo ar em carro guiado por serpentes aladas.

Medeia a feiticeira conhecida em toda a Grécia pelos seus poderes.

Jasão

Ó filhos, que mãe perversa vos coube em sorte!

Medeia

Ó filhos, como a loucura paterna vos perdeu!

Jasão

Não foi contudo a minha dextra que os imolou.

Medeia

Mas a tua insolência e as tuas novas núpcias.

Jasão

Ó filhos tão queridos!...

Medeia

À mãe, não a ti.

Jasão

Que depois mataste?

Medeia

Para te castigar.

 

  • De notar que a condição de feiticeira de Medeia esteve sempre diluída. Mímicas posturas? Medeia desumaniza-se com o que sofreu como mulher , mas regressando ao mítico, levou-a, as serpentes aladas, a poder transformar-se numa personificação da vingança, deusa nunca mais, e afinal impassível, como os deuses.
  • Existe algo de heróico nesta protagonista? Pode um escravo que sobrevive em ódio, ser um homem livre na sua alforria ? Muitíssimo gritante é a ironia dos vínculos dos afectos no estudo do irracional do comportamento humano. Analisando as perturbações do espírito, encontramos enfim, os temas dos dramas de onde, o juízo ético, tende a ser excluído sempre, o que nos leva a não querer aceitar o carro guiado por serpentes aladas, como se fosse um prémio dos deuses, reconhecidos a uma torpe coragem. Todavia, não se descuide a solução interpretativa proposta por Barlow *«a minha raiva impele-me com mais poder do que o cálculo das suas consequências.»
  • Nem se invoquem os deuses que protegem os juramentos com amarras nas popas dos barcos!,  quais guardas temíveis, dos céus, finas foices.
  • Como se sabe, nas tragédias gregas, os Mensageiros, são geralmente figuras compassivas, mas aqui, um deles classifica de louca a alegria de Medeia e distancia-se perante as terríveis notícias.
  • A dificuldade persiste no conflito entre paixão e razão, entre os elementos da alma e seu sentido. Afinal é tão difícil lutar contra a fúria. Tão difícil o sentido do conhecimento do bem e do mal, tão insuficiente ao do custo da acção da dor.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

 

Barlow, S.A.1989.«Stereotype and reversal in Euripides’Medea»,Greece and Rome 36, 158-171

Rickert, G.A. 1987. «Akrasia an Euripide’s Medea», Harvard studies in Classical Philology 91,91-117.

FERNANDO AMADO: A PRIMEIRA PEÇA – “A PRIMEIRA NOITE”


Data do início dos anos 20 este primeiro texto conhecido de Fernando Amado: antes, teria escrito ”O Homem Metal”, que se perdeu, mas que surge referenciado numa linha futurista próxima de certa estética do Orpheu. Em qualquer caso, “A Primeira Noite” foi escrita cerca de 1923. Trata-se de um longo diálogo entre recém–casados, Lúcia e Vasco, na noite de núpcias passada num “quarto de cama numa estalagem de província”  minuciosamente  descrita.

“Lúcia penteia-se diante do espelho”. A marcação é também detalhada, mostrando já o sentido de espetáculo e a capacidade de direção de atores que, meio século decorrido, haveria de comprovar em tantas ocasiões e nas aulas que frequentei no Conservatório. Lúcia “abre em seguida as janelas ao fundo que dão para a estrada e respira gostosamente o ar da noite, uma noite de Verão, claríssima, de luar”.

Mas eis que ”ouve-se a voz de Vasco chamando Lúcia!” E “pouco depois ele entra”.

E a partir daqui, desenvolve-se um longo diálogo destes recém-casados, para quem “a primeira noite” se anuncia no mínimo frustrante, para não dizer trágica. Pois Lúcia não quer compartilhar essa noite de núpcias com o marido: até reservou um quaro separado. Não há explicação imediata: ou melhor, a explicação mais implícita do que expressa, decorre da atitude machista de Vasco,  essa sim expressa e claramente assumido:

Vasco – (…) Morreu a tua liberdade de menina caprichosa… Dependes de mim como de ninguém neste mundo – como nunca dependeste do teu pai e da tua mãe…Eu tenciono provar-te que não abdico dos direitos de marido… E pronto, Lúcia, agora sou eu que ponho ponto final”.

A peça desenvolve-se aliás numa alternância de afeto e paixão, que se contradiz por vezes diretamente: Lúcia e Vasco chegam a combinar para a lua-de-mel que ali se inicia, viagens que em 1923 não eram nem fáceis nem habituais - Roma, Paris, Berlim, ou mais modestamente “Deauville ou outro sítio nesse género”, por exemplo a Bretanha: Mas para Vasco as férias no mar eram “uma estopada” – “rochedos, céu e mar vinte e quatro horas por dia”!

Só que o problema é mais profundo: Vera considerou a certa altura o casamente como “um pesadelo que tem vindo engrossando à medida que se aproximava o grande dia – o grande dia, meu pobre Vaso! Estive para fugir, sabes?”

Mas o Vasco insiste com um pelo menos aparente otimismo: ”Ferra-lhe em cima uma boa soneca, e verás que já amanhã o teu pesadelo terá dado a volta ao mundo e serás a primeira a rir das tuas pieguices”. Resigna-se a passar a noite de núpcias no outro quarto e para ele se dirige “assobiando um foxtrot”…

E a peça termina com a Lúcia a chamar o Vasco “num grito abafado, os braços na direção dele (…) e cai de joelhos junto da cama contendo os soluços”. E grita – “Sozinha!”

Ora bem: recordemos que a peça é de 1923, o que põe o problema da adequação ou não da mentalidade machista de Vasco à época: Fernando Amado em qualquer caso condena-a. 

E é notável o rigor cénico e literário desde longo e intenso diálogo realista-naturalista, que, pensamos, nunca terá sido levado à cena. Mas merecia!


DUARTE IVO CRUZ

 

 

desenho de Guilherme d'Oliveira Martins

LONDON LETTERS


Nelson Rolihlahla Mandela, 18 July 1918 – 5 December 2013

 

 

O melhor de todos nós partiu para a eternidade, aos 95 anos, e o mundo celebra-o com emoção. Uma personalidade extraordinária, sim, por inteiro, mas sobretudo um homem de coração bom e espírito livre. Daí esta brisa! Alguém que prova what love is about e assim muda o mundo, para melhor! A sua firmeza de objetivos, princípios e valores evapora a vedação do ‘apartheid.’ — Oui, nous pouvons! A morte de Mr Nelson Mandela ocorre numa terra em inquieta transformação, aonde, a exemplo do resto do globo, há fome de justiça e de outros fundamentais à vida, deixando a todos um intenso legado político e moral, de coragem, magnanimidade e esperança. A ONU e as bandeiras das nações saúdam este African father. Grandes e pequenos seres enaltecem-no. — "Neither in Samaria, nor in this mountain, nor in Jerusalem." Ele é um filho das savanas e o prisioneiro No. 46664 que presta apoio jurídico aos carcereiros em luta por os devidos salários. O medo, nota o general V Hammerstein aos nazis antes do silêncio, não é uma visão do mundo.

 

 

Em qualquer hemisfério e quadrante, eis demonstrado à evidência o quão diferente é ser amado e venerado ou ser temido, desprezado e odiado. E temos um líder! Neste caso: a ave guerreira dos “ventos da mudança.” A sua autoridade interior inspira respeito e admiração. Defende a intrínseca dignidade do ser humano, contra o domínio branco e ainda contra a dominação negra. Um tribunal de Pretoria sentencia-o a prisão perpétua, em 1962, por crime de traição. Inicia a walk to liberty. Atrás das grades, em exígua cela, vive 1 ano. # 2 anos. # 3 anos. # 4 anos. # 5 anos. # 6 anos. # 7 anos. # 8 anos. # 9 anos. # 10 anos # 11 anos. # 12 anos. # 13 anos. # 14 anos. # 15 anos. # 16 anos. # 17 anos. # 18 anos. # 19 anos. # 20 anos. # 21 anos. # 22 anos. # 23 anos. # 24 anos. # 25 anos. # 26 anos. # 27 anos longos de encarceramento, com a punição agravada de trabalhos forçados. Aos 71 anos de idade, sabendo porque cantam os pássaros engaialados, Mr Mandela sai do presídio do ‘apartheid’ com o sorriso de perdão. O que acontece a seguir na desigual South Africa vem nos livros de história e afirma a utopia de recriar a world that works for all que vitaliza a nação: o ideal multiracial da free and democratic society.

 

Ora, uma comum questão entre os historiadores é a de apurar how much difference can one Leader make? Um daqueles seres raros como, escolhei vós, Mahatma Gandhi? Winston Churchill? Martin Luther King Jr? Seja: The right person, at the right time, in the right circumstances. Quando o ativista que trata pelo nome próprio a Queen Elisabeth sai do cárcere, num dia sem nuvens de 1990, e ao mundo simplesmente se revela liberto de ressentimento, raiva ou amargura, ergue um farol planetário que as gentes de várias tonalidades de pele olham para finar o opressivo regime da segregação racial. O caminho é exigente. Se esmagadora maioria dos South Africans vota nele, poucos estão preparados, mesmo agora, para idêntica calmness e fé na diversidade e na reconciliação. Ainda assim, menos por decreto, mais pela palavra e exemplo, produz o milagre da diferença! Talvez a estatura de Madiba indicie mudança nas eras do tempo, um Homem mesmo entre hienas e chacais, em paz, com amor e retidão. E que se pode escolher replicar à escala e esfera de influência. Afinal, que trilho seguimos? Com que contributo individual para o bem comum?

 

O legado humanista de Mr Nelson Mandela é perene lição de tolerância e um exemplo magno de autenticidade, integridade e inteligência. O Archbishop Desmond Tutu agradeceu já a graça do amigo cuja vida ensina sobre the right example em que todos e cada um se podem esculpir. “Eu sou o comandante da minha alma,” escreve ele na viagem às trevas. — I deeply thank you, Tata Madiba.

 

St James, 10th December

 

Very sincerely yours,

 

V.

 


A note

The bird of the winds of change

As estatísticas políticas indicam que apenas 2% das pessoas ousam dizer ‘não’ a um regime moralmente criminoso. O preconceito e a insensibilidade ao sofrimento humano explicam parte, bem como o especial tratamento prestado aos insubmissos. Em Long Road to Freedom (1995), uma geração depois de etiquetado como “terrorist” por resistir aos brutos e de London acolher no exílio Mr Oliver R Tambo e o quartel-general do ANC - African National Congress, Mr Nelson Mandela informa a memória matemática dos divisores (e os revisionistas da fotografia) sobre o modelo da superioridade racial:

Apartheid literally meaning “apartness” and it represented the codification in one oppressive system of all the laws and regulations that had kept Africans in an inferior position to whites for centuries. The often haphazard segregation of the past 300 years was to consolidated into a monolithic system that was diabolical in its detail, inescapable in its reach, and overwhelming in its power.

 

 

 

Todos diferentes, todos iguais. Nem todos cúmplices.

— Yes, Mr Mandela’s day is done.