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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM PRINCÍPIO DE OUTONO HÚMIDO…

 

Minha Princesa de mim:

 

O tempo arrefeceu um pouco, mas pouco. Está por cá um princípio de outono húmido, mas sem frio. Sabe-me a África tropical esta noite quieta (penso que gosto dela, falo sempre da noite quieta, quando a apanho). Sozinho neste casarão, à luz solitária desta mesa, escrevo-te de janela aberta sobre os campos que transpiram o vago calor do dia. Ladram cães, como vozes, dessas muitas que não entendemos mas nos trazem uma companheira paz. Também no Japão a senti assim, em qualquer ryokan perdido entre montanhas, depois de a noite ter fundido num campo só dela toda a verdura que eu via (a sugestão é de Fernando Pessoa, que nunca esteve no oriente, a não ser, talvez, quando o nosso Alberto o recitava...) Lia há pouco, para me entreter ou por estranha saudade, Os Contos do Genji, da Murasaki, de que já te falei. Esse enorme romance, o primeiro em toda a história da literatura universal, decorrendo-se por dois milhares e meio de páginas, tem sido comparado, no ocidente, a obras maiores de outras literaturas, como o Don Quijote, o Decameron, ou À la Recherche du Temps Perdu... Com este terá, como observou o Prof. Donald Keene, a mesma perceção do tempo que passa e vai deixando rugas nas belezas antes admiradas e desencantos nos sentimentos outrora possessivos... Prefiro, após repetidas leituras, traduzir Genji Monogatari, não por The Tale of Genji ou Le Dit du Genji , como se intitula nas traduções inglesa e francesa mais autorizadas, mas por Os Contos do Genji. É certo que toda a narrativa gira à volta da mesma personagem apolónica, o Príncipe Genji. Os cenários,os costumes, desejos e enleios, enredos, poemas e anseios, tudo se acorda com a cultura da corte no período Heian,na Kyoto de há mil anos. Mas é ficção. Subtil,muito subtil. Serão Contos, mas não de Hoffmann, serão eróticos, mas não como no Decameron ou em Tom Jones, nem tampouco como o que podemos ler na nossa literatura romântica, amorosa ou libertina. Lembrei-me do Don Juan, de Molina em diante. Parece. Parece e é e não é. Abreviando: o "castigo" de Genji não é o inferno. É o envelhecimento e, concomitantemente, o ser "traído" por uma amante, tal como, com outra, uma das primeiras, parecida com sua falecida mãe, ele "traiu" seu pai. O "castigo" de Genji é a mesma relação à circunstância, só que menos agradável. Toco aqui na percepção japonesa do Eu. Porque Genji não é um burlador, nem o seu desejo se afirma e realiza senão como relação circunstancial. "Conquista" como foi ou será "conquistado". Não é causa, é função. Não tem culpa. Não comanda, é um dado, como os outros. Ocorre-me um exemplo, em registo diferente, desse apagamento do Eu não circunstancial.  Volto a Hisayasu Nakagawa e a Augustin Berque, de quem te falei numa das minhas últimas cartas: Em Vivre l´espace au Japon, A.Berque conta o choque cultural que sofreu quando, ainda principiante em japonês, viu um filme de guerra japonês. Uma jovem enfermeira, apesar do perigo iminente, recusa-se a deixar o seu posto. Porquê?, pergunta-lhe o médico. Ela calava-se, escreve Berque, mas, de repente, disse-lhe, sem olhar para ele : suki desu. Legenda: Eu amo-te. Boa tradução, claríssima: sujeito (eu),verbo (amo), complemento (te). Ora, na frase japonesa não havia nem pronome nem desinência, nem sujeito nem objecto que pudesse indicar quem amava quem. E a mulher nem sequer olhava para o homem! O enunciado nada mais indicava do que a existência de um sentimento de amor algures na cena...  ...Como poderia essa enfermeira ter agido doutro modo? Para significar que o sentimento que a atravessava era irreprimível, que era verdadeiro o seu amor, ela não devia nomear-se: a verdade reside nesse surto espontâneo e natural. O acontecer está no cerne do que eu chamaria existencialismo japonês. Na nossa cultura judeo-cristã, no princípio Deus criou o céu e a terra. Deus agiu, fez, é causa; o mundo é efeito. No Kojiki, ou Crónicas das coisas antigas, escrito no início do período Heian, no século VIII, diz-se: No momento em que o céu e a terra se desenvolveram pela primeira vez, o nome do deus que se fez nos campos dos céus era Ameno Minakanusubii no Kami . Depois veio Takamimusubii no Kami. E depois Kamimusubii no Kami. Esses três deuses são deuses solitários que se criaram e depois se esconderam. Repara, lendo à japonesa, isto é, da direita para a esquerda, que eles são espíritos (kami) de (no)... Como os que se escondem nas rochas, nos lagos, nas árvores, etc, com que, no animismo japonês, os shintoístas se relacionam. Ou os kami que se escondiam nos ventos (kaze) tempestuosos que livraram o Japão da invasão sino-mongólica. Nome (kamikaze) dado depois ao "vendaval" que eram os pilotos suicidas, nos finais da 2ª Grande Guerra ou Guerra do Pacífico. O que me recorda ainda os termos em que o imperador Showa (Hirohito) formula a declaração dessa guerra: Chegámos infelizmente ao ponto em que a guerra rebentou contra os EUA e o Reino Unido, por uma necessidade que não poderia ser de outro modo. Era vontade minha? Voltando aos Contos do Genji,é curioso observar como ele, o Radioso Príncipe, mantém fiéis amizades com as suas ex-amantes. Há aí, talvez, um elemento transcendente às pessoas envolvidas, uma misteriosa relação do masculino ao feminino, como essa atração mútua dos princípios positivo e negativo que, finalmente, gera o movimento real do universo. Aliás, Genji é o filho dilecto do imperador por sua mãe (Kiritsubo-koi) ter sido a esposa preferida daquele, apesar de ter sido, primeiro, sua concubina. O imperador não tomará mais mulher até à que será a sua terceira esposa: Fujitsubo-chugu, tão parecida com a mãe de Genji, que a revive. E será de Genji o fillho (Renzei) que ela "oficialmente" terá do imperador e que a este sucederá... Imagina tu que,sei lá porquê, me lembrei de ir a Le Mythe de Sisyphe do Albert Camus, para saborear o primeiro parágrafo de Le Don Juanisme: «Se amar fosse suficiente, as coisas seriam demasiado simples. Quanto mais amamos, mais se consolida o absurdo. Não é , de modo algum, por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é precisamente porque as ama com igual arrebatamento, e, de cada vez, com todo ele mesmo, que tem de repetir esse dom e esse aprofundamento. Daí que cada uma espere trazer-lhe o que ninguém alguma vez lhe deu. De cada vez elas se enganam profundamente e apenas conseguem fazer-lhe sentir a necessidade dessa repetição. Enfim, exclama uma delas, dei-te o amor! Porque não haveria Don Juan de se rir? Enfim?, responde ele: Enfim, não! Só uma vez mais! Porque se deveria amar raramente para amar muito? Se o nosso querido Alberto  -  não o Camus, mas o português teu cunhado  - aqui descesse agora, ler-me-ia, com aquele riso que lhe alagava os olhos e lhes dava esse brilho tão bondoso à malandrice, um soneto de Luís de Camões:

      No tempo que de Amor viver soía,

      Nem sempre andava ao remo ferrolhado;

      Antes agora livre, agora atado,

      Em várias flamas variamente ardia.

      Que ardesse num só fogo não queria

      O Céu, por que tivesse experimentado

      Que nem mudar as causas ao cuidado

      Mudança na ventura me faria.

      E se algum pouco tempo andava isento,

      Foi como quem co  peso descansou,

      Por tornar a cansar com mais alento.

      Louvado seja Amor em meu tormento,

      Pois pera passatempo seu tomou

      Este meu tão cansado sofrimento!

Nem a Santa Inquisição teve algo a dizer... Mas sabes, Princesa distante, mas de mim sempre, o que penso do amor, procura fiel. Diferentes serão os sujeitos, diversas as circunstâncias, as consciências e as ignorâncias. Mas andamos todos à procura de um misterioso encontro que nos reconheça. Dou-te a mão.

 

          Camilo Maria

Antonio Gamoneda

 

 

Ardem as perdas. Já ardiam

na cabeça da minha mãe. Antes

ardeu a verdade e ardeu

também o meu pensamento. Agora

a minha paixão é a indiferença.

                                 Escuto

na madeira dentes invisíveis

 

                               Antonio Gamoneda

 

Como e porquê ter visto

             intensa e atenta

o ponto central

a enovelada morte

                      desigual

correr?

Vital porção de um calendário

que me convencerá

por fim?

no enevoado rigor

da História, Terra

e Tempo.

                

Teresa Vieira

EVOCAÇÃO DO GRUPO FERNANDO PESSOA NO BRASIL

Publicamos aqui uma fotografia datada de 1962. No Rio de Janeiro, o Grupo Fernando Pessoa reúne com alguns dos mais significativos e representativos escritores brasileiros. Recordemos o que está por de traz deste momento de convivência, mas sobretudo, momento de criação e de intercâmbio artístico e cultural.

 

Em novembro de 1960, o Centro Nacional de Cultura assinala o 25º aniversário da morte de Fernando Pessoa com um conjunto de espetáculos e sessões culturais em colaboração com o Grupo Fernando Pessoa. E desde logo há que assinalar um aspeto peculiar destas comemorações.

 

Em 1935 morre Fernando Pessoa. Na época, ocupava já, mesmo junto do público em geral, uma posição de óbvio e justíssimo prestígio cultural: mas estava longe ainda da profundidade de conhecimento e revelação e análise que hoje, a seu respeito, domina a cultura portuguesa tanto no plano interno como no plano internacional. E isto, sem embargo dos estudos já então em pleno desenvolvimento entre nós, e da repercussão que Pessoa alcançara na época, no Brasil.

 

Mesmo assim: no início da década de 60, a criação do Grupo Fernando Pessoa, no âmbito do CNC e com a marca profunda de Fernando Amado, representou uma antevisão profunda, e de alta qualidade artística, da generalização dos estudos e das evocações pessoanas. E, acrescente-se, numa perspetiva de revelação da dimensão dramática de Fernando Pessoa: não é demais lembrar que, durante décadas, essa dimensão cénico-dramática estava ainda muito concentrada em O Marinheiro - e pouco mais se ia conhecendo…

 

O Grupo Fernando Pessoa surge então como sinal e marca de referência nos 25 anos da morte de Pessoa. Estiveram envolvidos o CNC e a Casa da Comédia. E nesse aspeto, importa assinalar uma vez mais a intervenção criativa de Fernando Amado, ligado a ambas as entidades, que tanta vez se associaram em manifestações culturais. Fernando Amado surge, neste contexto, como elemento dinamizador e aglutinador do movimento comum. E com ele, uma geração de então jovens atores, em grande parte revelados nesse movimento, e que iriam marcar, até hoje, a vida cultural-teatral portuguesa: Glória de Matos, João Ávila, Isabel Ruth, Manuela de Freitas…

 

E ei-los, em 1962, levando O Marinheiro, revelando o Primeiro Fausto e mais adaptações e leituras de Fenando Pessoa ao Brasil, com espetáculos no Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Recife, Olinda, Belo Horizonte, Salvador da Bahia Curitiba., além de espetáculos e intervenções na televisão, já na altura poderosíssima a nível nacional. A repercussão dessa missão cultural portuguesa pode ser ajuizada pela forma com o público e a intelectualidade brasileira recebeu os artistas portugueses, isto numa época em que  as relações culturais e artísticas entre os dois países não eram especialmente relevantes - e sobretudo, no que se refere ao teatro, muito mais significativas de lá para cá ( Maria Della Costa, Cacilda Beker) do que de cá para lá, passada que foi a época de ouro das tournées de Amélia Rey Colaço …

 

Então repare-se na fotografia. No Rio de Janeiro, vemos o Grupo Fernando Pessoa com alguns dos nomes mais significativos, na época e hoje, da arte e da intelectualidade brasileira. Vemos Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Morais, Cecília Meireles com Glória de Matos, João Avila, Isabel Ruth, Norberto Barroca e César Augusto.

 

Voltaremos a este grande momento de intercâmbio cultural luso-brasileiro.

 

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

The wealth wars, 2014

As virtudes hidroterapêuticas do Scottish shower são tão clássicas quanto a masculinidade do kilt. Um duche de água quente e outro de fria estimula o sistema circulatório, robustece a energia vital e dizem até que amplifica a fertilidade. Em vésperas da House of Lords debater o referendo sobre o Yes or No à independência da Scotland, a frente económica apresenta-se com xadrez digno do historical highland dress. — Un homme en kilt est un homme et demi! A um tempo, confirma-se a recuperação da economia: o GDP cresceu 1,9% em 2013, o melhor ano desde o colapso financeiro. Mas a outro tempo, anuncia-se que o Royal Bank of Scotland regista perdas anuais de £8bn a pagar pelos contribuintes. — When the cup is full, carry it even! A sublinhar o invernoso catavento temos o Environment Secretary admoestado pelas gentes de Somerset ainda submersas após as cheias natalícias e Westminster a sugerir à Royal Household melhor aplicação dos recursos públicos no apoio a The Queen’s programme of official duties, senão a abrir palácios aos turistas que há muito pagam as chaves da Tower of London.

A recuperação chegou ou está a caminho? A questão quase ameaça a secular dúvida existencial de Hamlet pela omnipresença. O Shadow Chancellor esteve este sábado na Fabian Society a equacionar a agenda do Labour Party na economia para o próximo parlamento. Com as eleições em 2015, Mr Ed Balls quer balance the books in a fair way. Ou seja: diminuir o défice orçamental e a dívida pública com um mix fiscal que onere os ultra ricos e estimule novo futuro com investimento mais talento. Ao detalhar o programa indica o regresso à 50p tax rate for top earners. O Chancellor of the Exchequer, Rt Hon George Osborne, recusa liminarmente estes cortes na riqueza, para não a afugentar. Logo o Prime Minister declara em assembleia de empresários que é a bad, very bad idea. Sob fogo cerrado, os trabalhistas insistem na fairness de partido pro-business. No entretanto, uma sondagem da YouGov mede o apoio popular à medida: 26% desaprovam e 40% apoiam. O rácio subiu hoje: os Liberal Democrats afastam-se do parceiro governamental e igualmente querem elevar o tributo dos maiores rendimentos a fim de aliviar os demais.

Com 20 milhões de desempregados na European Union, é claríssimo que o rigor financeiro necessita de novos ingredientes na ementa. Mais de cinco anos depois do choque financeiro de 2008, esgotado o feel good factor dos Olympic Games na mesa do último Christmas, a debilidade da recuperação só pode  preocupar. Quanto à intervenção de Mr Balls nos vizinhos fabianos, a reter são as velhas ideias em torno da talentocracia. Só através de salto na inovação, o UK e o West podem ambicionar retorno à prosperidade perdida. Com o devido cumprimento a Mr Joseph Schumpeter, a deliberate agrarian, sobre a destruição criativa estamos entendidos face aos campos alagados de South West England. Aliás: Alguém por aí leu o ancient Lucius Moderatus Columella e o seu De Re Rustica?

Thomas Jefferson, que toda a vida se debateu com difícil pagamento das faturas em Monticello, lega vasta reflexão sobre os desequilíbrios no tesouro. Em carta a Samuel Kercheval, de 1816, nota que “[with the decline of society] begins, indeed, the bellum omnium in omnia [war of all against all], which some philosophers observing to be so general in this world, have mistaken it for the natural, instead of the abusive state of man. And the fore horse of this frightful team is public debt. Taxation follows that, and in its train wretchedness and oppression." As preocupações deste founding father do moderno republicanismo com o crédito só cessam na morte com a transação da propriedade. O neto esclarece no anúncio de venda que o montante das suas dívidas acendera a $107,000 de dólares. Algo como $1,5 milhões, decerto acumulados ao longo de vivência com padrões diversos da frugalidade de HM Elisabeth II. – The question is where to put the principles and the interests.

 

St James, 28st January

 

Very sincerely yours,

 

V.

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins
de 27 de janeiro a 2 de fevereiro 2014

 

«La Littérature en Péril» de Tzvetan Todorov (Flammarion, 2007) é um alerta contra a perigosa rutura entre a literatura e a vida, a criação e a humanidade. Em diversos momentos desta obra, o ensaísta franco-búlgaro recorda-nos Dostoievski e o sofrimento das suas personagens – e considera que é a compreensão da realidade humana, mais do que as análises formais e teóricas, que nos aproximará dos outros e de nós mesmos, como singularidades irrepetíveis em busca da dignidade.

 

 

UM DEBATE NECESSÁRIO

Há dias, numa iniciativa idealizada por Vasco Graça Moura e concretizada por Helena Buescu e António Carlos Cortez, no CCB, falou-se da «urgência da literatura» como responsabilidade educativa. O debate foi sereno, como deve ser a reflexão sobre um tema tão sério como este da defesa da língua portuguesa ou da exigência na sua aprendizagem. E não esquecemos o que Vítor Aguiar e Silva disse: «a língua portuguesa é a mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal». É verdade, mas tal obriga-nos a especiais responsabilidades no culto do bom domínio do idioma, na sua preservação e na respetiva afirmação no mundo dos saberes. E Mário de Carvalho trouxe-nos a oportuníssima recordação de António Ferreira, no seu louvor à língua, na célebre carta a Pero Andrade Caminha: «Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / A portuguesa língua, e já onde for / Senhora vá de si soberba, e altiva. / Se téqui esteve baixa, e sem louvor, / culpa é dos que a mal exercitaram: / Esquecimento nosso, e desamor». Falar bem a língua é um ato de cidadania. Não há nitidez de espírito, sem ideias claras e distintas. Não há conhecimento sem contacto com os autores e com os textos originais. E, infelizmente, assiste-se ao uso e abuso dos resumos e simplificações – ou à tentação de confundir comunicação com mera descrição jornalística ou linguagem comercial. Num tempo de multiplicação de informações, chegamos ao estranho paradoxo de nos satisfazermos com mensagens rápidas e sincopadas, que pretendem condicionar as opiniões, pondo de lado a complexidade e a necessidade de explicar, de demonstrar, de justificar – formulando juízos primários. Perante temas e problemas cada vez mais complexos, deparamo-nos com comentários rápidos e incapazes de considerar o essencial. Montaigne, na entrada da sua torre, perguntava apenas: «que sais-je?» - e aí encerrava a exigência de um caminho muito árduo para conhecer e compreender. Por isso, dizia que mais valia uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia… E aqui está a necessidade de cultivar especialmente o pensamento. Afinal, quanto menos se ler menos se há de pensar. Eis-nos perante uma condição de liberdade. E qual o efeito das caricaturas do conhecimento e da aprendizagem, como se a simplificação e a infantilização fossem o caminho? O resultado é a pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem nas exposições, a mistura de argumentos e conclusões e a indigência das ideias. Tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença relativamente ao aprender e ao dizer. Lembramo-nos do que Vieira afirma no Sermão da Sexagésima: «(O lavrador evangélico) semeou  uma semente só, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade não podem colher cousa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para o vento, outro assunto para outro vento, que se há de colher senão vento?».

 

LÍNGUA. LEITURA E LITERATURA

Impõe-se, pois, saber relacionar saberes básicos. Estes pressupõem competências e capacidade para saber falar, relacionar, interpretar, discorrer, demonstrar, justificar, ponderar os diferentes valores e saber representar o conhecimento. Pico della Mirandola considerava que as «humanidades» iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico – nada do que é humano pode ser-nos estranho. É, pois, indispensável aprender a ler o mundo que nos cerca nas suas diferentes expressões, a literatura começou por partir da oralidade (os grandes poetas da Antiguidade construíram provavelmente assim as suas obras – a «Ilíada» ou a «Odisseia»), hoje herdámos a paixão do livro por força da maravilhosa descoberta dos carateres móveis de Gutemberg, mas só há leitura fecunda se houver prazer nela, a leitura deve ser aprendida como exercício de liberdade e de escolha, tem de haver capacidade de relacionar cada livro com o que se conhece e leu anteriormente, e temos ainda de entender a emergência de novos meios de comunicar - o cinema, a televisão, a internet, com que temos de aprender a lidar. Eles próprios podem favorecer a leitura. Tzvetan Todorov fala-nos da «Literatura em Perigo», e afirma: «Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende tornar-se-á não um especialista de análise literária, mas um conhecedor do ser humano». É assim o mundo da vida que está em causa, o que permite dizer que a atenção e a capacidade de perceber é que importam. Muitos discutem o futuro do livro. Contudo, ele não desaparecerá. Importa, sim, compreender que haverá novas formas de lidar com os livros. Como instrumentos estão a sofrer alterações significativas, tal como acontece na imprensa escrita. A motivação para a leitura ganhará, porém, novos meios e adeptos. Hoje lê-se mais do que há meio século, até pelo alargamento das habilitações escolares da população, mas há o risco de se ler pior, ainda que, paradoxalmente, os melhores leitores sejam melhores… Há transformações profundas e perigos indiscutíveis. Daí devermos cuidar dos temas urgentes e sensíveis da educação, que indico telegraficamente: temos de melhorar o ensino da língua materna (na leitura e na escrita), sem um bom domínio da língua não poderemos aprender bem idiomas estrangeiros (indispensáveis para a globalização), temos de ser mais exigentes no estudo da história (no entendimento do tempo, da diacronia e da sincronia), da geografia, da matemática e dos conhecimentos científicos e temos de apoiar seriamente o ensino artístico. E se queremos riqueza vocabular, ordenação de argumentos, rigor na exposição e desenvolvimento das ideias – precisamos de cultivar a comunicação e a palavra, de exercitar a memória (ler, repetir, representar a poesia e o teatro), de incentivar a criatividade. Almada Negreiros dizia: «o teatro é o escaparate de todas as artes. Todas as artes são todas as peças da mesma coisa». Educação, cultura e ciência estão intimamente ligados. Língua, leitura e literatura têm de andar a par. Urge compreender um texto, lendo-o no original; relacionar as diversas formas de criação artística, representar poética e simbolicamente as ações, as virtudes, as misérias e os sonhos. Alberto Lacerda tinha razão ao dizer: «esta língua / é minha Índia constante / minha núpcia ininterrupta / meu amor para sempre / minha libertinagem / minha eterna / virgindade» («Oferenda», I).

 

Guilherme d'Oliveira Martins

AINDA EU SOU NA MINHA CIRCUNSTÂNCIA…

 

Minha Princesa de mim:

 

O tempo não tem ajudado, aumentam as dores que me tolhem. Alarga-se-me o olhar pelos campos que se alagam. No cinzento das águas caídas, que sobre os campos ficam, quietas até que nova chuva as mova, tornam-se, penso, grisalhos também os meus olhos. Hoje, o céu e a terra têm a mesma cor. Será melancólico e inútil este sentimento, lembrança apenas de brincadeiras de criança, quando a nossa prima Teresa apostava que adivinharia sempre a cor dos meus olhos: mais azuis se os levantasse ao céu, mais verdes se gozassem a terra... Em bilhetes de identidade me registaram olhos de cor azul, verde ou cinzenta. Por isso me ative a pensar que os nossos olhos serão da cor de quem neles se vê. E que Don Juan eu teria sido se os meus fossem arco-íris! E assim sendo, se na altura houvesse televisão para todos, talvez eu tivesse sido uma dessas estrelas que de estrela nada têm!... Pois cada estrela vive só da sua própria, única, luz. E cada planeta tem a sua cor. No espaço infinito, só os distinguimos porque os procuramos, só os reconhecemos porque lhes démos um nome. O Petit Prince tinha o seu planeta, de nome algébrico. Eu tenho uma estrela, onde não vivo mas sonharia viver. Chamo-a Minha Princesa de Mim. É um segredo cósmico: não chego lá, não posso viver nela; mas ela habita-me, é essa luz que me acende a lareira do coração. Não sei se pensa: as mulheres pensarão? Não sei se cura: será remédio a religião? Para que não me repitas que não gosto de dançar, acabo de dar uns passos (de fox trot? de cha cha cha?, sei lá,com esta ciática idade seriam ché ché ché gágá! ). Mas foi, tão só, para voltar ao Nishitani, lembras-te? Recordo bem ele dizer que a salvação, salvar alguém, é assunto para a religião. E a religião não é pensamento. O pensamento, pensar, é muito mais prático, socialmente prático. O pensamento serve para abrir uma possibilidade de viver na sociedade, viver nas relações com os outros, num campo aberto, não num círculo fechado, numa comunidade fechada. A salvação espiritual, a salvação religiosa, é uma satisfação num meio fechado, num mundo separado, comunitariamente reagrupado, mas essa comunidade é restrita. Isso facultará então um certo conforto à existência, mas, no fundo, funciona como rejeição. Pensar é muito mais aberto. Pensar é arriscar. Não é, portanto, uma salvação, não é safar as pessoas de sofrimentos ou becos. Antes será fazê-las caminhar de modo diferente, ajudá-las a encontrar um caminho...um caminho de quando em vez mais perigoso... Neste discorrer de Nishitani, algo me alumia a busca de outras razões para a incompreensão da mensagem cristã pelo poder japonês no sec. XVI/XVII, para além das políticas. Ou da propensão habitual das gentes para o pacífico sincretismo religioso e filosófico: não sei se o taoísmo chino terá, vindo do Celeste Império nos primeiros séculos do nosso primeiro milénio, "organizado", para as elites autóctones, representações do animismo shintoísta indígena; mas sei que este sobreviveu numa amálgama com o budismo que, pela Coreia, lá terá chegado no sec. VII. Com códigos de pensamento e de conduta confucionistas. Se o cansaço da mão que me segura a caneta  - ia escrever a pena, mas pena, hoje, quer dizer desgosto  -  me permitisse continuar , iria por aí fora... Mas quedar-se-á o tema, para outra carta. Por esta, percorrerei, com o conforto possível da mão que tenho, a actualidade dessa intuição do meu amigo japonês: porque pensará ele que o recurso à religião é sectário, como um conforto oposto à vida da gente? Será mais refúgio do que procura? É curioso verificar como um pensador japonês, que chegou a dizer que, para o seu desterro numa ilha do sul, levaria apenas Dostoievsky e a Bíblia, faz estas afirmações: No cristianismo, Jesus é uma figura médica. É alguém que salva, que dá um remédio, é um médico. Deus é médico. Mas um pensador não é um médico...  ...Pensar não é para encontrar soluções...  ...Quando se fala do pensamento como algo que tem um objectivo para realizar,eu não tenho a certeza de que haja um objectivo ou um fim para o pensamento. No discurso ocidental, que tem por hábito enquadrar-se sempre na dupla postulação do sujeito e do objecto,quando se fala de pensamento propõe-se um objectivo para um sujeito pensante, um fim para esse sujeito pensante na sua práctica de pensar. Mas talvez pensar não tenha objectivo. Pensar é um processo de vida...  ...Desde que estou aí, ou desde que fui apanhado na rede comunicacional pela palavra ,já falo, já penso. E não sou responsável por essas coisas. Em certo sentido,talvez,os Ocidentais diriam que essa é uma situação de abandono. Mas respondo: quem nos abandonou? Não digo que é uma situação de abandono. O abandono é uma noção do monoteísmo. Todos os monoteísmos começam pela verificação da situação original da humanidade como abandonada. - Os judeus sentem-se abandonados, exilados no deserto. Jesus abandonado, mesmo por Deus. Maomé é um órfão,enjeitado na Terra... -  A nossa existência na terra não é coisa nossa, é sem intervenção da nossa vontade. Portanto, estar aqui é, antes de mais, passivo. Mas não vejo razão para que se tome essa situação como um abandono. Sempre fomos já postos no caminho de pensar, de falar, e esse é o destino dos vivos falantes. E portanto não temos qualquer relação com o nosso ponto de partida,quero dizer que o nosso ponto de partida foi sempre já efetuado. Pisamos assim terrenos onde nem sempre é fácil encontrar caminhos confluentes. Este homem descobre-se como existente, na condição humana, que é a de todos,como dado de facto,e o exercício de pensar surge-lhe como procura das relações de si com a sua circunstância cósmica, ecológica, humana e, quiçá, transcendente. Mas aqueloutro descobre-se abandonado, e vai à procura do remédio que o alivie ou cure esse enjeitamento. Encontra-se com o conforto que lhe traz uma crença em algo ou alguém que o acolha. E com outros comungará na mesma fé, e se reunirá numa comunidade que tenderá a preservar essa aquisição. Então, simultaneamente, surgirão aí a tentação da consolidação do adquirido  -  com a concomitante vigilância sobre o que possa parecer heresia  -  e também o desejo de proselitismo, de afirmação universal da bondade encontrada e sentida... A tentação do encerramento é poderosa, vocaciona ao ensimesmamento e à rejeição do que, por ser estranho, será talvez ou certamente adverso e perigoso. Já o desejo de divulgar o que se crê verdadeiro e bom poderá seguir dois caminhos diferentes: o da afirmação erga omnes da crença possuída, procurando assimilar-se os outros mesmo pela conquista (vg. cruzadas ou djihad), ou o da partilha pelo diálogo, pela vontade de se percorrer um caminho em comum, em que ambas as partes vão conversando e descobrindo-se, cada uma sendo o que é, ambas sabendo que o misterioso olhar de Deus se alegrará, acima de tudo com a fraternidade. Só aqui o homem religioso poderá encontrar-se com o pensador, pensandossentindo o trilho do relacionar-se. Eu, que, acredito, sou um homem de fé, creio que Deus misericordioso nos espera na porta final desse esforço. Pessoalmente, penso que foi no século XIII que, apesar de todas as limitações do tempo e do modo  -  e sem menosprezo pelos progressos subsequentes, também com percalços e fraquezas  -  a civilização europeia se desenhou, na economia, na sociedade, na ciência, na polis. A Suma Teológica de S.Tomás de Aquino é uma síntese do pensamento filosófico e teológico desse tempo. É, em muitos pontos, hoje em dia, um tratado datado. Noutros não será. Sobretudo é um monumento de homenagem ao diálogo entre a fé e a razão: um frade mendicante, dominicano, procurou a síntese da tradição judaica, evangélica e patrística da cultura cristã com o racionalismo grego que descobrira através da herança dos muçulmanos Avicena e Averroes. Pensar é relacionarmo-nos. O dia continua cinzento. Mas sabemos que o céu está para além da nuvem. Dou-te a mão.

        Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

EU SOU NA MINHA CIRCUNSTÂNCIA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Osamu Nishitani (poderia traduzir-te este apelido por Nishi=Oeste, Tani=Vale,o que daria, p.ex., Osamu do Vale Ocidental) é um filósofo japonês que terá dito, certo dia, a um francês: O pensamento não salva. O ocidental (o francês) não percebeu o que o oriental, apesar de Vale do Oeste, quis dizer. Para ele, cartesiano (?), representar mentalmente as coisas, formular clarezas, seria a nossa salvação do nevoeiro indistinto, logos surgindo do caos... Em resposta, o japonês sorriu (riu-se?) e acrescentou : Digo que o pensamento não salva, porque o pensamento ,como a sabedoria, não é remédio para qualquer doença mental ou espiritual. Não é um medicamento. De vez em quando, pensaremos por motivação muito pessoal, mas não pensamos em busca de uma solução para a nossa própria doença, para o nosso próprio problema. Penso para organizar a relação entre mim e os outros, ou a sociedade. Pensar é construir uma passarela ou dar um novo passo entre o que consideramos privado (nosso) e o que julgamos social, as nossas relações com os outros. Não se trata, portanto, de um remédio. Ensino, penso, volto a ensinar, sim, mas não é para salvar os estudantes, não é para salvar as pessoas, não é para medicar as pessoas que sofrem... Antes de continuar a falar-te dessa conversa com o Nishitani  - que nos conduzirá a uma reflexão sobre a religião  -  quero ligar o pensamento dele, acima afirmado, com um texto de outro filósofo japonês contemporâneo, professor na Universidade de Kyoto e estudioso do Iluminismo francês (sobretudo Diderot e Rousseau), Hisayasu Nakagawa. Sob o título Lococentrisme, começa assim: Para os Europeus, o "eu" é uma entidade a priori que transcende todas as circunstâncias: tudo começa por "eu", mesmo se, como diz Pascal, "o eu seja odioso". Na língua japonesa não é assim, o que leva Augustin Berque a escrever: A primeira pessoa, ou seja, o sujeito existencial, não existe em si mesma, mas enquanto elemento da relação contingente que se instaura numa dada cena. E o mesmo Berque cita um linguista japonês,Tadao Suzuki: "O eu dos japoneses encontra-se num estado de indefinição, por assim dizer, por falta de coordenadas, enquanto não surgir um parceiro concreto cuja exacta natureza o locutor possa determinar... Ajudar-te-á a perceberes isto uma história divertida, sucedida, à minha frente, a um amigo europeu  - que começava a desembaraçar-se na fala do japonês  -  certa noite em que jantávamos com um acolhedor casal nipónico, em casa destes. Querendo agradecer o sumptuoso agapé, o meu amigo dirigiu-se ao dono da casa,  dizendo: Agradeço a hospitalidade e este magnífico jantar preparado pela Kanai! O anfitrião, ruborizado de cólera, vociferou que a Kanai era dele! Na verdade, o meu compatriota não sabia ainda que Kanai significa minha mulher (literalmente, mulher de dentro)... Se quero referir-me à mulher de outro, direi Okusan ao marido e, se o apelido deste, por exemplo, for Sakai, dirigir- me-ei à senhora dizendo Sakai-san... Ela é segundo a sua relação aos outros. Nakagawa refere outro exemplo ilustrativo: "Suponham que um garoto está com medo de um cão. Para o sossegar, aproximar-me-ei dele e em francês dir-lhe-ia ´não temas, não chores,eu estou aqui contigo´; mas em japonês seria ´não temas,não chores,o teu paizinho (ojisan) está contigo´. .. O eu é definido em função da circunstância,pela sua relação ao outro: a sua validade é ocasional, ao contrário do que se pratica nas línguas europeias, onde a identidade se afirma independentemente da situação. Talvez na outra vida, naquela além desta, eu venha a perceber como, em tantos anos que estive no Japão, sempre me entendi no convívio com eles. Porque sei, isso sim, que sou afirmativo, sempre me fui idêntico. E eles foram-me aturando, deram-me testemunhos de sincera simpatia e amizade que, mais de uma década depois da minha partida, perduram e se manifestam. Sinto que terei, muitas vezes, parecido impositivo, no sentido de me definir por mim. Até, talvez, quiçá malgré moi, tivesse sido arrogante. E pensossinto, hoje velhote, que terão sido eles a entender-me melhor do que eu a eles. Porque pensaram em mim, ou pensaram na aparição que fui, para saberem como relacionar-se comigo. Se eu pensar assim de relacionamentos de europeus, ou ocidentais, comigo, concluirei que são interesseiros, hipócritas... Mas a tal conclusão não chego,não posso chegar, sobre os meus amigos nipónicos... Talvez,e quiçá ainda malgré moi,esse movimento de aproximação a mim também se deva a terem percebido que a minha afirmação de mim fosse uma senha de reconhecimento que lhes identificasse uma circunstância como vocação da identificação deles. Certo, certo, é que, feitos amigos, mais fiéis nunca encontrei na vida. Pareceram-me desnecessariamente intermináveis as primeiras reuniões de negócios com japoneses: começavam pelo nemawashi (partir pedra?) e repetiam-se os termos das posições de cada parte, como das concessões e acordos que se iam fazendo. No fim  -  quando nessa hora se acabavam  - repetia-se o consenso. Até que tudo o que por fora tivesse sido acordado estivesse já comungado no pensarsentir de todos. A mais das vezes, íamos celebrar jantando num restaurante japonês a preceito, em sala reservada. Se entretanto ali levassem papéis para assinatura, liam-se, manifestava-se o acordo e fazia-se uma saúde. Na minha primeira vez, Sakai-san (o marido) disse-me: let´s read the documents and confirm everything,before we get intoxicated! Daí por diante, estaríamos numa festa de amigos. E na parte japonesa, se, talvez etilizado, um subordinado atirasse uma piada ao chefe, culpa alguma lhe seria atribuída nem censura feita. Mudara o cenário e, com ele, o papel dos circunstantes. Na manhã seguinte, todos regressariam à forma. Paro aqui, mais tenho para dizer e contar-te. Voltaremos aos filósofos e à ideia de religião. Foi bom falar contigo. Dou-te a mão,

            Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

Antonio Gamoneda

 

Prendemo-nos por raízes a seres que connosco se cruzam na vida

afirma Luni olhando-o no fundo dos olhos

e bem sei o quanto a prisão persiste mesmo quando nos afastamos deles. Não sei dizer-te se se nos criam fantasias ou se são eles que em nós se perseguem. Ficam-nos com as ilhas, visitam-nos os pensamentos mesmo quando estes brincam largados do leme.

E também sei que para a tua liberdade bastam as minhas asas

lo que estaba dormido sobre tu alma y para que no estuvieras triste. Que dolor tu tristeza my dulce amor! Triste ternura mia, qué te haces de repente?

Dou-te, dou-te a mão a ti que me chegas ao barco pela água e assente numa flor que me faz não te ter parecido com ninguém.

Gamoneda, distância minha, teu processo de velejar?

Guárdate de quien se alimenta con el perfume del suicídio, guárdate de mí porque la negación ha tocado mi cuerpo.Tu alma está fatigada: pero hablas a dioses extinguidos. Não há semelhança em ti…

e a pureza é a tua enfermidade.

Ah !, por nenhum sítio me escutes, o meu amor por ti recresce, meu risco de humana vida, meu oculto vir à vida sem ser livre. O que fica para além está para surgir

e já não tenho tempo.

Tudo cessa e tudo volta em relações que ligam mães e filhos que se amam na violência de donos e escravos. Enfim que me não ouças, pois parece-me que te falo que os dias são sempre de grandes traições.

Yo vi la luz de la inutilidad.Que hora es esta?

Viagem, Antonio é ainda a hora da viagem; falo daquela que nos resta e na qual talvez acreditar seja um apaziguar da vida verdadeira.

Mas inclemente, algo proibido em mim é mar de novo, é périplo do beijo-bússula

natureza na hora da partida

quando só teus braços me acolhem num quando em vez

fruto foste

milagre sem naufrágio até eu sentir…

 

Teresa Vieira

Janeiro 2014

Sec.XXI

LONDON LETTERS

A flag victory, 2014

A matéria heráldica é algo mais que delicado, é motivo em batalha. Um traço desproporcionado na posição e composição do azul, branco e vermelho basta para justificar acesa disputa em solo constitucional. — Oh-là-là. Ferrer la mule et encore garder le mulet! Segundo a imprensa matinal, o HM Government derreteu "a ‘petty’ piece of European Union red tape“. Nada diverso que a remoção do estandarte estrelado nos edifícios públicos. — Like the less a statesman amounts to, the more he loves the flag! O retrato não é ainda integralmente percetível quanto ao negociado e obtido, pois Brussels nega existir tal obrigação. Temo até desconhecer qual das faces da diplomática moeda melhor revela o valor real do soberanismo. Assim: Valham St George e St Andrew, St David e St Patrick.

Eric Pickles é um energético old tory de Wessex, terra de Alfred The Great, saxões e gente livre. Na gene contam a resistência a vikings e outros audazes que ousaram pé nas costas do sudoeste, aqui emergindo a fileira defensiva dos burhs, depois burghs ou boroughs. O Westseaxna rīce e as básicas unidades políticas de England formam o red dragon no coração da Union Jack, que flutua na linha do horizonte e nos postes do Mall. São também um chão fértil para archaeologists — and, also metal-detectorists. Em 2010 David Cameron escolhe o seu MP para o Department for Communities and Local Government. Algures desde então o RH Secretary patrocina curioso documento oficial intitulado Flying flags e recupera a tradição bandeirante nos historical counties, que cobrem o território de Cornwall a Kent, de Pembrokeshire a Yorkshire e Orkney. Agora uns quantos há que apoiam Mr Pickles para futuro UK Prime Minister após remeter o símbolo azul das estrelas para a cave do DCLG, porque por lá existe “spare room.” (—Pardon!?)

Vistas as coisas, a meses do próximo presidente da Comission sair da Germany de Frau Merkel, por estes dias até que o European Parliament anda ocupado com pios inquéritos sobre a Troyka nos países intervencionados da Eurozone e ainda em nobre alinhamento de votos em torno do wildlife crime. Pelas palavras reportadas sobre o statement na House of Commons e a onda de comentários a rolar em Westminster, porém, a iniciativa tem sabor armstrongiano em certos palatos. Daí a nova glória de Wessex merecer citação no Hansard: “Moving forward, this burdensome law to fly the EU flag has now gone. (…) This small step shows our nation can and should claim powers back from Brussels."

As linhas locais do debate europeu têm amiúde trincheiras emotivas que uma desastrada gestão política no continente diariamente aprofundam. Também as rudimenta clássicas ensinam as táticas do divide to rule mesmo antes da deriva imperialista cessada nos idos de March. Reverter  a presente desunião arrisca maior dificuldade que mimosos soberanistas mais a bandeira na lapela. O corte seletivo ou o tom furioso na emigração mostram rudeza na rota para o Brexit referendum, mas a Pickles’ parade denota o grau a que o argumentário declina. Soldado experiente em pontes, Sir Winston Churchill nunca negligenciou elementar lição à sua hoste: — “When you have to kill a man it costs nothing to be polite.”

 

St James, 21st January

 

Very sincerely yours,

 

V

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins
de 20 a 26 de janeiro 2014

 

«Documentos Políticos» da autoria de António Alçada Baptista (Morais, 1970) é um precioso conjunto de textos históricos sobre a participação política do escritor como candidato da oposição às eleições anteriores a 1974. «Não estamos numa sociedade democrática (diz-nos ele), mas não podemos honestamente desconhecer que em Portugal, foram e são agora possíveis, por iniciativa do próprio governo atividades e situações que não são possíveis nos países totalitários». O autor fala de uma «sociedade semicomplacente». Havia a procura de uma transição gradual, que se revelou impossível. A releitura dos textos merece ser feita, para compreendermos o que faltou fazer…

 

 

UM TESTEMUNHO DECISIVO

A importância da vida e obra de António Alçada Baptista tem a ver com o contributo da sua ação na transição democrática portuguesa. Recorde-se que, em 1945, com o fim da guerra, houve quem pensasses que os aliados iriam pressionar os países ibéricos no sentido da democracia e do pluralismo. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram entre os membros da Aliança Atlântica receios e cautelas especiais, que se traduziram na manutenção dos regimes peninsulares. A «neutralidade colaborante» portuguesa do final do conflito mundial, apesar de todas as ambiguidades, serviu para legitimar «de facto» a continuidade de Salazar. As esperanças alimentadas em 1945 foram diversificadas – desde os republicanos da oposição tradicional moderada até ao Partido Comunista, passando pela pequena oposição monárquica, que julgou ver então uma possibilidade de mudança de regime (contando com a antiga ambiguidade do Presidente do Conselho). No entanto, depressa se percebeu que tudo ficaria na mesma, apesar de equívocos terminológicos, sem consequências práticas, que levariam Salazar a falar de «democracia orgânica» e de «eleições livres como na livre Inglaterra». Alguns católicos (em número muito reduzido, como Francisco Veloso, o Padre Joaquim Alves Correia, Sebastião José de Carvalho e José Vieira da Luz) optaram por alinhar no MUD (Movimento de Unidade Democrática). No entanto, as limitações do momento levaram esses católicos inconformistas a optar depois sobretudo pela intervenção social (como aconteceu com o antigo deputado da União Nacional, cuja ação na Ação Católica Operária tinha sido drasticamente limitada – o Padre Abel Varzim). O caso do Centro Nacional de Cultura (criado em 1945) é um exemplo que merece referência, como demonstração dessa ação informal. Nascido por iniciativa de jovens monárquicos, que queriam aproveitar as ambiguidades sobre a natureza futura do regime, foi, a pouco e pouco, evoluindo com uma crescente influência quer de intelectuais da chamada «filosofia portuguesa» (como Afonso Botelho) quer de católicos críticos, que antecipavam a tendência de abertura que viria a concretizar-se no Concílio Vaticano II. O certo é que, entre 1945 e 1958, sente-se uma evolução no sentido de integrar progressivamente os católicos numa transição centrada numa abertura gradual mas audaciosa do sistema constitucional. A oposição republicana alimentava no seu seio contradições significativas, que o tempo agravaria, em especial no domínio da política ultramarina. Afinal, a República fora criada na sequência do Ultimatum inglês e a memória desse ultraje estava ainda presente na abordagem do tema colonial pela velha guarda do reviralho. O Partido Comunista beneficiava da conjuntura internacional da guerra fria e tendia (até pelo reconhecimento implícito da situação) a afirmar-se como a força mais significativa da oposição. Note-se que a posição da Igreja relativamente à autodeterminação dos povos colonizados evoluiria muito (na linha do que Mounier dissera vem «L’Éveil de l’Afrique Noire»), até como condição de consolidar a sua posição do terceiro mundo. Em 1958, a transformação política mais importante que se registou foi o início do canto do cisne da «frente nacional» que sustentava o Estado Novo, em que as Forças Armadas e a Igreja desempenhavam um papel essencial. E o certo é que esses apoios irão ser postos em causa definitivamente. E se usamos a palavra «definitivamente», tal tem de ser interpretado à luz de uma tendência gradual, com momentos de evolução lenta, alternando com outros mais rápidos (como na eclosão da guerra colonial em 1961 ou nas crises estudantis). Se falamos de 1958, referimo-nos à candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado e ao memorando enviado pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes a Oliveira Salazar – que irão contribuir para que a «frente nacional» seja fortemente abalada. Henrique Galvão e António Sérgio, duas personalidades provindas de horizontes antagónicos (um, do grupo de militares que implantou a ditadura militar em 28 de maio de 1926, braço direito de Salazar na Emissora Nacional; e o outro, prestigiado intelectual da renovação republicana, referência da «Seara Nova»), que se tinham encontrado na oposição ao Estado Novo, convergiram na defesa de que o Estado Novo apenas poderia ser mortalmente atingido se os seus apoios fundamentais fossem abalados, a partir de dentro. Daí a candidatura de Humberto Delgado, que o PCP não apoiou num primeiro momento, e que tomaria uma dinâmica imparável, o que obrigaria os comunistas e mudar de atitude, desistindo do seu candidato Arlindo Vicente. No caso da Igreja Católica, a atitude do regime face a D. António Ferreira Gomes, impedindo-o de regressar ao Porto (apesar de continuar a ter a dignidade episcopal), torná-lo-á uma vítima e um dos símbolos do «aggiornamento» do Concílio Vaticano II, no que este visava superar o eurocentrismo e assumir a compreensão dos «sinais dos tempos» (que a encíclica «Pacem in Terris» e a constituição «Gaudium et Spes» enfatizam).

 

O PAPEL DA LIVRARIA MORAES

António Alçada Baptista lançou exatamente em 1958 o projeto renovador da Livraria Moraes, que acompanhará as profundas mudanças que se verificavam e anunciavam. Tratou-se de criar um movimento de opinião centrado em leigos católicos (com apoio de alguns clérigos) capaz de seguir e concretizar o programa de Emmanuel Mounier de unir católicos e não católicos no combate contra a «desordem estabelecida», que o mesmo seria dizer, romper com a cumplicidade da Igreja Católica em relação ao regime de Salazar. Assim, ao contrário do que muitas vezes se pretende, a ideia fundamental de António Alçada Baptista não tem a ver com a criação de um Partido Democrata-Cristão. Para o desmentir, basta ler-se atentamente os textos publicados nas coleções «O Tempo e o Modo» e «Círculo do Humanismo Cristão». E percebe-se que está em causa algo de muito diferente – o que altera totalmente a ideia de que Alçada Baptista viu derrotado o seu projeto político. O que AAB desejava era encontrar uma convergência de movimentos e opiniões que permitisse uma transição pacífica de contornos abertos e cosmopolitas, segundo a lógica das democracias ocidentais. A ligação ao Congresso para a Liberdade da Cultura (e o forte papel desempenhado por Pierre Emmanuel) é um sinal dessa orientação. Trata-se de tornar ativo, em Portugal, um grupo de intelectuais sem vocação partidária ou até cristã. Do mesmo modo, a ideia, não concretizada de «O Pacto», influenciada pela comunidade de Mounier nos arredores de Paris, também nada tem a ver com um movimento político. É certo que, aquando da fundação de «O Tempo e o Modo», Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio participam. E o futuro fundador do Partido Socialista pretendia que AAB fosse a personalidade aglutinadora de uma corrente política democrata-cristã – no entanto esse entendimento deparava com a posição contrária do próprio António Alçada Baptista e da maioria dos seus companheiros (para quem não deveria haver uma política cristã, mas cristãos livres, sem movimentos confessionais, na política).

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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