Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

POEMAS DE E TRADUZIDOS POR Luís Filipe Thomaz


 

FOBERA PROSTASIA

(a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro)

 

 

                                               Como um menino antes de nascer

                                               no útero materno aconchegado,

                                               assim em teu regaço reclinado

                                               quisera um dia, ó Mãe, adormecer;

 

                                               a vida como leite em Ti sorver

                                               e assim em paz, sem pena nem cuidado,

                                               das veras de Teu ser alimentado

                                               não mais do mundo mau querer saber.

 

                                               Não poderás, ó Mãe, por um momento,

                                               pousar o teu Menino sobre o solo ?

                                               Os anjos proverão a seu sustento…

 

                                               Se alguma vez do pó em que me rolo,

                                               chega até Ti a voz do meu lamento,

                                               larga o Menino, e pega em mim ao colo !

 

 

 L. F. T.

 

Mosteiro de Nossa Senhora de Randol

Páscoa de 1979

 

 


 

 NO COMEÇO, ANTES DO COMEÇO…

(O Nâsâdîya)

 

                        Nem o ser nem o não-ser então havia,

                        nem ar ou pó, ou o que o firmamento esconde.

                        Que cobria ?

                        Dentro em quê ?

                        Sob cuja égide jazia,

                        das águas, insondável, o abismo,

                        se por ventura então já existia ?

 

                        Nem morte nem imortalidade eram então,

                        nem sinais da noite nem do dia;

                        o Único respirava,

                        sem ar, por sua própia energia,

                        pois nada p'ra além d'Ele não existia.

 

                        De começo era a escuridão envolta em escuridão,

                        e tudo o que hoje se vê era uma água informe.

                        O Único gerou-se então,

                        de sua ascese pelo poder oculto,

                        jazendo ainda tudo o mais sepulto

                        no vazio enorme.

 

                        Começou de princípio a aparecer

                        desejo, do intelecto a prístina semente:

                        tal nexo entre o ser e o não-ser

                        acharam os vates,

                        em seu coração escogitando sabiamente.

 

                        Esticada, de través, a corda de medida

                        (com que esquadrinharam o cosmo os sabedores)

                        quiçá jazia juso,

                        quiçá suso;

                        eram magníficos senhores,

                        eram os progenitores:

                        a oblação quedava aquém,

                        a intenção mais além.

 

                        Quem jamais o soube exactamente ?

                        quem no-lo poderia hoje anunciar ?

                        De que emanou ?

                        Como se originou sua semente ?

                        Se os próprios deuses são sua produção,

                        quem poderá saber donde Ele brotou ?

 

                        Donde proveio a presente criação,

                        se foi Ele quem na assentou,

                        ou se não,

                        Só Aquele que do mais alto céu a rege

                        ao certo o saberá.

                        Ou nem Ele próprio, quiçá…

 

 

Rigveda, X, 129

 

(traduzido do sânscrito por L. F. Thomaz)

 


 

 

São João da Cruz

 

OBRA POÉTICA COMPLETA

 

traduzida do castelhano

por

Luís Filipe Thomaz

 

 

 I

 

     Vivo sem em mim viver

e espero de tal maneira

que morro, por não morrer.

 

 

     Em mim eu não vivo já,

sem Deus viver não consigo,

pois sem Ele não estou comigo;

e tal viver que será ?

Cem mil mortes me dará,

esperando o próprio viver

e morro, por não morrer.

 

     Ficando ausente de Ti,

que vida poderei ter,

senão morte padecer,

a maior que jamais vi ?

Dó de mim mesmo senti,

pois persevero por sorte,

morrendo, por não ter morte.

 

     O peixe pescado é tal

que de alívio não carece,

pois na morte que padece

a própria morte lhe vale.

Mas haverá morte igual

a meu penoso viver,

se ter mais vida é morrer ?

 

     Se me quero aliviar

ao ver-Te no sacramento,

faz-me maior sentimento

o não Te poder gozar;

o que causa mor penar

é não Te ver e Te querer,

morrendo, por não morrer.

 

     Retira-me desta morte,

ó meu Deus, e dá-me a vida,

não ma tenhas impedida

em este laço tão forte.

Temo que já não suporte

a dor d' inda Te não ver

e morra, por não morrer.

 

     Chorarei a morte já,

lamentarei minha vida,

enquanto assim retida

por meus pecados está.

Oh, meu Deus, quando será

que eu enfim possa dizer

que vivo por não morrer ?

NA MORTE DE EUSÉBIO


Na morte de Eusébio, recordamos os momentos de glória que a todos nos proporcionou. Ah, que entusiasmo! Que é a cultura senão a capacidade de nos apaixonarmos por todas as artes? Ah, que lembrança! Se vivesse, Ruy Belo escreveria uma ode extraordinária e nós, com ele, exultaríamos. Tóssan disse-o, como poucos, cheio de humor e de alegria. «E a bola coitada, rolava no verde / Rolava no pé, de cabeça em cabeça / A bola não perde um minuto sequer / zumbindo no ar, como um besoiro, / toda redonda, toda bonita, / vestida de coiro. / O árbitro corre, o árbitro apita / o público grita / Gooooolllllooooo!» É essa a magnífica recordação que fica. Ah, que saudade!

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins  
de 6 a 12 de janeiro de 2014

 

As «Memórias» de Bulhão Pato (3 volumes, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894-1907) são de apetecível leitura, para quem queira conhecer o ambiente cultural e as principais figuras públicas da segunda metade do século XIX. É um reportório circunstanciado, escrito em bom português, de um memorialista que, muito mais do que poeta romântico, é hoje uma testemunha privilegiada que merece leitura atenta.

 

 

NOS MEIOS LITERATOS
Raimundo António de Bulhão Pato nasceu em Bilbau e morreu no Monte da Caparica (1829-1912), viveu a sua infância no país basco sob os efeitos dramáticos da guerra civil. Em 1837, a família veio para Portugal, cansada das agruras da instabilidade espanhola, e em 1845 o jovem inscreveu-se na Escola Politécnica, frequentando, desde muito cedo os meios literários, onde conheceu Herculano, Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e Gomes de Amorim. Com Herculano estabeleceu uma relação muito especial e intensa bem patente nas suas recordações, através das quais conhecemos muitos pormenores biográficos do historiador. Como poeta cultivou a influência romântica. A sua primeira obra é de 1850 («Poesias»), tendo publicado em 1866 a muito celebrada «Paquita» (depois de ter dado à estampa «Versos», em 1862). Apesar dos elogios dos seus contemporâneos sobre a sua poesia, em especial de Herculano e Rebelo da Silva, o certo é que será como memorialista de primeira água que Bulhão Pato se afirma. A sua prolífera criação chegou aos palcos do Teatro Nacional, em pelo menos um original e em traduções de obras clássicas. Escritor dotado e de pena fácil dedicou-se também ao jornalismo. Amigo de Antero de Quental, sobre este disse: «bem no fundo, Antero foi sempre um romântico. Até no morrer como Werther! No temperamento extremamente sensível, o influxo da educação dos primeiros anos e a natureza da País em que nasceu, desenvolveram-lhe a sensibilidade, e a luta constante, e direi cruel, da sua vida, foi querer dominar e abafar com a razão, robustecida por outros estudos, o temperamento nativo; mas esse temperamento para olhos perspicazes que o tivessem de perto, ressumbrava e traía-se a cada passo! – O entusiasmo é bom; mas a crítica é melhor – exclamava ele repetidas vezes. E foi sempre muito mais entusiasta do que um crítico; foi, acima de tudo, um poeta, e como poeta fez a sua obra-prima! Ainda bem!».

 

A AMIZADE COM ANTERO DE QUENTAL
Sobre a célebre viagem de Antero de Quental a Nova Iorque, o relato que Bulhão Pato faz sobre o poeta dos «Sonetos» e a suposta troca com João de Deus, já Ana Maria Almeida Martins esclareceu plenamente que a carta de Joaquim Negrão, o proprietário do patacho «Carolina», tinha forte dose de imaginação e de inverdade (cf. «Antero de Quental e a Viagem à América: Remando contra a Maré», Tinta da China, 2011). Antero era amigo próximo de Bulhão Pato, conviviam, nos anos setenta, às quintas-feiras jantavam («comia pouco mais que um pintassilgo na sua gaiola; não o atormentava a digestão, que lhe fora tantas vezes cruel! O exercício da palavra, depois do breve jantar, fazia-lhe bem»). Pato admirava-o. Sobre a perfeição da verve disse do poeta micaelense: «a língua, que principiava a ser desfeiteada, respeitou-as ele sempre. Percebeu que quanto houvesse moderno, seguindo todas as correntes, numa evolução progressiva, se podia dar dentro dela. Logo na infância a tinha bebido na fonte mais cristalina e abundante, porque fora discípulo de Castilho, quando o luminoso cego abrira o colégio do Pórtico. Na sua obra capital – os “Sonetos” - se pode ver como ele a maneja. Se não conhecesse a língua, não tinha feito aquela obra-prima». Também Antero estimava Bulhão Pato, de quem disse, em 1873: «literariamente as tuas sátiras são um verdadeiro triunfo; rigor, concisão, simplicidade, - naturalidade. Tens ali versos que hão de ficar na língua». Era um sinal de amiga bondade. O último encontro que houve entre os amigos foi em setembro de 1885, estava Antero em casa de Oliveira Martins no Porto. «Tinha eu acabado de almoçar no Grande Hotel, quando recebi a visita do meu velho amigo O.M.. O eminente vinha convidar-me para ser seu hóspede. Não podia aceitar a afetuosa oferta, porque não me demorava mais de que algumas horas naquela cidade (…). – Antero vai ter uma surpresa e um alegrão, vendo-te – disse-me O.M.. Saímos juntos. Entrámos naquela casa luminosa e serena! Ninguém diria que, na arena política, o dono dessa casa andava, em tal momento, numa pugna cruel com um vigoroso e terrível adversário: as espadas feriam lume, como os gládios dos lutadores do circo! Antero de Quental quando ouviu pronunciar o meu nome, levantou-se da sua mesa de almoço, para me abraçar numa expansão de alegria, rara nele! Estava animado; aquela casa era grandemente propícia à sua inteligência e ao seu honrado e amantíssimo coração. Tinha ao pé de si um amigo leal e de grande talento, o trato carinhoso de uma senhora, onde a educação primorosa, reunida à candura da alma produziam a flor mais suave para dar aroma e encanto ao lar doméstico». Já não era o Antero de tempos idos. Havia mais desdém que ironia, mas era a mesma humanidade e o mesmo génio. Despediram-se à porta do cemitério de Agramonte («sorrindo-se benévolo e triste»). Hoje, sentimos essa força evocativa da memória viva…

 

A MEMÓRIA DE HERCULANO
Lembremos sobre Herculano a invocação do Vale de Santarém: «Era plena primavera. Num ramalhete ondeante de loireiros, que sombreavam a azenha, os rouxinóis cantavam e eu julgava ver os olhos verdes de Joaninha, faiscando como esmeraldas, ao escutar os hinos daqueles inovadores alados que, do carinho da noite até à madrugada, improvisam, há milhares de anos, o poema vivo que faz palpitar todos os corações juvenis». A proximidade permite-nos conhecer muitos dos pormenores da vida do mestre: «viajar com A.H. era, às vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo despretensiosa linguagem. Ao visitarmos as ruínas de Santarém, de uma pedra de mármore, onde o punção abrira algumas letras, de um troço de coluna gótica, de uma volta pontiaguda de abóboda reconstruía aquele espírito de artista, com a sua grande penetração histórica, como que a primitiva fábrica». Ficamos a conhecer o erudito: «Herculano era generoso, mas económico. Comprado Vale de Lobos, aplicou todos os rendimentos ao custeio da propriedade rural e à edificação da casa» (…) «Azeite de prato, como é notório, era coisa que não se conhecia em Portugal. Foi Herculano quem deu a iniciativa fabricando o precioso azeite de Vale de Lobos». Bulhão Pato ensina-nos o contributo decisivo do cidadão como figura moralizadora da pátria e instituidor da liberdade. «Os invejosos mordazes até inventaram que A.H. era homem áspero e brutal no trato. Não conheci ninguém mais sincero, mais simples e ao mesmo tempo mais amorável e sem afetação, delicado». E lembramo-nos do episódio de Tomás d’Alencar de «Os Maias», considerado por alguns a caricatura de B. Pato. Eça encarregar-se-ia, de desfazer o equívoco. «E visto que nada agora pode justificar a permanência do sr. Bulhão Pato no interior do sr. Tomás d’Alencar, causando-lhe manifesto desconforto e empaturramento – o meu intuito final com esta carta é apelar para a conhecida cortesia do autor da Sátira, a rogar-lhe o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem». E cabe uma derradeira nota, gastronómica. Bulhão Pato aparece associado às amêijoas que não são suas, mas uma homenagem do grande João da Matta. As suas receitas são de caça, que servia principescamente na casa do Monte da Caparica. Paulo Plantier («O Cozinheiro dos Cozinheiros») dá-nos o menu coevo: Açorda à Andaluza (com azeite Herculano), Perdizes à Castelhana, Arroz opulento e Lebre (essa sim) à Bulhão Pato.


Guilherme d'Oliveira Martins