Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Jaime Nogueira Pinto apresenta-nos em «Portugal Ascensão e Queda» (D. Quixote, 2013) uma leitura pessoal da evolução política portuguesa, na qual como cultor da ciência política procede à cuidadosa análise de um encadeamento histórico, que neste momento, se revela particularmente pertinente. O subtítulo da obra, «Ideias e Políticas de uma Nação Singular», dá-nos a preocupação fundamental do autor, animada por uma cultura solidamente fundamentada que nos conduz a uma atitude futurante.
UMA LEITURA PERSONALIZADA São catorze capítulos, em que sucessivamente acompanhamos a história política da independência nacional. Depois das considerações sobre a ascensão e queda na pátria, seguimos diacronicamente: da fundação à primeira crise; os caminhos do Mar Oriente; Maquiavel em Portugal; Sebastianismo – derrota, sujeição e mito; o déspota lusitano (sobre Sebastião José); Portugal e a revolução (liberal, entenda-se); a partilha de África; a República jacobina; a República autoritária; Portugal na Guerra de Espanha; orgulhosamente neutros; um império contra as Nações Unidas; e da última revolução à última crise. Com a serenidade necessária, o autor não esconde a sua perspetiva política e histórica, o que concede um cunho especial à obra, uma vez que estamos perante um justo elogio prático da história política, por quem usa a escrita para dar um testemunho próprio, que é apanágio das culturas maduras e que permite aos cientistas sociais procederem a análises panorâmicas da evolução das sociedades. A escrita é atraente, o ritmo da análise e o conteúdo são desafiantes. Na primeira crise, de que Fernão Lopes foi o grande intérprete, «há um pressentimento da nação em formação», João das Regras usa tudo para legitimar a causa que defendia, e a nova dinastia vai evidenciar «um esforço de apropriação nacional das tendências europeias». Nos caminhos do Mar Oriente, temos uma orientação, não confundível com acaso. «Jaime Cortesão sublinhou no infante (D. Henrique) a dupla faceta de homem de fé e de ciência», envolvendo o ideal de cruzada e razões económicas, e a criação de um império singular (que Pessoa entendeu corresponder a um «universalismo imperialista») – em que se associavam contraditoriamente o «mare clausum», a audácia estratégica e de combate (de Albuquerque), as divisões internas e as intrigas (as resistências dos fidalgos de estirpe) e os «fumos da Índia». Desde a morte de Afonso de Albuquerque, sentiram-se sinais de enfraquecimento e decadência, bem patentes quer em «O Soldado Prático» de Diogo do Couto, quer na «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto. E Maquiavel, o moralista, o lutador da unificação italiana, não está a pensar nos velhos principados, menos expostos ao artifício e ao imediatismo, melhor se inclinando para a moderação de Justo Lípsio. Entre o fundamentalismo ético e o arbítrio maquiavélico deveria prevalecer um justo meio… Os neoescolásticos permitiram consolidar o novo poder depois da Restauração, a partir da tese da usurpação filipina, e abrir caminho à construção do Estado, mas simultaneamente o império asiático cedia lugar às perdas na Ásia perante a Holanda e à importância crescente da influência portuguesa no Atlântico sul.
A FORÇA DO ABSOLUTISMO A história faz-se, contudo, também de mitos e o sebastianismo continua ser influente, por razões várias, desde a influência dos cristãos-novos, e da noção de povo eleito, às condições históricas da «união pessoal» e da restauração. O Padre António Vieira, esse é um «profeta prático», sujeito às incompreensões do século (devendo ler-se agora «A Chave dos Profetas»). E o certo é que «o sebastianismo iria perdurar como ideologia de resistência nacional, inspirada na confiança num salvador que teria de ser merecido pelo povo arrependido». Viria depois o século do absolutismo real e das lutas europeias, que levariam entre nós os atlânticos a vencer os continentais na causa da guerra da sucessão de Espanha. Estavam em causa as riquezas brasileiras, chegaria o ouro e toda a grandeza e decadência, mas também o anúncio do século da razão e do despotismo esclarecido de Carvalho e Melo. E Pombal encarna uma contradição insanável: defendeu o prestígio e a força de Portugal na Europa, com eficácia e a inovação, em especial perante a catástrofe de 1755, apesar da «obsessão de subjugar tudo e todos ao arbítrio do poder real». De facto, anunciava-se um tempo de mudanças radicais na Europa, não sendo a «viradeira» mais que uma plácida transição. Perante a invasão napoleónica, cumpriu-se a lição de Clausewitz: «não sujeitar-se à vontade do inimigo», para garantir a continuidade da «luta militar» (na lembrança de J. Borges de Macedo). O constitucionalismo pôde germinar – por influência inglesa e francesa. E a causa liberal venceria, fugazmente em 1820, e depois da luta civil em 1834 na Convenção de Évora-Monte, abrindo caminho à luta aberta entre Cartistas e Constitucionalistas, que apenas terminaria em 1852 e com uma curiosa síntese entre a Carta de D. Pedro e a Constituição de 1838 de Passos Manuel. A partilha de África mobilizaria a sociedade, entusiasmada com o novo momento africano (depois do choque da independência do Brasil, salvadora da unidade do novo Império), em especial na sequência do Congresso de Berlim. Mas as pretensões portuguesas de ligar Angola à contracosta (o mapa da discórdia) ficariam comprometidas, e o sentimento de humilhação que ficou do Ultimato inglês acabaria com o fim trágico da monarquia. A guerra de 1914-18 marcaria, como sabemos, pela instabilidade a República, apesar dos primeiros sinais de equilíbrio orçamental dados por Afonso Costa. Os acontecimentos sucederam-se: o sidonismo antecipou uma tendência europeia dos autoritarismos; politicamente a «República velha» não conseguiu recuperar; depois de 1926, a ditadura militar abre caminho ao que Manuel Lucena designou por «fascismo sem movimento fascista», mas a guerra de Espanha e depois o neutralismo na Grande Guerra atenuam, pelo «pragmatismo conservador» de Salazar, os efeitos da vitória das democracias em 1945 na transição portuguesa para o pluralismo constitucional. O autor enfatiza a componente africana na evolução histórica, o que correspondeu, em dado momento, a uma clivagem entre a oposição republicana tradicional (que não esquecia o ultimatum e o facto de a República ter nascido em defesa das colónias, como subtilmente recordaria Salazar no subtil elogio a Afonso Costa no discurso do 40º aniversário da Revolução Nacional (1966).
JOÃO DA EGA NÃO PODIA FALTAR Recordando João da Ega, o autor cita-o: «aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo vem em caixotes de paquete. A civilização custa-nos caríssimo, com os direitos de Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita por nós, fica-nos curta nas mangas…». Choldra torpe é, assim, que Eça invoca. O certo é que a reflexão merece leitura. E a simplificação não existe. Diga-se a terminar que a obra é servida por uma belíssima capa que reproduz os painéis da Gare Marítima de Alcântara, de Almada Negreiros, alusivos à «Nau Catrineta». E é significativa a frase final do livro, retirada da reflexão de Jorge Dias sobre a nossa identidade: «(ao português) se o chamam a desempenhar um papel medíocre, que não satisfaz a sua imaginação, esmorece e só caminha na medida em que a conservação da existência o impele. Não sabe viver sem sonho e sem glória». A verdade é que, por muito que devamos ser cuidadosos nessa consideração, o certo é que, no íntimo, sentimos que tem algo de verdadeiro, para uma nação antiga, com muitas vicissitudes e contratempos e diversas ocasiões de reencontro e de renascimento.
Ao acordar de cada dia, a minha lembrança de ti é esta ternura que te cria. Imensa, menina e clara como a manhã. O amor é poético, é o palpitar do real absoluto, esse bater do coração do universo inteiro. É Deus que nos persegue, desde a antiquíssima madrugada de nós, mesmo quando já é noite e a lua, subitamente, começa a ser real. No amor que te tenho, tão incansavelmente fiel, procuro o amor dos outros e de tudo. Terei, quantas vezes, de me contentar com a lua que não alcanço, na certeza, porém, de que nela se reflecte - promessa láctea como seio de mãe - o sol tão radioso que me cegaria se o visse já. Assim é a condição humana em seu caminho. Sem dar por isso - reparo agora - lembrei-nos com Novalis, a Traviata e Álvaro de Campos. Como Poulenc terá comungado com Bach nos concertos para dois pianos. Ou Beethoven com Mozart no seu quarto concerto para piano. Ou Camões com Petrarca. Li hoje, algures, que já cientistas defendem que, no nosso coração, há neurónios que pensam. Serão pois sábias as razões do coração, como Pascal pretendia. E mesmo o conhecimento - disse Claudel que a "connaissance" é nascer com - por ser amor da verdade, não será, afinal, o nosso coração à procura da rocha a que as lapas que somos possam aderir? O amor não é vaidoso, nem contentamento de si. É a recusa do orgulho, o querer bem. É a procura da bondade. Que tem outros nomes, como verdade. E beleza também. Nada nos é, nem pode ser, imposto. O Jesus que disse "deixai vir a mim as criancinhas" chamou-nos a um jugo leve e suave. Assim é tão doce a ascese do amor. Não há disciplina sangrenta, nem fará sentido pensar que qualquer modo soturno de castigo nos libertará de nós. Só a quem quiser bem por bem querer, tudo o mais será perdoado. O Evangelho segundo S. Lucas é conhecido por ser a boa nova da misericórdia. O trecho que dele se proclamou na missa de hoje, todavia, pode parecer a alguns um discurso totalitário: "Se alguém vem ter comigo e não me preferir ao pai, à mãe, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo"... Mas, logo depois, chama atenção para a estultícia de quem quiser construir uma torre sem calcular se lhe é suportável o custo, ou para um rei que mova uma guerra contra outro, sem pesar bem a inferioridade das suas forças, nem procurar negociar a paz. E conclui dizendo "assim, quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens, não pode ser meu discípulo". A mim, este texto diz-me que o amor é exigente, não por ser partidário, mas por nos chamar à solidez e à paz. Porque nos chama ao despojamento de nós e não nos quer afetos aos nossos só, como se escolher Deus - que é tudo em todos - fosse excluir alguém, os outros. Os que são diferentes. Renunciar aos nossos bens não é deitá-los fora, antes é querer que o bem seja para todos. O bem não se impõe,anuncia-se. O bem chama-nos. A todos. O pecado do "fundamentalismo" é entender que o bem é propriedade sua, como a verdade que pensará entender ou a beleza que julga possuir. O amor é renúncia, porque como a misericórdia de Deus e a ternura possível dos homens se debruça sobre os outros. Simultaneamente, somos todos pobres e samaritanos. Bons e maus, é esta a nossa condição. Aliás, na parábola do bom samaritano, não é o socorrido que é o próximo. Mas é o estrangeiro que socorre. E também Montaigne nos ensinou como, entre amigos, não é quem mais ama que é credor. Credor é, sempre, aquele a quem não foi dada a possibilidade de amar. Ai, Princesa, Princesa, dás mesmo cabo de mim...
Sempre achei que Jesus podia entender-me se o invocasse através de Nelson Mandela. Apenas o merecimento, a coragem, a qualidade de um homem como Mandela levaria ao entendimento eterno da vida e ao acesso do escutar de todos os bons que habitam os céus de cada um.
Mandela não é uma inspiração, ele é, e foi, um trabalho à beira cruz, que, num sorriso, desposou o mundo inteiro.
Descobrir esta realidade é coisa nova. Reconhecer que a existência de direitos por um mundo melhor faz-se sem rancor na assunção de um comportamento de teorema fundamental, é divergir do que nos cerca por vazios imensos, baseados em preferências e posturas vaidosas, egoístas, vingativas, tolas, absurdas.
O espírito de luta de Mandela reside na esperança de que não morra o homem sem a paz medicinal de repensar a vida.
Afinal muito do que possuímos a fazer casa, foi chamado por Mandela, e por uma sua música que decerto já se ouviu quanto todo o mundo se cala.
Silêncio pois que a necessidade é a de nos compormos de acordo com a natureza, não te parece que se tu gostas de ver a luz, não te parece que o teu irmão também gosta?
Afinal a mais inesperada beleza é um invento do homem dos dias de hoje: uma vitória para sempre poderosamente divulgada por Mandela. Se da injustiça, da violência, da compreensão, irromper o factor de união entre os povos, eis o compromisso que nos deixou Nelson Mandela, e o mais lindo ramo de flores é para Nelson oferecido com estas palavras, sempre parcas, sempre muito calvas face ao Seu exemplo.
Transforma-se o escritor na coisa escrita,por virtude do muito maginar. Assim, já não sei bem se é Camilo Maria, 15º Marquês de Sarolea, que te escreve esta carta, ou se é este Camilo, que afirma traduzi-las e diligentemente as vai "batendo à máquina", como se dizia... Este, o operário, deu-se finalmente conta de que tem vindo a apor directamente o seu nome como assinatura das cartas que te escrevo. Como se fossem elas dele,imagina tu! Ainda não "flaubertiou", exclamando "Camilo Maria c´est moi!", mas cá desconfio de que terá feito pior: pensará que ele é, sou, eu! Usurpa-me. Insidiosa usucapião esta, de tanto me imaginar quase me incarna, ou ele em mim... Que confusão! Qual de nós, ele ou eu, ou ambos, poderá sair dela? Nenhum tratado da alma nos explicou bem o que ela é. E tu, Princesa, Princesa, quem és tu? Uma musa? uma aparição? uma mulher real? um amor secreto? uma personagem epistolar? ou, na lhaneza da nossa condição humana, a destinatária destas cartas será o momento de Princesa que se sente uma qualquer leitora delas. Enfim: somos todos desconhecidos uns dos outros, mas, por vezes, um milagre nos comunica e comunga, e sabemos então que intimamente nos pertencemos, mesmo sem saber bem a quem. Ao demónio cujo nome é Legião se confronta a multidão dos santos,dos que respondem. A santidade dos homens não é um estado, é uma vocação correspondida, o caminho da procura de um encontro. O nome do amor não é posse, é paz. A posse conquista-se, a paz é dádiva. A posse é jugo, a paz é partilha. A posse é afirmação, a paz é procura sempre. Nada nos será, no tempo, definitivamente dado. Tudo, por nós, connosco e em nós, é procurado. Mesmo a palavra inicial, que perseguimos até poder dizer o indizível. Talvez não seja possível, nem sequer necessário. Entendemo-nos melhor no misterioso silêncio, nessa tão íntima interrogação em que comungamos todos, do que nas explicações que pretendemos dar às coisas. E, afinal, quem veio escrevendo este bilhete. Que Camilo? Ele ou eu, este ou o outro? Mas que é o outro? Será o Outro que nos chama? Fica em paz, Princesa. E nós contigo!...
Em 1993, Miguel Torga escreveu para a Fundação Calouste Gulbenkian, um curioso texto sobre Almada Negreiros, reproduzido em 2001 no belo volume sobre Almada editado pela Camara Municipal de Aveiro. É bem conhecido o caracter crítico de Torga, como bem conhecida é a sua extraordinária capacidade de criação e comunicação literária. Um texto de Torga tem em si mesmo, como bem sabemos, um valor criacional indiscutível: mas, repita-se, é bem conhecida a sua veemente capacidade de dizer e escrever o que pensa, sem contemplações….
Vale por isso e pena recordar esta apreciação de Miguel Torga ao talento e á obra de Almada, num texto que pensamos menos conhecido. É de facto o testemunho entusiasmado de um grande escritor português que, repita-se, foi sempre parco e exigente nas suas apreciações.
Diz então Torga, entre outras considerações: “Almada Negreiros faz parte da falange gloriosa dos homens do princípio do século que, por toda esta nossa crepuscular Europa, escancaram as portas pesadas e trancadas das artes, das letras e do pensamento. Génios versáteis, inquietos e inquietadores, que se riram como crianças grandes da solenidade académica dos pais e, como que a brincar, congeminaram, desenharam e deram nova fisionomia à cultura e à época modernas”.
Cita a seguir Marinetti, e prossegue com uma apreciação justa e categórica da relevância ímpar de Almada Negreiros no modernismo da arte portuguesa: ”Almada, em Portugal, foi o primeiro entre os primeiros apóstolos da boa nova. Nem o seu talento, nem o seu pincel, nem a sua pena tiveram mais descanso. E legou-nos dessa atividade criadora e inovadora a singularidade dos seus desenhos, dos seus poemas, do seu teatro, dos seus romances, e sobretudo, a riqueza sem par do seu fecundo exemplo. Depois dele, tudo na vida mental lusitana foi e será diferente ”.
A referência de Torga a “crianças grandes” lembra-nos desde logo “O Menino de Olhos de Gigante” poema de 1921, antecedido de uma indicação ao leitor, bem sintomática da criatividade e da subjetividade de Almada: “Dizem que sou eu, o Menino d’olhos de Gigante: e eu juro, pela minha boa sorte, que não sou só eu”… Mas as longas referências no próprio poema ganham uma extraordinária subjetividade: “ Meus olhos são de gigante/ eu sei, eu já os vi/ não é novidade nenhuma/ que tu me dás, oh gigante!/Bem sei que eu sou menino/mas esses olhos são meus/, se são olhos de gigante/ foram postos qui por Deus”…
Em abril ultimo, João Brites e Miguel Jesus adaptaram para a cena o poema de Almada (”Olhos de Gigante” - Teatro O Bando). E ressaltou aí, uma vez mais, a espetacularidade admirável da arte de Almada Negreiros. E o espetáculo, tal como muito bem refere Maria Helena Serôdio no Congresso Internacional de Almada Negreiros, “interroga(r) o radicalismo performativo de Almada na sua relação com formas do modernismo em teatro”….
Dias há em que me sinto como Monsieur Michel Montaigne, aquele que Master Shakespeare lê avidamente nos dias elizabetheanos e lhe robustece o fôlego da resistência às injustiças do céu: Graças a Deus há livros! A coincidência das mensagens na janela de tempo soma na uneasyness. Ambas são de uma linearidade exemplar. A alegria do evangelho pelo Pope Francis, de um lado. O elogio da cobiça pelo Mayor of London, do outro. —Chérie, les loups ne se mangent pas entre eux. Enquanto o Sumo Pontífice diz não à tirania invisível dos mercados porque a economia da godess penia mata, Mr Boris Johnson defende a desigualdade e vê a ganância como uma indispensável espora do desenvolvimento humano. —Well, dead men tell no tales. No meio surge o cool US President Barack Obama, que, no alto de mundana autoridade, denota o quanto o humor salva da crueldade desnecessária ao amnistiar os perús Popcorn e Camel das políticas da inevitabilidade no Thanksgiving.
Qual das duas visões da realidade prevalece? Live to mercy! Ou, ao contrário: Live and let die! Quanto pesa uma e outra ao redor? Humm! E qual delas estrategicamente sustenta a big society, que é uma comunidade de afetos a preservar para assim construir futuro? A exortação papal tonifica o personalismo, repudia a idolatria do dinheiro e ainda apela aos políticos para que garantam all citizens’ “dignified work, education and healthcare.” Já The Rt Hon Boris Johnson se posiciona para a corrida de sucessão à liderança dos Conservatives, invoca o “spirit of envy” e clama pelos “Gordon Geekos of London.” Por impiedade? Não, de todo. Educado no Eton College e na Oxford University, aliás, como Mr David Cameron ou Mr George Osborne, o Mayor tanto sustenta que os poderes apoiem os ricos quanto advoga que eles abracem a filantropia. O estado, porém, não deve ir por aí. Combater a desigualdade social é algo fútil. Sim, o Tory darling crê nisto: Greed is good.
Conheço muito boa gente que não vislumbra qualquer contraste nas duas mundivisões, porquanto coloca um inocente Mr Charles Darwin a unir tais pontas. Tudo resultaria da Natural selection! O que o Pope Francis vê como lei do mais forte, o Mayor Bojo visiona como a vitória dos mais aptos. “Whatever you may think of the value of IQ tests, it is surely relevant to a conversation about equality that as many as 16 per cent of our species have an IQ below 85, while about 2 per cent have an IQ above 130.” Acompanha a % com método: “The harder you shake the pack, the easier it will be for some cornflakes to get to the top.”
Em dia de megacrash nos terminais bancários a espalhar red faces entre desprotegidos cidadãos e do Education Secretary, RH Michael Gove, apresentar um statement na House of Commons sobre os resultados do PISA - Programme for International Student Assessment, chegam ecos da satisfação do líder de Rome pela oferta de a fireman hat. Se o lobo universal de que William Shakespeare escreve em Troilus and Cressilda anda à solta, cavalgando a tríade do “appetite, power, and will”, com efeito me interrogo se a "careless elitism" não sucede o “careful elitism.” — As wise men say, the strongest man’s argument is the best.
«A Invenção do Dia Claro» de Almada Negreiros (Olisipo, 1921) é um conjunto de máximas, aforismos e parábolas que usam, na expressão de Jorge de Sena, o método das «aproximações sucessivas», representando uma sensibilidade inovadora capaz de nos aproximar de uma afetividade lírica que se demarca do romantismo e do naturalismo.
O INVENTOR DO DIA CLARO «Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas» - é Almada Negreiros quem no-lo diz em «A Invenção do Dia Claro» (1921). Nesta pequena frase, de quem gostava de fazer considerações certeiras, desarmantes e determinantes, poderá estar o brevíssimo e incompleto retrato de quem se multiplicou por diversos campos de criação, sempre com superlativo talento: o humor, a ilustração, a pintura, a poesia, o romance e o ensaio. No meu caso, conheci a influência e a força de Almada (a sua sombra forte) em casa de uma querida amiga, que continua felizmente a marcar os seus admiradores e discípulos, Maria Germana Tânger. «Chegar a cada instante pela primeira vez». A frase estava inscrita e emoldurada numa das paredes daquela casa acolhedora do Largo de S. Carlos, com letra desenhada pelo punho do artista e a assinatura marcada pela inconfundível longa haste do d, que nos enchia de entusiasmo por encontrarmos alguém capaz de ver o futuro. E, em silêncio religioso, ouvíamos: «Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei». Ou «Pede-se a uma criança: Desenha uma flor. Dá-se-lhe papel e lápis…». A biografia do artista era um apaixonante reportório de gestos teatrais, e então começámos a acreditar que o teatro era uma arte completa, inesgotável, permanente. Não foi casual a amizade forte entre Almada e Fernando Amado, que fez do Centro Nacional de Cultura um lugar de exceção, onde nasceram o Grupo Fernando Pessoa e a Casa da Comédia – e onde o debate, o património, a identidade, a cultura e a língua se tornaram campos de exceção. Era o tempo em que líamos Fernando Amado na «Cidade Nova» e em que decorávamos Pessoa («À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica / Tenho febre e escrevo») e Almada («Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros…»), mas também Camões, Cesário, Pessanha e Antero, e em que ensaiávamos, na rua ou no pátio do liceu, os diálogos de mestre Gil («eu perdi se s’acontece a asna russa de meu pai…»; «vou-me à feira de Trancoso, logo, nome de Jesu»), alternando com as falas circunspectas do teatro de Tchekhov. Mas Almada Negreiros era o mestre. Saíamos na estação da Rotunda, confabulando com se fôramos reencarnações do teatro russo, porque acreditávamos (como acreditamos) em que «o teatro é o escaparate de todas as artes. Todas as artes são todas as peças da mesma coisa. Perguntaram-me (dizia Almada) se o teatro não era a mais fácil das artes. Respondi: não há artes mais fáceis, qualquer delas é facilidade. Teatro é facilidade à vista de todos. Arte é tornar fácil o difícil. O difícil é o espontâneo. Este vem no fim. Pois quando foi primeiro não estava lá o próprio». Era isto que o seu exemplo nos ensinava. E não nos saía da memória, Almada Negreiros como atirador de esgrima (tão bem representado por Leonel Moura), desafiador, violentamente pateado à entrada do Teatro República a 14 de abril de 1917, e nós sonhando estar do seu lado, dizendo-nos ele ser «poeta d’Orpheu, futurista e tudo».
POETA DE ORPHEU, FUTURISTA E TUDO José de Almada Negreiros, nascido em 7 de abril de 1893, na Roça da Saudade, na ilha S. Tomé, marcou decisivamente o panorama artístico do século XX. É uma das figuras mais ricas e complexas do tempo português em que viveu. A sua obra é multifacetada e heterogénea. Terá sido, porventura, dos criadores portugueses de sempre, um dos que melhor entendeu o diálogo entre a história e o tempo, entre o ontem e a modernidade. Desde a literatura até às artes plásticas, encontramos nele uma atenção desperta para a compreensão do que herdamos e do que legamos, de quem somos e de que devemos recusar a acomodação. Era o chegar a cada instante pela primeira vez, querer ser o primitivo das novíssimas gerações, abrir horizontes e caminhos novos. Fernando Pessoa notou-o ao tempo do Salão dos Humoristas (1912), daí veio a amizade, o raro tratamento por tu e o convite para o primeiro número d’«Orpheu». «Não recordo ter estado alguma vez com Fernando Pessoa e mais outros. Ou lembro vagamente. Lembro-me apenas de ter estado com ele e mais ninguém connosco. (…) Devo a Fernando Pessoa (repito: pela primeira vez na minha vida) a alegria de ver noutrem a oposição e não o costumado contrário nosso alheio». «Orpheu era uma consequência fatal de determinados portugueses desligando-se dos outros portugueses, porém ligados entre si pela mesma fé na elite de Portugal». Mas Almada recusava a lógica de caixinha, era a dignidade comum que importava: portugueses, sem ser nacionalistas, nem regionalistas, nem indigenistas. «Queríamos apenas o mais difícil dos títulos dos portugueses: sermos portugueses simplesmente». E assim, para a conquista da elite portuguesa, «Orpheu» apresentava um caminho heroico, como primeiro grito moderno que se deu em Portugal: cultura individual, portuguesa e europeia. E, ao dizer individual, era à pessoa humana que Almada se referia - «é puramente espiritual o universal e cada uma das pessoas humanas» - como se atesta em «SW – Sudoeste» (1935). Entre 1934 e 1938, desenha e concebe os belos vitrais para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, graças ao apoio inteligente do Cardeal Cerejeira, que se impôs às fortes resistências conservadoras. Seguem-se as decorações das duas gares marítimas de Lisboa, de uma força e de uma beleza ímpares: em Alcântara, o lirismo e o humor da Nau Catrineta e, na Rocha do Conde de Óbidos, a vivacidade de Lisboa popular, na zona ribeirinha, dos saltimbancos aos batéis: «pinturas da nossa solidão», que José-Augusto França considera ser «a obra-prima da pintura portuguesa da primeira metade século, como também foi declarada no formalismo da sua memória cubista».
O INOVADOR DE «NOME DE GUERRA» Literariamente, é surpreendente como «Nome de Guerra», escrito em 1925, e só publicado em 1938, romance maior do nosso modernismo, continue a passar despercebido (para muitos distraídos), apesar de ser uma obra fundamental não apenas no panorama português. E lá está dito: «se não sabe ver ao longe, tanto lhe faz como não exista o longe, por isso tapa-o». Ao lermos Almada, vemo-lo a anunciar muito do que veio a seguir. Sentimos António Pedro, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, Nuno Bragança, Ruben A. e tudo o mais. E no entanto foi ele solitariamente que terçou armas acreditando num Portugal outro, capaz da ironia e dos olhos bem abertos. Eduardo Lourenço compreende-o bem ao insistir na força crítica e teatral dos mitos e dos sonhos. Não podemos esquecer a diálogo dos bonecos de «Antes de Começar». Aí está a fantástica capacidade de Almada querer recomeçar sempre, como o Antunes de «Nome de Guerra»: «Só não entende o coração quem não sabe escutá-lo… Ele está sempre a contar aquela história por que se espera… aquela hora que existe p’ra além da sabedoria… e que tem a forma simplicíssima dum coração natural! »… Inventem-se de novo as palavras…
Passo por Madrid, vindo de Itália, demoro-me pouco. Parei no Museu do Prado, demorei-me a olhar para o tríptico do "Jardim das Delícias" do Hieronymus van Acken, conhecido por Bosch. O painel da esquerda ("O Jardim do Éden") apresenta várias curiosidades: nos dois terços superiores, a cena idílica de aves e animais vários rodeando pacificamente a "fonte da vida", situada bem ao centro do painel, e cujas águas correntes formam um lago onde, entre outros, um licórnio vem beber. Mas, no topo, um serpentear de morcegos numerosos sai de um monte rochoso e calvo. E, ao nosso lado direito, juntinha ao lago da fonte da vida, eleva-se uma palmeira na qual se enrosca uma serpente, como que a dizer-nos que é essa palmeira (que não é árvore, como sabemos) a tal do conhecimento do bem e do mal... Cá em baixo, uma cena mais inquietante, como se fosse anúncio do pecado original: em redor de um charco, já animais e plantas se devoram.. E, por detrás de Adão, que acaba de acordar do sono que Deus lhe inflingiu para dele tirar Eva - que agora lhe apresenta - um grande cato simboliza a árvore da vida. E sabemos que os catos picam. Ainda no Prado, um quadro de Rubens mostra-nos a tentação original: a serpente que oferece a Eva - que Adão parece sensualmente acariciar - o fruto proíbido, estende-lho num braço e mão de menino de angélico rosto. Aqui, segue-se a tradição mais divulgada: o fruto proíbido é o da macieira. Tal se deve à tradução do livro do Génesis na "vulgata" latina de S. Jerónimo (século IV), onde se lê, por árvore do conhecimento do bem e do mal, "lignum scientiae boni et mali"... Ora acontece que "mali" tanto pode ser o genitivo de "malum", substantivo neutro que significava mal, como do substantivo feminino "malus" ou macieira. Mais curioso ainda é o "malum" neutro vir a dizer também maçã. E há mais: pêssego é "malum persicum", marmelo "malum cydonium", romã "malum punicum", limão "malum felix". Todos estes frutos,mais o figo - porque se, depois do pecado original, Adão e Eva cobriram as púdicas partes com folhas de figueira, seria por estar ali por perto essa árvore que, aliás, surgirá com diversos propósitos nos evangelhos, até naquele episódio em que Jesus seca uma por não lhe ter dado fruto que lhe matasse a sede... - todos esses frutos simbolizaram o proíbido. A maçã, todavia, ganhou o campeonato. Mas, lembrado de Ceres e do que dela te escrevi em Florença - e também por te achar, por vezes, sem aquela dose de paganismo telúrico necessário a uma saudável compreensão do mundo - agarro-me a uma tradição do Talmud judaico: não à do figo ou da vinha, mas à que diz que as crianças não sabem dizer os nomes dos pais enquanto não comerem pão, pois nos cereais está a fonte de todo o conhecimento, que começa pela capacidade de falar e, pela palavra, nomear os seres. Será, pois, o trigo, que nos dá o pão da vida, o tal fruto que Deus nos proibira, até que chegasse a hora da misericórdia, o tempo da reconciliação. Que inesgotavelmente se vai repetindo, em memória da nova aliança, por Jesus Cristo, na partilha do pão da graça entre Deus e os homens todos. Deméter ou Ceres, a Mãe-Terra, reconhece-se pela coroa de espigas. Mas também pelo facho com que desceu a mundos escuros, em busca de Clore-Perséfone ou Flora-Prosérpina, a Primavera, sua filha. Ceres não chorou, como Orfeu descido aos infernos para tentar recuperar Eurídice, uma amante. Sofreu a paixão de um caminho escasso de luz e sem retorno conhecido, para ir buscar a filha, a fim de que, à superfície da terra dos homens, renascessem as flores e os frutos, a esperança. Eis a narrativa mitológica greco-latina de que mais gosto. E porque, por outras palavras e percursos, nos fala da condição humana e seus anseios e dos trabalhos de Deus, que, menino ainda, me contaram, me sinto tanto agora em comunhão universal.