Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

FERNANDO AMADO: O “ENCONTRO” COM O MONÓLOGO

 

A influência de Pirandello percorre a obra teatral de Fenando Amado, sobretudo no contraste entre a realidade imediata e os paradoxos do conteúdo respetivo: é, como sabemos, um teatro de tese e demonstração a partir da evolução dos conflitos, das personagens, dos diálogos e da própria potencialidade do espetáculo.

Ao longo de cada peça, o espetador vai primeiro intuindo, e vai compreendendo o que o dramaturgo quis dizer - e o que o dramaturgo quis e quer dizer decorre da própria evolução do conflito dramático, quantas vezes - ou quase sempre - para desfecho expresso ou implícito, mas sempre inesperado…

Evoca-se aqui o único grande monólogo autónomo de Fernando Amado, para constatar e documentar a análise acima referida. E nesse aspeto, o monólogo que o autor intitulou “Encontro”, exprime bem, não só a lição subjacente de Pirandello, mas sobretudo o exemplar sentido teatral da sua dramaturgia - “sua”, de Pirandello e de Fernando Amado!...

Trata-se de uma reflexão íntima da personagem Ela, de ”vinte e poucos anos; airosa, vestida com elegância discreta”, que regressa ao quarto de dormir minuciosamente descrito com escrúpulos realista - naturalistas: “janela ao fundo, um biombo à esquerda, colocado sobre o ângulo profundo do quarto. À esquerda, a porta; num plano mais adiantado, um toucador com espelho. À direita, um guarda-fatos. Ao meio da cena, colocada paralelamente à ribalta, uma cama”…

E a partir deste enquadramento, entra-se no monólogo d’Ela. E esse monólogo, no aparente naturalismo do texto e do contexto, perdoe-se a redundância, assume a tal dúvida existencial pirandelliana. Ela, ao tomar o autocarro, sentiu que “os olhos dele, com insistência, poisavam aqui na nuca como se fossem dois focos magnéticos!... Sentia a cara a arder, os passos vacilantes (,,,) Senão tem vindo o autocarro, (eu) teria dado um grito… Mas graças a Deus, tudo passou!”

Pois bem - não passou. E o que fica, na mestria dramatúrgica de Fernando Amado, é o longo monólogo pirandelliano, não nos cansamos de insistir, d’Ela, hesitante entre a o samba e o rock que vai dançar, a convite da amiga Mariana, com o Damião, o qual “reconhece, com a sua indiscutível autoridade, que (eu) teria sucesso em Hollywood” (estamos no inicio dos anos 50)…
Mas o que sobressai é o desconhecido que a olhou na paragem do autocarro e que desapareceu: “Como é diverso o outro! O que falou sem palavras e sem gestos… apenas com o olhar… mas o que disse ele… o que queria dizer?”

A peça ganha assim uma certa expressão existencial, próxima, insistimos, do grande teatro de Pirandello: “que queria dizer? Não sei… Não tinha tensão de conquistar-me… nem de pedir esmola… Talvez antes o seu olhar procurasse revelar uma censura, uma queixa, um modo de dIzer Aqui estou… Ou talvez antes uma advertência Cuidado!...”

Fica a dúvida existencial: “que significado tinha aquele olhar grave e profundo que tanto me agitou? … Ou talvez fosse impressão minha… Acontece que atribuímos aos outros os nossos estados de alma”.

E o final é também muito pirandelliano, na dúvida que subsiste:

«Mas encontrei-o realmente?»

 

DUARTE IVO CRUZ