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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O Passeio de Ulisses: Viagem pela Literatura Irlandesa

 

Considerada Cidade da Literatura pela UNESCO em 2010, Dublin merece totalmente o epíteto ao ter servido de berço a alguns dos mais influentes escritores da contemporaneidade como Jonathan Swift, Oscar Wilde e James Joyce. Ao longo do século XX, a literatura irlandesa conquistou quatro Prémios Nobel: o dramaturgo George Bernard Shaw (autor da famosa peça Pigmalião), os poetas William.Butler.Yeats, Seamus Heaney e Samuel Beckett. Mais recentemente, a Irlanda foi pátria de vários autores distinguidos com o Booker Prize (o mais importante prémio literário de língua inglesa) como Iris Murdoch (em 1978), John Banville (2005) ou Anne Enright (2007).

 

De 5 a 12 de abril, na companhia da jornalista e escritora Maria João Martins (que, no ano passado, guiou, também os viajantes do CNC, pela Inglaterra de Virginia Woolf), seguiremos os passos destes e outros grandes autores Na capital do país, Dublin visitaremos o Writers Museum, o Trinity College, a St. Patricks Cathedral, a National Library em Kildare Street  e a famosa Martello Tower, local de inspiração para “Ulisses”. Iremos também ao Museu James Joyce, bem como ao local de nascimento de George Bernard Shaw e ao Museu Nacional da Irlanda.

 

Ao abandonarmos a cidade, faremos uma excursão a Sligo, passando por Longford e as suas associações literárias Iremos também visitar o túmulo de Yeats no Cemitério de Drumcliffe, rumaremos  a Connemara e às majestosas paisagens em que o poeta mais celebrado da Irlanda viveu, escreveu e amou..

 

Passaremos também pela cidade de Tarbert, onde anualmente se reúnem escritores de todo o mundo. Iremos ao Parque Natural de Killarney, com seus lagos e montanhas bem como à esplêndida Muckross House, mansão vitoriana mundialmente conhecida pelos seus jardins. De regresso a Lisboa, voltaremos, com outro apetite, aos clássicos destes escritores. Conhecido o espírito do lugar, alimentar-nos-á agora um secreto enamoramento pela alma irlandesa.

 

Maria João Martins

A VIDA DOS LIVROS

Guilherme d'Oliveira Martins
de 3 a 9 de fevereiro 2014

 

«Religiões da Lusitânia» (3 volumes, 1897-1913) de José Leite de Vasconcelos (1858-1941) é, no conjunto das realizações do historiador, arqueólogo e etnólogo, uma das obras mais conhecidas e marcantes. É, no entanto, muito difícil, afirmar qual o estudo mais importante que realizou, uma vez que a sua curiosidade, o seu conhecimento e a sua capacidade de ir ao encontro dos mais ínfimos elementos da cultura portuguesa dão-lhe significado e projeção ímpares, que exigem atenção e reconhecimento.

 

 

HOMEM DE CULTURA

José Leite de Vasconcelos foi escritor e poeta nos primórdios da vida, são dele «O Presbítero de Villa Cova» (1878-79), «Poema da Alma» (1879) e «Baladas do Ocidente» (1885). Nasceu em Ucanha, em S. João de Tarouca, na Beira Alta, de uma família da aristocracia beirã. Era um homem desprendido de bens materiais. Médico de formação, foi o melhor aluno do seu curso na Escola do Porto (1886). A enumeração dos domínios culturais e científicos que cultivou é digna de admiração: foi linguista, obtendo o doutoramento na Universidade de Paris com um estudo sobre dialetologia portuguesa (1901); foi investigador da língua mirandesa e do dialeto barranquenho; foi antropólogo, com estudos fundamentais sobre necrópoles romanas e medievais; foi filólogo experimentado, com milhares de verbetes e anotações sobre os falares portugueses; foi numismata; foi etnólogo e arqueólogo, respeitadíssimo; e deixou o seu nome ligado à Faculdade de Letras de Lisboa, onde formou uma escola, ao Museu Nacional de Arqueologia (que leva o seu nome, e que fundou, graças à premonitória decisão de Bernardino Machado em 1893) e à Biblioteca Nacional. Assim se entende que tenha dito, no início da sua vida pública: «Portugal é o núcleo fundamental de toda a minha obra» (1885). Leia-se «As Religiões da Lusitânia». Aí está o estudo das nossas raízes mais profundas. Como disse Vitorino Nemésio: «O trabalho de maior amplitude de Leite de Vasconcelos» no campo das religiões é impressionante. «Os deuses, os ritos funerários, a arte de curar desse vigoroso povo de fundo céltico, tudo foi indagado pelo arguto e incansável interpelador de esfinges». Mas leia-se  «De Campolide a Melrose» (1915), «Mês de Sonho» (1926), «De Terra em Terra» (1927), «Etnologia Portuguesa» (a partir de 1933),  - em cada um destes títulos ora encontramos o escritor dotado e exímio, ora o estudioso imbatível, ora o mestre e os seus discípulos (como Viegas Guerreiro na etnologia). Se formos ver as revistas e publicações que levam o seu cunho, ficamos espantados pela sua versatilidade e capacidade de estudo: «O Arqueólogo Português», «Revista Lusitana» e «Boletim de Etnografia»…

 

UM VERDADEIRO MESTRE

Orlando Ribeiro, outro mestre inolvidável, foi seu discípulo: «Com Leite de Vasconcelos (diz-nos) extinguiu-se entre nós certa espécie de homens de saber, produto em larga parte de um ambiente de tranquilidade e de amadurecimento intelectual que os nossos dias não voltarão a conhecer». E se o nosso maior geógrafo seguiu as passadas de José Leite, foi por ter compreendido o melhor da sua lição: a «originalidade consiste na maneira de tratar os materiais: colheita direta e exaustiva, elementos fornecidos em primeira mão, cuidadosamente apurada a sua autenticidade e generalidade; informação bibliográfica completa, sem omitir nada do que os outros escreveram, mas repassando tudo pelas malhas apertadas da análise crítica e só aproveitando o que se afigure no genuíno quilate; depois da recolha, a ordenação dos factos, pelas suas afinidades ou analogias, e pela sequência cronológica». Para quem conheceu a capacidade inovadora de Ribeiro e a sua preocupação de ir sempre ao terreno, o que lhe permitiu interpretar, como ninguém antes dele, o território de Portugal, facilmente se apercebe onde foi encontrar uma base metodológica. «Observação e erudição, ambas manifestadas no mais alto grau…: uma é qualidade mestra do etnógrafo que, como nenhum outro, guardou íntimo e constante, o convívio do povo; a outra é a virtude do filólogo, treinado no manejo permanente dos textos… Ser-se ao mesmo tempo erudito e naturalista pertence já a um passado científico de que o culto, talvez exagerado, da especialização, nos afastou para sempre». Estas palavras de homenagem ao sábio dizem-nos quase tudo sobre a importância da atitude do cientista e do seu método. De facto, o professor trazia sempre consigo uma carteirinha com verbetes para apontamentos. Nunca saía sem os seus canhenhos de campo. Ainda segundo o testemunho do Professor Orlando (que tantas vezes invocava Endovélico), essas notas eram escritas à pressa, amiúde a lápis, com uma letra difícil e nervosa, que desesperava o próprio na sua decifração. O espólio que nos deixou exige um trabalho de paciência e discernimento. Nesse «mare magnum» descobre-se de tudo: contas de mercearia, correspondência, provas tipográficas, inúmeras notas com um sustenido no canto superior esquerdo – marca de terem sido aproveitadas ou transcritas; folhetos, cadernos, recortes de jornais, apontamentos de viagem, notas de leitura… O mestre nada deitava fora e aproveitava as costas do mais desprezível papel para fazer uma anotação relevante, o que torna o trabalho nos seus documentos um exercício épico. Quanto aos seus livros, tinha com eles um cuidado muito especial. Na aparente desordem da casa da Rua D. Carlos de Mascarenhas, a Campolide, conhecia onde estavam aqueles de que precisava ou que ia recebendo. E não emprestava livros, por princípio: «porque é frequentíssimo que quem toma de empréstimo: 1º os demore; 2º os estrague; 3º os estrague e os demore; e 4º não os restitua». Emprestar um livro era assim perder um livro e um amigo.

 

UM PERCURSO DE VIDA… 

Seguindo o percurso da sua vida, vemos sempre um prazer genuíno por peregrinar e saber mais, por descobrir a origem dos costumes e tradições, harmonizando sempre a vida profissional com a sua paixão de investigador. «Tenho paixão de viajar… Sinto não sei que entusiasmo quando me vejo diante de novos horizontes e em terras onde a cada passo espero encontrar cousas de mim desconhecidas, ou que, sendo já conhecidas, dão sempre prazer». Isto di-lo em «De Terra em Terra», entendendo-se bem o gosto lúdico com que se comprazia. Depois de atingido o limite de idade continuou a trabalhar, sentindo, porém, a falta das ocupações permanentes na Faculdade e no Museu. O certo é que, ao visitarmos hoje o Museu Nacional de Arqueologia, sentimos a sua fortíssima presença como lenda viva. Com ele colaboraram artistas célebres como Stuart de Carvalhais, como preparador, e Francisco Valença (o grande caricaturista) como desenhador. Manuel Viegas Guerreiro (1912-1997) foi seu fidelíssimo e inteligente colaborador e seguidor, e não podemos ainda esquecer a cooperação com o Padre Francisco Manuel Alves, o célebre Abade de Baçal, também responsável pela descoberta de muitas das nossas antigas raízes. No dia a dia, como Guerreiro Murta recorda, sendo «corretíssimo no seu convívio, no trato com os alunos», só se exasperava com crimes de lesa-filologia e de lesa-arqueologia, e «excedia os limites por ele imaginados como imperdoáveis». Para Vitorino Nemésio, «para o vulgo das cidades seria uma espécie de excêntrico; para a gente dos campos e das serras, que ele calcorreou ao compasso de duas ou três gerações, ora um vedor de águas, ora um fiscal da Fazenda, sempre finalmente um bom senhor». A sua curiosidade trouxe-lhe, no entanto, pequenos dissabores: um dia, no seu estudo sobre a barba em Portugal, foi salvo de ser preso, ao ter procurado entrevistar uma mulher de hirsuto e nutrido apêndice capilar; outra vez viu-se em maus lençóis no Conde Barão ao olhar atentamente umas jovens e esbeltas varinas. Quando os alunos de escola próxima atiravam pedrinhas para a sua janela entre vozearia afugentou-os em pânico ao usar o estridente apito autêntico de um agente da polícia que colecionara nas suas andanças etnográficas. Aquilino disse: «A sua obra tão vasta e ao mesmo tempo tão sólida e conscienciosa, considerei-a desde que me conheço como tombo da casa lusitana, onde se encontra definida e comprovada a individualidade nacional». Que melhor homenagem?  

 

Guilherme d'Oliveira Martins