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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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É TÃO BOM SER PEQUENINO…

 

Minha Princesa de mim:

Lembro-me da casa dos nossos avós, em Bruxelas, éramos três pequeninos, tu e a tua irmã... e eu! Os nossos quartos ficavam no 3º piso, os das criadas no 4º. No 2º se recolhiam à noite e pela manhã, os avós e nossos pais e tios. O 1º era uma sucessão de salas várias, entre as quais aquele santuário: gabinete de trabalho e biblioteca imensa do avô Camilo. Aí, o "santo dos santos", para mim, era uma caixa grande, posta sobre uma consola, e vizinha de uma bandeja onde se alinhavam cálices e uma cristalina garrafa de vinho do Porto. Caixa fechada sempre, mas eu sabia a gaveta onde o avô guardava a chave... Em noites de jantar de pessoas crescidas, com gente de fora, já nós tínhamos comido na copa e subido ao desterro noturno, eu não adormecia. Esperava que um desejo curioso me impelisse a calçar dois pares de meias grossas que me silenciassem os passos, e me fizesse descer as escadas que conduziam ao mundo proíbido dos grandes . Escondia-me num vão de parede, onde assim ocultos também ficavam os escadotes de trepar às estantes altas. Daí me esgueirava e sorrateiramente roubava un habano e repunha a tal chave no sítio certo. E quando, findo o jantar, as senhoras se animavam com chás servidos numa saleta mais distante e os cavalheiros acendiam os seus objectos de fumo no fumoir  vizinho ao meu esconderijo, aí me quedava, de ouvido em atenta escuta e charuto apagado na boca, silenciosamente encostado à porta que, fechada, me revelava conversas que eu reputava de altíssimas... Não terei aprendido muito,talvez nem sequer nada. Ou, quiçá, aprendesse a abrir os olhos no escuro,sem sentir medo. O que então não percebia, mais tarde me seria revelado... O habana preso nos meus dentes dava-me garantida importância,sentia que um porvir qualquer me abriria a boca para exalar fumos e sentenças. Nunca mais fui senhor tão grande... Apesar de me ter orgulhado muito a minha primeira promoção. Aconteceu no dia seguinte a uma dessas tertúlias em que secretamente participava: por excitação ou descuido, ao escapulir-me para o meu 3º piso, fui semeando os degraus da amiga alcatifa das escadas com pedaços de folha de tabaco... Teria mordido demais o meu charuto? Certo, certíssimo, é que a Janine, vigilante e enérgica criada dos quartos, lhes seguiu o rasto denunciador até à porta da minha alcova. Polícia perspicaz, com brio e autoridade e, sobretudo, sentido da diferença entre coisas de homens e essoutras que são de mulheres, nem foi contar à nossa avó. Foi direitinha, de bata, avental e vénia, relatar as suspeitas de crime ao avô... E ela própria me comunicou a notificação para imediata comparência perante o patriarcal juiz. Só depois de, sobre a retirada dela (teria ficado à escuta, de orelha encostada à porta), o Senhor da Casa me sentenciou, de sobrolho franzido e irónico: "Garnement!" Baixando a cabeça, assim condenado, logo me tornei altivo penitente. Caramba! É bem melhor sentir-me um maroto perdoado com graça do que um miúdo a quem fosse dito: "Mon petit, fais bien attention à toi, à ta santé! À ton âge,on doit faire ce que les grands te disent,et pas ce qu´ils font..."Ao levantar a cabeça contrita, ainda temerosa, dei com a ternura divertida dos olhos do meu avô a acariciar-me a alma. Foi então que percebi que a misericórdia é uma comunhão que nos salva de nós. Ainda hoje é essa a minha experiência do pecado original: quis provar o gosto do fruto proíbido e o sabor do que não entendia ainda...mas alguém que já era antes de mim me permitiu o tempo em que eu pudesse crescer, à minha custa e do meu suor. Vi então, também, que nem o tempo da vida toda me daria o conhecimento de tudo, e só no olhar de um coração amante se realiza a promessa dessa plenitude a que chamamos eternidade. Foi na tarde desse dia, Princesa de mim, que me perguntaste: Camilo Maria, porque é que há dia e noite, e eu me sinto fora? Dou-te agora a mão e respondo: porque somos assim.

Camilo Martins de Oliveira