NO HORIZONTE PASSADO AMANHECERAM VELAS…
Minha Princesa de mim:
«Não te escrevo hoje. Já te escrevi o que abaixo digo, há muitos anos. Em New York, no dia em que cumpri 42 anos de vida. Copio agora o que poderia ter sido uma carta e apenas foi um manuscrito esquecido na confusão de muitos outros. Sobrevivo ainda, entre tantos que, aqui e ali, foram sendo sepultados. Começa pela primeira quadra de um soneto:
Voto-te,Senhor,meu abandono
a Ti só,Senhor,com quem lutei
como contra a noite luta o sono,
minha cabeça contra o que não sei...
Volta-me a ideia de que morrerei brevemente. Não sei quando, nem porque penso vir a morrer cedo. Dá-me para aí. É-me indiferente, como se nada fosse comigo. Penso na mulher e nos filhos, para quem a morte do pai possa ser um deserto de Deus. Mesmo isso nada teria a ver comigo - não sou assim tão bom, nem grande, nem necessário - a não ser por esse sentimento, de código antiquíssimo, que determina a relação ao pai como o princípio de nós. Bem cedo perdi o meu, e não me esqueço. Talvez seja cansaço, mas vou-me sentindo distante do mundo. Ou será claustrofobia, neste caso o horror dessa máquina infernal que é o Leviathan das sociedades materialistas e de cegueira desumana, social e internacional. Sinto-me a viver num mundo com falta de ar, numa discoteca em que o movimento das luzes engana tudo e todos, onde a única solidariedade é o desejo de cada um, a noite um fantasma que se afugenta, o dia aquilo que não se quer, só real por fora, pois só brilharia se víssemos o diamante que cada um de nós é por dentro. Agonia-me a agonia desta civilização sem angústia, aborreço esta cozinha que serve sempre os mesmos pratos, indifere-me a banalidade das políticas e dos sonhos. E assim peco: sou um aristocrata que, do longe de mim, olha para tudo, menosprezando. As "iniciativas" que tomo são as de um morto. Divirto-me a brincar aos fantasmas, prego partidas e irrito as pessoas que só gostam do que lhes está ao "democrático" alcance, pronto a vestir. Continuo a ler muito, mas nada vejo de novo. Mantém-me ainda vivo a crença de que o espírito não pode contentar-se com limitações, pelo que se irá divorciando desta tipografia e desta televisão, e andará a soprar por outros continentes. E aqui começa a minha interrogação ética: o espírito que anima tudo, não pode ser a pomba do Alberto Caeiro, a borrar-se em Deus e na gente. Logo, é imperativo olhar para os sinais dos tempos - deste tempo - e vislumbrar a esperança. (Mas também por aí se banaliza a esperança, com tantos a falarem da luz que já surge ao fim do túnel...). Volto ao silêncio, ao silêncio que me deixe escutar. Fujo à "cantiga do infinito cantada numa capoeira", como diria o Álvaro de Campos. Tentando sair da capoeira e do "poço tapado", dessa prisão no engarrafamento de trânsito que a primeira sequência do "Fellini 8 e 1/2" tão bem nos faz sofrer. Fico sozinho com os meus sonhos (outra capoeira?). Procuro a noite "antiquíssima e idêntica" e espero que a lua comece a ser real. Quero a lua, como o Calígula do Camus, mas não a quero para qualquer idílio interior. Quero a lua como quem quer falar e dizer e estar com os outros, até que surja Vénus, deusa do amor e estrela da manhã... Stella matutina, Nossa Senhora de nós! Tenho dado comigo, todas as manhãs, a cantar a Salve Regina, em gregoriano, no duche. Do duche saio para os dias de "business", para a megacidade onde os homens se movem pelo dinheiro: Nova Iorque é uma slot-machine / onde a gente respira / tilim-tilim-tilim... Sou tão importante como o calhau da parábola do Anthony Quinn à Giulietta Masina, em "La Strada" do Fellini. Valho por ser único e pouco ser. Serei, talvez, esta ternura em mim, que não desminto. A força que estende a mão,para uma carícia. Por vezes um olhar, como o de São Frei Bartolomeu dos Mártires que, conta Frei Luís de Sousa, agasalhava um mendigo. Assim no horizonte amanhecem velas... Escutar os responsoria da Semana Santa de Gesualdo da Venosa, esse príncipe siciliano que, dizem, matou a mulher que o traíra (também dizem) silencia-me. Fascina-me essa alma inquietante que faz de um coro de vozes uma orquestra de instrumentos vocais,cordas vocais tratadas como cordas. Para um descanso de fera, de fera ferida,de ferida só. A paixão e a angústia tornadas solenes,a sensualidade contida pelo respeito,o respeito ousando a sensualidade. Como em amores secretos. O choro de Cristo em 6ª feira santa: abandono e amor traído. Lamento apenas, agressividade nenhuma. Impotência sem consolação,como o Inverno. Mas já Primavera que germina, esperma que busca, como o amor. Não há maior paixão de amor do que a que transforma desejo e dor em ternura. E se deixa mansamente correr, num murmúrio. Mesmo nas relações de trabalho, procuro o despertar da fonte de cada um. Porque dinheiro algum, nem símbolo de classe, nem ideologia, nem canto ou discurso preparado vale o gosto de estar comigo e com os outros. E assim continua o tal soneto:
Dou-te e Ti, Senhor, minha amargura
com a raiva de quem não descobriu
se sai da solidão pela ternura
ou trai o amor que nunca viu...
Dou-te a minha alma, em desespero
das coisas todas que se agitam tanto,
que por querê-las muito já não quero!
Guarda em teu silêncio o meu segredo
amansa a grande dor deste meu espanto
de andar perdido no meu próprio enredo.
Décadas depois, Princesa, copio um texto como se hoje ainda o tivesse escrito. A isto chamo "estuporada fidelidade"! Sofro a mesma tensão de ser. Não terei percebido o que, nos meus vinte anos a mim mesmo disse: Inutilmente te cansas,/ inutilmente e não crês / que os olhos só das crianças / descobrem o que não vês... Deixo-te um sorriso como traço de união».
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira