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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

José Claudino Rodrigues Miguéis: usou as palavras à luz do universo, à flor da água dedicada aos mais humildes. Ele, um grande fruto da Literatura portuguesa, tão esquecido, tão pouco lido, não obstante.

Formado em Direito e nascido em Lisboa em 1901 na Rua da Saudade, consagrou-se à Literatura e à Pedagogia. A sua frontalidade face ao Estado Novo levou-o a expatriar-se voluntariamente para os E.U. A., donde passaria a vir a Portugal apenas de tempos a tempos, tendo-se nacionalizado americano. Seria agraciado um ano antes de falecer pela Ordem Militar de Santiago da Espada. Pertenceu ao grupo Seara Nova ao lado de António Sérgio, Irene Lisboa, entre outros. Múltiplas das suas obras encontram-se traduzidas em inglês, italiano, alemão, russo, checo, francês e polaco.

As primeiras recordações de infância, registadas no livro Escola do Paraíso, muito lhe surgem, sempre que da janela da casa onde morava em Alfama, via «chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul».

 

Este romance a que me refiro foi considerado um dos mais importantes do modernismo português.

- Gabriel!, Gabriel!...

Voltou-se. O pai aproximou-se, ofegante:

- Para onde ias tu, filho? Porque fugiste?

Não respondeu. Sim, ia a fugir, mas não sabia de quê. Talvez deste mundo atormentado, da morte que espreitava a cada canto, ou da vida, que começa no sangue e acaba em sangue…E para onde ia? Não tinha para onde ir. O paraíso, a idade de ouro, o sonho – nada disso existia fora dele. Estava dentro da vida e não podia fugir-lhe. Alguma coisa mais morrera ali: um tempo, a sua infância. Era preciso recomeçar tudo noutro plano, trepar a ladeira arrastando o peso das cadeias. Sentiu-se de repente só, e teve medo.

Dostoievski, encontra-se,  entre os mais altos expoentes que influenciaram José Rodrigues Miguéis, nomeadamente,  na sua novela Páscoa Feliz, anterior ao romance A Escola do Paraíso, e enfim, um dia, este herdeiro de escritores como Raul Brandão e Ferreira de Castro, dotado de uma escrita de profunda riqueza vocabular, abriu uma estrada ao entendimento da vida das pessoas comuns, na excelência da obra que nos deixou.

Morre em Nova Iorque, e em 1982, um dia, a sua viúva chega a Lisboa com as cinzas de José numa pequena urna, que viria a ser colocada num monumento erguido à sua memória no Cemitério do Alto de São João em Lisboa, em singela cerimónia.

O seu espólio, incluindo os seus desenhos, é doado à Universidade de Brown e dele feito microfilme com destino à Biblioteca Nacional.

Autor em 1959 do livro Um Homem Sorri à Morte com Meia Cara é também o mesmo que escreve esta carta a Pavla Lidmilová

Querida Amiga,

Posso permitir-me a audácia de lhe oferecer este inédito – escrito na manhã de 20, na perspectiva do Natal próximo? Tenho o seu nome – mas não, infelizmente, a sua Imagem! – Constantemente diante dos olhos da mente. Como havia de esquecê-la numa época atormentada de nostalgias e memórias, num mundo que, apesar de crescer assustadoramente, se vai tornando de dia para dia mais pequeno para os que (como eu) envelhecem? Posso agora desejar-lhe um ano de 1977 cheio de felicidades e obras? Beija-lhe as mãos o admirador muito grato.

 

Simples Conto do Natal

 

Conheceu-a pelas vindimas, nas serranias do Alto Douro, quando as encostas pareciam escorrer sangue e oiro, e dos vales se erguiam as vozes das "rogas" entoando seus cânticos pagãos.

Loura, dum louro crespo e queimado dos sóis e dos frios, branca de neve mas tostada da intempérie e da sujidade, batendo o compasso das canções com os pés descalços na rocha dura dos caminhos, ou de cavaquinho a tiracolo para os peditórios pelas quintas, ela teria pouco mais de quinze anos, e nos olhos verdes uma ardente cintilação, que vinha dos remotos tempos de Suevos e Visigodos. Foi da boca dela que ele recolheu as mais belas canções da região. Ouvindo-a a cantar e tocar, amou-a logo. Era poeta, pobre, e vinha da Cidade. Ela nascera e vivia num lugarejo perdido nos boqueirões da Serra. Ele tomou-lhe da mão e disse: "Tu serás uma Princesa. Hei-de coroar-te de rosas e brilhantes, vestir-te de sedas e arminhos. Os teus pés calçarão sandálias douradas…"

Amaram-se. Quando ele regressou à Cidade, ela acompanhou-o, levando consigo o cavaquinho. Foram morar num bairro antigo e pobre, de ruas íngremes e sinuosas, numa água-furtada donde se avistava o "mar" coalhado de vapores.

Viviam de quase nada. Ele versejava, fumava, sonhava, ficava na cama até tarde. Amavam-se noite e dia com fervor e paixão, ele sempre de olhos mergulhados na verde joalharia dos olhos dela. Ela era agora, rósea e diáfana como um Princesa. Em vez da prometida coroa, tinha apenas os caracóis de ouro dos cabelos; e nos pés, em lugar das sandálias douradas, modestos sapatos de trança. Viveram assim, por muito tempo, meses, anos talvez, sem dar por isso: felizes. Até que um dia, não tendo em casa o que comer, nem esperanças de o ganhar, ela desceu da água-furtada à rua, em busca de um freguês que lhes pagasse o custo da ceia de Natal.

Nova York, 20 de Dezembro de 1976

José Rodrigues Miguéis

Acredito que por entre as árvores estará a tempestade que protege os seus, tidos e reflectidos por aquilo que viram e foram.

 

Teresa Vieira

Sec. XXI