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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins
de 20 a 26 de janeiro 2014

 

«Documentos Políticos» da autoria de António Alçada Baptista (Morais, 1970) é um precioso conjunto de textos históricos sobre a participação política do escritor como candidato da oposição às eleições anteriores a 1974. «Não estamos numa sociedade democrática (diz-nos ele), mas não podemos honestamente desconhecer que em Portugal, foram e são agora possíveis, por iniciativa do próprio governo atividades e situações que não são possíveis nos países totalitários». O autor fala de uma «sociedade semicomplacente». Havia a procura de uma transição gradual, que se revelou impossível. A releitura dos textos merece ser feita, para compreendermos o que faltou fazer…

 

 

UM TESTEMUNHO DECISIVO

A importância da vida e obra de António Alçada Baptista tem a ver com o contributo da sua ação na transição democrática portuguesa. Recorde-se que, em 1945, com o fim da guerra, houve quem pensasses que os aliados iriam pressionar os países ibéricos no sentido da democracia e do pluralismo. No entanto, as feridas abertas pela guerra civil espanhola e o desenvolvimento da guerra fria suscitaram entre os membros da Aliança Atlântica receios e cautelas especiais, que se traduziram na manutenção dos regimes peninsulares. A «neutralidade colaborante» portuguesa do final do conflito mundial, apesar de todas as ambiguidades, serviu para legitimar «de facto» a continuidade de Salazar. As esperanças alimentadas em 1945 foram diversificadas – desde os republicanos da oposição tradicional moderada até ao Partido Comunista, passando pela pequena oposição monárquica, que julgou ver então uma possibilidade de mudança de regime (contando com a antiga ambiguidade do Presidente do Conselho). No entanto, depressa se percebeu que tudo ficaria na mesma, apesar de equívocos terminológicos, sem consequências práticas, que levariam Salazar a falar de «democracia orgânica» e de «eleições livres como na livre Inglaterra». Alguns católicos (em número muito reduzido, como Francisco Veloso, o Padre Joaquim Alves Correia, Sebastião José de Carvalho e José Vieira da Luz) optaram por alinhar no MUD (Movimento de Unidade Democrática). No entanto, as limitações do momento levaram esses católicos inconformistas a optar depois sobretudo pela intervenção social (como aconteceu com o antigo deputado da União Nacional, cuja ação na Ação Católica Operária tinha sido drasticamente limitada – o Padre Abel Varzim). O caso do Centro Nacional de Cultura (criado em 1945) é um exemplo que merece referência, como demonstração dessa ação informal. Nascido por iniciativa de jovens monárquicos, que queriam aproveitar as ambiguidades sobre a natureza futura do regime, foi, a pouco e pouco, evoluindo com uma crescente influência quer de intelectuais da chamada «filosofia portuguesa» (como Afonso Botelho) quer de católicos críticos, que antecipavam a tendência de abertura que viria a concretizar-se no Concílio Vaticano II. O certo é que, entre 1945 e 1958, sente-se uma evolução no sentido de integrar progressivamente os católicos numa transição centrada numa abertura gradual mas audaciosa do sistema constitucional. A oposição republicana alimentava no seu seio contradições significativas, que o tempo agravaria, em especial no domínio da política ultramarina. Afinal, a República fora criada na sequência do Ultimatum inglês e a memória desse ultraje estava ainda presente na abordagem do tema colonial pela velha guarda do reviralho. O Partido Comunista beneficiava da conjuntura internacional da guerra fria e tendia (até pelo reconhecimento implícito da situação) a afirmar-se como a força mais significativa da oposição. Note-se que a posição da Igreja relativamente à autodeterminação dos povos colonizados evoluiria muito (na linha do que Mounier dissera vem «L’Éveil de l’Afrique Noire»), até como condição de consolidar a sua posição do terceiro mundo. Em 1958, a transformação política mais importante que se registou foi o início do canto do cisne da «frente nacional» que sustentava o Estado Novo, em que as Forças Armadas e a Igreja desempenhavam um papel essencial. E o certo é que esses apoios irão ser postos em causa definitivamente. E se usamos a palavra «definitivamente», tal tem de ser interpretado à luz de uma tendência gradual, com momentos de evolução lenta, alternando com outros mais rápidos (como na eclosão da guerra colonial em 1961 ou nas crises estudantis). Se falamos de 1958, referimo-nos à candidatura à Presidência da República do General Humberto Delgado e ao memorando enviado pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes a Oliveira Salazar – que irão contribuir para que a «frente nacional» seja fortemente abalada. Henrique Galvão e António Sérgio, duas personalidades provindas de horizontes antagónicos (um, do grupo de militares que implantou a ditadura militar em 28 de maio de 1926, braço direito de Salazar na Emissora Nacional; e o outro, prestigiado intelectual da renovação republicana, referência da «Seara Nova»), que se tinham encontrado na oposição ao Estado Novo, convergiram na defesa de que o Estado Novo apenas poderia ser mortalmente atingido se os seus apoios fundamentais fossem abalados, a partir de dentro. Daí a candidatura de Humberto Delgado, que o PCP não apoiou num primeiro momento, e que tomaria uma dinâmica imparável, o que obrigaria os comunistas e mudar de atitude, desistindo do seu candidato Arlindo Vicente. No caso da Igreja Católica, a atitude do regime face a D. António Ferreira Gomes, impedindo-o de regressar ao Porto (apesar de continuar a ter a dignidade episcopal), torná-lo-á uma vítima e um dos símbolos do «aggiornamento» do Concílio Vaticano II, no que este visava superar o eurocentrismo e assumir a compreensão dos «sinais dos tempos» (que a encíclica «Pacem in Terris» e a constituição «Gaudium et Spes» enfatizam).

 

O PAPEL DA LIVRARIA MORAES

António Alçada Baptista lançou exatamente em 1958 o projeto renovador da Livraria Moraes, que acompanhará as profundas mudanças que se verificavam e anunciavam. Tratou-se de criar um movimento de opinião centrado em leigos católicos (com apoio de alguns clérigos) capaz de seguir e concretizar o programa de Emmanuel Mounier de unir católicos e não católicos no combate contra a «desordem estabelecida», que o mesmo seria dizer, romper com a cumplicidade da Igreja Católica em relação ao regime de Salazar. Assim, ao contrário do que muitas vezes se pretende, a ideia fundamental de António Alçada Baptista não tem a ver com a criação de um Partido Democrata-Cristão. Para o desmentir, basta ler-se atentamente os textos publicados nas coleções «O Tempo e o Modo» e «Círculo do Humanismo Cristão». E percebe-se que está em causa algo de muito diferente – o que altera totalmente a ideia de que Alçada Baptista viu derrotado o seu projeto político. O que AAB desejava era encontrar uma convergência de movimentos e opiniões que permitisse uma transição pacífica de contornos abertos e cosmopolitas, segundo a lógica das democracias ocidentais. A ligação ao Congresso para a Liberdade da Cultura (e o forte papel desempenhado por Pierre Emmanuel) é um sinal dessa orientação. Trata-se de tornar ativo, em Portugal, um grupo de intelectuais sem vocação partidária ou até cristã. Do mesmo modo, a ideia, não concretizada de «O Pacto», influenciada pela comunidade de Mounier nos arredores de Paris, também nada tem a ver com um movimento político. É certo que, aquando da fundação de «O Tempo e o Modo», Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio participam. E o futuro fundador do Partido Socialista pretendia que AAB fosse a personalidade aglutinadora de uma corrente política democrata-cristã – no entanto esse entendimento deparava com a posição contrária do próprio António Alçada Baptista e da maioria dos seus companheiros (para quem não deveria haver uma política cristã, mas cristãos livres, sem movimentos confessionais, na política).

 

Guilherme d'Oliveira Martins