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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ENFEITIÇADO ENFEITE JAPONÊS…

 

Minha Princesa de mim:

 

Estou de volta aos achaques, ou andam os achaques à volta comigo... Ao terceiro dia de deita-senta-deita,pouso a leitura do "Genji monogatari", para te escrever. Também é verdade que te escrevo sempre sem se. Qualquer palavra que te dê é incondicional. Nem todos entendem como a expressão livre da consciência,sem reservas mentais, cuidados convencionais ou insinuações, é uma prova única de confiança. É, tão simplesmente, confiarmo-nos. Porque acreditamos, esperamos ou, talvez, já saibamos que seremos acolhidos. Ocorre-me um passo dos "Contos do Genji", em que Murasaki Shikibu, sua autora, põe na boca do Príncipe Genji  -  que se alonga em conversa sedutora com a bela e jovem Tamakatsura, ou "Precioso Enfeite", -  o que ela, Murasaki, pensa que é a arte de contar: "Tenho a minha própria teoria acerca do que a arte da novela é, e de como ela nasce e se realiza. Antes do mais, ela não consiste apenas na narrativa que o autor faz de uma história sobre as aventuras de outra pessoa. Muito pelo contrário, ela acontece porque a própria experiência que o contador teve dos homens e das coisas, pelo bem ou pelo mal  -  não só o que ele passou por si mesmo, mas também eventos que presenciou ou que ouviu contar  -  o moveram a uma emoção tão apaixonada que ele não mais consegue calá-la no coração. Recorrentemente, algo na sua própria vida ou na sua circunstância parecerá tão importante ao escritor, que ele não aguentará deixá-la passar ao esquecimento. Ele sente que virá certamente o tempo em que os homens o terão de conhecer. Assim vejo como essa arte nasce". Brava japonesa esta, que tais coisas escreve na viragem do século X para o XI! Um dia falaremos do diário que ela foi redigindo para registo da sua vida na corte imperial, como aia da severa imperatriz Akiko. Tudo isso escrito em hiragana ou caracteres chineses (kanji) simplificados, de modo a permitirem que a escrita vinda do Império do Meio se adaptasse à sintaxe da língua nipónica e facilitasse o registo desta. Escrita cursiva, é um silabário fonético cujos 46 caracteres são os primeiros a ser ensinados às crianças, antes de abordarem os inúmeros ideogramas chineses. Estes (kanji) já no tempo de Murasaki Shikibu eram os mana ou verdadeiros caracteres, kana ou caracteres efémeros, por empréstimo, sendo então os hiragana, reservados ao uso das mulheres, já que estas não podiam utilizar os kanji , estes sendo só para homens e escolásticos... Murasaki não escreveu em caracteres chineses porque os ignorasse, mas por ser mulher e aquela escrita ser intocável para ela. Eis como no papel surgiu o primeiro grande romance psicológico (e não só) de toda a literatura mundial, algo a que muitos apenas comparam o teatro de Shakespeare ou "À la recherche du temps perdu" do Proust... Por hoje, talvez cansado deste incómodo de estar com maleitas, não insisto na literatura. Mas sei que voltarei a depô-la (esta) no teu regaço. Antes me lembro das tuas princesas japonesas, essas bonecas mágicas que te enchem o olhar de um riso sério, infantil e florido. Estarão sonhos bem fadados lá bem guardados por detrás desses olhos, que não vejo agora. Talvez um dia, em honesta brincadeira de crianças, me-los contes num segredo sussurrado... Lembrei-me das tuas princesas, ao nome de Tamakatsura ou Precioso Enfeite. Se fosse mais cavalheiro, ter-te-ia dito que de ti,afinal, me lembrara... Emendo já a mão: como nos podemos lembrar do que nunca esquece? O "Genjimonogatari" inspirou por séculos, e logo desde 1119, a pintura japonesa: em rolos horizontais ou verticais,em álbuns e biombos, até como inspirador de motivos de decoração de lacas e têxteis. Para além do esplendor cromático tão delicado do gosto japonês na organização dos tecidos que se vestem, ou de pormenores elucidativos da vida e costumes da corte, surpreende-me muitas vezes a arte do silêncio, a sugestão do invisível: a presença do príncipe atrás de um estore descido que esconde a presença desejada,como se no desenho da primeira já estivesse a segunda desenhada... Um livro que foi sendo ilustrado ao longo de nove séculos...é obra! Só a Bíblia,em seus muitos livros lhe levará a palma. Sózinho,certamente o evangelho,a história de Jesus Cristo, foi mais ilustrado. Mas essa é a mais linda e enternecedora história que alguém tenha contado... Cartas te mandei em que falava do Japão. De japonismetambém. Da inspiradora moda nipónica na nossa arquitetura, pintura, design e decoração, dos vidros aos têxteis... Mas não me lembro de ter sequer referido essa influência do gosto, temas e modos, ou do estilo japonês, na música ocidental. Ambos assistimos a representações da "Madama Butterfly" do Puccini ou da "Mikado" de Gilbert & Sullivan, óperas mais "japonesas" pelas personagens e sua circunstância do que pelo jeito da composição... Mas vários músicos europeus e americanos compuseram, nos séculos XIX e XX,obras que pretendem ecoar a música japonesa. Pelas que já ouvi, em audiências privadas, creio que mais próximos da inspiração chinesa, por exemplo, estavam os nossos jesuítas que, na esteira do português Tomás Pereira, compunham, na Cidade Interdita, para agrado do imperador celeste, aquilo a que talvez pudéssmos chamar fusion music (nasci exagerado,bem sabes)... O meu homónimo (e admirado) Camille Saint-Saëns compôs uma ópera em 1872, por ocasião da Exposição de Paris, "La Princesse Jaune", história de um amor sonhado e passada no Japão. Há nela mais de mouro ou chino do que japonês. Mas a vedeta sempre é Princesa, mesmo amarela. Mudo-lhe a cor, num soneto de convalescente, para o dizer a uma dessas Princesas que hoje ainda moram no sonho que ainda é criança em ti, menina hoje toda de kimono vestida:

   Eis-te, clara Princesa, sossegada,

   purpurina do verde que há no mar,

   mergulhada em espuma ou, talvez, no ar,

   como Vénus nascendo enamorada...

   Eis-te, enfim, descoberta pela janela

   aberta ao vento que te vem chamar,

   te morde o coração e alonga o olhar...

   Sabes-te Flora, e sabes que só ela

   sempre de ti será tua memória...

   Eis-te, de verde viçoso só feita,

   e verde, verde seja a tua história!

   Eis-te, renascida nas calorosas cores

   do momiji no outono, que se enfeita

   do sempre verde de velhos amores...

   Precioso Enfeite ou Princesa Tamakatsura te chamaste.


Camilo Martins de Oliveira