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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARMEN DOLORES no nosso PALCO DA MEMÓRIA…

 

Desde sempre me fascinou o teatro. A arte de representar é uma criação ateniense e um dos elementos identitários da cultura europeia, construída sobre os raios de sol emergentes da batalha de Salamina, fecundada que foi a vitória dos gregos sobre os persas, consubstanciando com esta de vez o vencimento da civilização sobre a barbárie. O Teatro foi, até ao seu declínio, que colocamos no último terço do século vinte, um espaço reflexivo e de convivência, entroncado pela ironia satírica e catarse trágica dos seus autores e interpretes.

Neste tempo de frivolidades o teatro perdeu parte da sua audiência com a proliferação das novelas televisivas, que nada têm a ver com a sua magia.

William Shakespeare foi o mais genial autor, criador e pensador da dramaturgia literária de todos os tempos e com ele aprendi a amar toda a coreografia humana. As peças de Shakespeare são verdadeiros tratados sobre o destino do homem. Por isso, não surpreende que os grandes atores tenham como aspiração maior representar alguns dos personagens mais emblemáticos do dramaturgo inglês. Mas esses papéis só brilham num palco, se o ator que o representa tiver talento, pelo que não é exagerado afirmar que o que permanece na nossa memória em relação aos espetáculos que no passado presenciamos é a valia dos intérpretes, mais que os méritos do texto representado.

Marcel Proust aborda no seu “Em busca do Tempo Perdido” a força e influência social do Teatro através da personagem Berma que representa no imaginário do autor a celebérrima Sarah Bernhardt. O papel de Fedra de Racine cintila pelo desempenho de Berma, atriz que na ficção de Proust atinge o zénite do brilho dos palcos parisienses e subalterniza o autor do texto.

Fora da ficção e situando-nos num plano mais direto diremos que o ator britânico Laurence Olivier confundiu-se perante os seus contemporâneos com “King Lear”, o mesmo se operando no nosso meio teatral. As palavras camonianas introdutórias do drama “Frei Luís de Sousa” “….naquele engano de alma ledo e  cego que a fortuna não deixa durar muito…” na boca de Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, há muito que nos remetem, como um reflexo condicional, para a nossa Carmen Dolores que é uma artista de enorme gabarito, que eu admiro muito e que tem na sua voz de interprete e declamadora uma pátria de afetos. A palavra tem na voz de Carmen Dolores uma harmonia indelével que a tornam nos últimos sessenta anos uma das maiores figuras do teatro português. Não surpreende, por conseguinte, que essa beleza se transporte para a escrita, de que são exemplos os seus livros de memórias, o primeiro “Retrato Inacabado” e o mais recente “No Palco da Memória”. Nessa obra, as imagens, as referências, os espectros, os sonhos, a sua memória mergulham numa articulação ternurenta e estimulante entre o mundo do palco e o mundo quotidiano. É, por isso, deveras consistente, o que afirmou Mário Sério, seu amigo: “Bem fascinante é o seu modo de sondar para além da máscara: uma luta corpo a corpo com a personagem, é o que faz o esplendor da sua arte de representar, é o próprio teatro que é um abismo de fazer vertigens como o próprio homem”.

Esperamos que os registos magnéticos das suas representações se mantenham vivas e em boa qualidade. E com ela concordamos quando diz: “O teatro é aquele silêncio quase sufocante à espera do imprevisto”. “O teatro é feito de pedaços de vida, juntamente com pedaços de sonho”.

Assim na imagem dos portugueses, Carmen Dolores é a Madalena de Frei Luís de Sousa, a Senhora das Brancas Mãos de Casona, a Carmen de João Palmieri, e muitas outras construções criativas podendo concluir, por outro ângulo similar que Tchekhov, Strindberg, Ibsen e outros dramaturgos são criadores que assentam na sua elegância e no seu talento. Ainda hoje, me chega aos ouvidos a palavra… Platonov (de Tchekov)… que pronunciada por Dolores em algumas passagens do texto tem uma sonoridade inebriante, bela e terna como um adeus.

Os atores estão mais perto dos deuses porque podem fingir ser o que não são. É a magia da arte que tem num palco o espaço inspirativo da sua vibração mas cujo perfume permanece uma vida inteira dentro de nós.

Carmen Dolores merece estar no palco da nossa memória pelo virtuosismo magnético do seu talento.

E regresso à sua voz, à sonoridade da palavra que escuto no silêncio do crepúsculo das gaivotas.

 

Joaquim Sarmento