A PAZ CULTIVA-SE…
Meu Caro José Saramago:
Ocorreu-me regressar a umas páginas do seu Caderno 2, ao ler esta manhã um artigo publicado,em 7 de Outubro passado, no Premium Times, jornal de Abuja (Nigéria), por um seu colega na escrita e no prémio Nobel, o nigeriano Prof. Wole Soyinka. Citá-lo-ei, a ele, depois de o citar a si, como se ele lhe respondesse. Começo pelo seu Africa, do dia 11 de Agosto de 2009: Em África, disse alguém, os mortos são negros e as armas são brancas. Seria difícil encontrar uma síntese mais perfeita da sucessão de desastres que foi e continua a ser, desde há séculos, a existência no continente africano. ...Com a chegada do homem branco abriram-se de par em par, para os negros, as portas do inferno. Essas portas continuam implacavelmente abertas, gerações e gerações de africanos têm sido lançados à fogueira perante a mal disfarçada indiferença ou a impudente cumplicidade da opinião pública mundial. Termina este seu texto no seu blogue por um apelo: Em tais casos não podemos desejar senão que a consciência nos venha sacudir urgentemente por um braço e nos pergunte à queima-roupa: "Aonde vais? Que fazes? Quem julgas tu que és?" Uma insurreição das consciências livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?
Dias mais tarde, a 21 de Agosto, no mesmo blogue, o José alvitrou: Temo-nos habituado à ideia de que a cultura é uma espécie de panaceia universal e de que os intercâmbios culturais são o melhor caminho para a solução dos conflitos. Sou menos optimista. Creio que só uma manifesta e activa vontade de paz poderia abrir a porta a esse fluxo cultural multidirecional, sem ânimo de domínio de qualquer das suas partes. Essa vontade talvez exista por aí, mas não os meios para a concretizar. Cristianismo e islamismo continuam a comportar-se como inconciliáveis irmãos inimigos incapazes de chegar ao desejado pacto de não agressão que talvez trouxesse alguma paz ao mundo. Ora, já que inventámos Deus e Alá, com os desastrosos resultados conhecidos, a solução talvez estivesse em criar um terceiro deus com poderes suficientes para obrigar os impertinentes desavindos a depor as armas e deixar a humanidade em paz. E que depois esse terceiro deus nos fizesse o favor de retirar-se do cenário onde se vem desenrolando a tragédia de um inventor, o homem, escravizado pela sua própria criação,deus. O mais provável, porém, é que isto não tenha remédio e que as civilizações continuem a chocar-se umas com as outras. Se me permite, antes de lermos o Prof. Wole Soyinka, dir-lhe-ei, a si, que a minha resposta à pergunta sobre se será ainda possível uma insurreição das consciências livres é : Sim! Não só é ainda possível, como sempre o tem sido, mesmo no interior das religiões e das próprias igrejas. O exercício corajoso da liberdade de consciência tem sido, aolongo da História dos homens, o factor determinante das reformas necessárias ao incessante recomeço de um mundo novo. Mesmo no seio da Igreja Católica - a tal que, diz o José noutro passo, na sua velha tradição de fazer o mal e a caramunha, anda para aí a queixar-se de ser vítima de um suposto laicismo "agressivo" - nessa Igreja, ainda na segunda metade do século passado vimos brilhar no Concílio Vaticano II teólogos que, poucos anos antes, tinham sido vítimas - digo eu, parafraseando-o a si - de processos movidos pela cúria vaticana por supostas heresias dissidentes. Do seu labor conciliar resultaram, afinal, passos importantes no caminho do diálogo ecuménico, inter-religioso e com agnósticos e ateus. Donde, aliás, a esperança hodierna no desenvolvimento dessa abertura universal, que o papa Francisco anuncia. Quanto à sua desesperançada sugestão de criação de um terceiro deus, admitamos que Alá ou Deus sejam criaturas da mente humana. Mesmo que assim fosse, sempre nos servem melhor do que o deus terceiro que é o totalitarismo ideológico e político. Na verdade, porque os concebemos na transcendência, sempre nos podem contestar que são eles quem manda, nós não. O que, evidentemente, nos poupa a tirania dos homens que, hitleriana, lenino-estaliniana ou de outra qualquer ditadura, será sempre necessariamente mais feroz, totalitária, já que só por si mesma, e enquanto praxis, se poderá afirmar. O Deus transcendente, o Quem é, poderá ser reclamado por titulares de movimentos ditos religiosos para justificação de atos ou preceitos, ou para legitimação do poder pretendido. Conhecemos muitos exemplos disso ao longo da história e, ainda hoje, na própria Igreja Católica Apostólica - que já não se intitula Romana - há congregações religiosas que tentam tornar o tesouro da Revelação entregue à liberdade dos filhos de Deus, numa coisa mais deles do que dos outros, como fazem, no recreio da escola, aqueles miúdos que se sentam em cima da bola para que os outros não possam jogar com ela... Mas ninguém jamais poderá negar, com pretensões a fundamentar teologicamente o contrário, essa condição sine qua non da fé católica: nada se pode interpor entre a consciência da pessoa humana e Deus. E sempre que alguém, na chamada hierarquia da Igreja, pretendeu fazê-lo procedeu contra o espírito do evangelho e um princípio elementar do cristianismo universal. A universalidade do cristianismo é a vocação do amor de Deus: "dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei". Sempre que não respondemos a este apelo, não temos justificação: nem de razão de estado, nem de partido, nem de igreja. E é este amor que devemos, todos, ir procurando libertar em nós, como insurreição das nossas consciências livres. Ao Deus transcendente procuraremos chegar pelo amor dos outros. E o que o cristianismo tem de mais autêntico é essa mensagem de que Deus tanto amou o mundo que lhe deu o seu filho muito amado, para que fosse Deus connosco. No texto acima referido, o Prof. Soyinka, recordando o recente morticínio num centro comercial de Nairobi, serve-se do título de um livro póstumo do argelino Karima Bennoune, assassinado por fanáticos islamistas, A Vossa Fatwa Jamais Se Aplicará Aqui, para incitar os povos africanos muçulmanos a corresponderem ao apelo à paz que lhes é lançado por Alá misericordioso: Esses carrascos continuam a invocar o Islão e, por isso, apelamos aos nossos irmãos e irmãs muçulmanos para que se reapropriem do Islão. Retomem esse Islão que se reclama de uma cultura da sabedoria, honra os seus fiéis como Povo do Livro, um Islão de partidários históricos das virtudes da inteligência e seus produtos. O que a tragédia de Nairobi nos ensina é que não existe sítio algum chamado Alhures. O Alhures está aqui, entre nós, no presente. Convido-vos pois a cumprirdes esta missão: reconquistar o islão,reconquistar o nosso continente e assim reconquistar a humanidade. Essa reconquista é a conversão interior a uma cultura da paz. E as religiões universais, quando bem compreendidas, empurram-nos a isso. Porque - contrariamente às seitas, que geram fanatismos - dizem-nos que o amor de Deus nos abraça a todos. O Papa Francisco que, recentemente, confessava a um crítico musical que o Incarnatus da Missa Maior de Mozart o aproximava de Deus, é o líder religioso que também disse Deus não é católico - no sentido de não o considerar "propriedade" ou confissão exclusiva da Igreja Católica. Para depois dizer que era esse Deus incarnado em Jesus Cristo O que se lhe revelara. Deus abraça-nos a todos. Como a mim, aqui na terra, e a si, nesse assento etéreo...
Camilo Martins de Oliveira