EU SOU NA MINHA CIRCUNSTÂNCIA…
Minha Princesa de mim:
Osamu Nishitani (poderia traduzir-te este apelido por Nishi=Oeste, Tani=Vale,o que daria, p.ex., Osamu do Vale Ocidental) é um filósofo japonês que terá dito, certo dia, a um francês: O pensamento não salva. O ocidental (o francês) não percebeu o que o oriental, apesar de Vale do Oeste, quis dizer. Para ele, cartesiano (?), representar mentalmente as coisas, formular clarezas, seria a nossa salvação do nevoeiro indistinto, logos surgindo do caos... Em resposta, o japonês sorriu (riu-se?) e acrescentou : Digo que o pensamento não salva, porque o pensamento ,como a sabedoria, não é remédio para qualquer doença mental ou espiritual. Não é um medicamento. De vez em quando, pensaremos por motivação muito pessoal, mas não pensamos em busca de uma solução para a nossa própria doença, para o nosso próprio problema. Penso para organizar a relação entre mim e os outros, ou a sociedade. Pensar é construir uma passarela ou dar um novo passo entre o que consideramos privado (nosso) e o que julgamos social, as nossas relações com os outros. Não se trata, portanto, de um remédio. Ensino, penso, volto a ensinar, sim, mas não é para salvar os estudantes, não é para salvar as pessoas, não é para medicar as pessoas que sofrem... Antes de continuar a falar-te dessa conversa com o Nishitani - que nos conduzirá a uma reflexão sobre a religião - quero ligar o pensamento dele, acima afirmado, com um texto de outro filósofo japonês contemporâneo, professor na Universidade de Kyoto e estudioso do Iluminismo francês (sobretudo Diderot e Rousseau), Hisayasu Nakagawa. Sob o título Lococentrisme, começa assim: Para os Europeus, o "eu" é uma entidade a priori que transcende todas as circunstâncias: tudo começa por "eu", mesmo se, como diz Pascal, "o eu seja odioso". Na língua japonesa não é assim, o que leva Augustin Berque a escrever: A primeira pessoa, ou seja, o sujeito existencial, não existe em si mesma, mas enquanto elemento da relação contingente que se instaura numa dada cena. E o mesmo Berque cita um linguista japonês,Tadao Suzuki: "O eu dos japoneses encontra-se num estado de indefinição, por assim dizer, por falta de coordenadas, enquanto não surgir um parceiro concreto cuja exacta natureza o locutor possa determinar... Ajudar-te-á a perceberes isto uma história divertida, sucedida, à minha frente, a um amigo europeu - que começava a desembaraçar-se na fala do japonês - certa noite em que jantávamos com um acolhedor casal nipónico, em casa destes. Querendo agradecer o sumptuoso agapé, o meu amigo dirigiu-se ao dono da casa, dizendo: Agradeço a hospitalidade e este magnífico jantar preparado pela Kanai! O anfitrião, ruborizado de cólera, vociferou que a Kanai era dele! Na verdade, o meu compatriota não sabia ainda que Kanai significa minha mulher (literalmente, mulher de dentro)... Se quero referir-me à mulher de outro, direi Okusan ao marido e, se o apelido deste, por exemplo, for Sakai, dirigir- me-ei à senhora dizendo Sakai-san... Ela é segundo a sua relação aos outros. Nakagawa refere outro exemplo ilustrativo: "Suponham que um garoto está com medo de um cão. Para o sossegar, aproximar-me-ei dele e em francês dir-lhe-ia ´não temas, não chores,eu estou aqui contigo´; mas em japonês seria ´não temas,não chores,o teu paizinho (ojisan) está contigo´. .. O eu é definido em função da circunstância,pela sua relação ao outro: a sua validade é ocasional, ao contrário do que se pratica nas línguas europeias, onde a identidade se afirma independentemente da situação. Talvez na outra vida, naquela além desta, eu venha a perceber como, em tantos anos que estive no Japão, sempre me entendi no convívio com eles. Porque sei, isso sim, que sou afirmativo, sempre me fui idêntico. E eles foram-me aturando, deram-me testemunhos de sincera simpatia e amizade que, mais de uma década depois da minha partida, perduram e se manifestam. Sinto que terei, muitas vezes, parecido impositivo, no sentido de me definir por mim. Até, talvez, quiçá malgré moi, tivesse sido arrogante. E pensossinto, hoje velhote, que terão sido eles a entender-me melhor do que eu a eles. Porque pensaram em mim, ou pensaram na aparição que fui, para saberem como relacionar-se comigo. Se eu pensar assim de relacionamentos de europeus, ou ocidentais, comigo, concluirei que são interesseiros, hipócritas... Mas a tal conclusão não chego,não posso chegar, sobre os meus amigos nipónicos... Talvez,e quiçá ainda malgré moi,esse movimento de aproximação a mim também se deva a terem percebido que a minha afirmação de mim fosse uma senha de reconhecimento que lhes identificasse uma circunstância como vocação da identificação deles. Certo, certo, é que, feitos amigos, mais fiéis nunca encontrei na vida. Pareceram-me desnecessariamente intermináveis as primeiras reuniões de negócios com japoneses: começavam pelo nemawashi (partir pedra?) e repetiam-se os termos das posições de cada parte, como das concessões e acordos que se iam fazendo. No fim - quando nessa hora se acabavam - repetia-se o consenso. Até que tudo o que por fora tivesse sido acordado estivesse já comungado no pensarsentir de todos. A mais das vezes, íamos celebrar jantando num restaurante japonês a preceito, em sala reservada. Se entretanto ali levassem papéis para assinatura, liam-se, manifestava-se o acordo e fazia-se uma saúde. Na minha primeira vez, Sakai-san (o marido) disse-me: let´s read the documents and confirm everything,before we get intoxicated! Daí por diante, estaríamos numa festa de amigos. E na parte japonesa, se, talvez etilizado, um subordinado atirasse uma piada ao chefe, culpa alguma lhe seria atribuída nem censura feita. Mudara o cenário e, com ele, o papel dos circunstantes. Na manhã seguinte, todos regressariam à forma. Paro aqui, mais tenho para dizer e contar-te. Voltaremos aos filósofos e à ideia de religião. Foi bom falar contigo. Dou-te a mão,
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira