A VIDA DOS LIVROS
de 17 a 23 de fevereiro 2014
Com a morte recente de Robert A. Dahl (1915-2014), autor de «Polyarchy: Participation and Opposition» (Yale University Press, 1971) desaparece uma das figuras mais influentes da ciência política moderna. Foi este professor da Universidade de Yale que melhor soube estudar a democracia como um sistema com potencialidades e limitações, que obrigam a um permanente esforço de estudo comparado e de aperfeiçoamento.
UM SISTEMA IMPERFEITO
Pode dizer-se que Robert Dahl é um dos pensadores da democracia que melhor soube articular a análise das dificuldades inerentes à construção de um sistema naturalmente imperfeito e a consideração dos diversos e complexos fatores que fragilizam a representação e a legitimidade dos cidadãos. Daí a tensão permanente, na sua reflexão, entre a estabilidade política e a igualdade cívica. Os dois elementos estão em constante conflito – como o «homo economicus» e o «homo politicus». Com efeito, a democracia necessita de eficiência, o que apenas se alcança com estabilidade, mas corre o risco de se enfraquecer pela resignação e pela indiferença das pessoas. Eis por que razão a igualdade e a liberdade dos cidadãos tem de ser considerada e fortalecida através de sobressaltos políticos e da consideração efetiva da conquista da igualdade. A partir dos exemplos de Madison e de Jefferson, Dahl, ao longo da vida, disse-nos que não há modelos perfeitos ou acabados nem soluções puras, do mesmo modo que a consideração da fragilidade e da incompletude é não só garantia do respeito da dignidade humana, mas também risco de mediocridade e de perda de energia. Afinal, é entre a legitimidade da origem e a legitimidade do exercício que tudo se passa – numa tarefa sempre imperfeita. A obra de Dahl desenvolve-se em torno de uma verdadeira e fecunda obsessão: o estudo das características, ambivalências e perigos da democracia. Longe da lógica meramente teórica ou normativa e da mera análise passiva sobre o funcionamento dos sistemas existentes, o mestre de Yale procurou articular os diversos temas, afastando-se da mera comparação entre princípios e práticas. E pode dizer-se que não se deixou ficar nas conclusões a que foi chegando, uma vez que foi avançando sempre, pondo muitas vezes em causa as suas próprias conclusões anteriores. Quando em 1961 escreveu «Who Governs? Democracy and power in an American city», pode dizer-se que o tema não mais pôde ser discutido como era até aí. O TLS («Times Litterary Suplement») considerou a obra, aliás, como um dos cem livros mais influentes no mundo, desde 1945. Trata-se de um estudo sobre as decisões políticas na cidade de New Haven que permitiu demonstrar que a prática confirmava o pressuposto de que os diferentes grupos têm a mesma capacidade de se fazer ouvir e de influenciar as decisões públicas, justificando o exercício pluralista da democracia nos EUA.
ENTRE MADISON E JEFFERSON
Para Robert Dahl, a gestão pública nada mais é do que um instrumento técnico inventado para atingir objetivos políticos estabelecidos pelas lideranças eleitas. Sendo o único modo de contrariar as tiranias a participação política, tal pressupõe estabilidade, pluralismo e representação. A questão essencial está, porém, no processo pelo qual os cidadãos comuns influenciam a liderança. Madison, apresentado por Dahl como cético e hobbesiano, defendia uma república não tirânica, demarcando-se da democracia direta, que corria o risco de se tornar despótica e demagógica. Ao invés Jefferson, otimista e lockiano, era favorável a uma maior participação de todos. O certo é que as tiranias mais duradouras foram impostas por minorias organizadas, já que uma maioria de interesses tem grande dificuldade em se constituir num agrupamento estável e em fator de governabilidade. Com o tempo, Robert A. Dahl verificou que o princípio da igualdade política era ameaçado pelas interferências do poder económico, que limitava a participação dos cidadãos. Daí falar de «poliarquia» como o «poder de muitos», que não equivaleria necessariamente ao governo do povo, pelo povo e para o povo. As democracias contemporâneas registam, deste modo, uma discrepância entre igualdade social, liberdade individual e pluralismo político. De um lado, os novos políticos estão mais preparados nas artes da manipulação da opinião pública e no uso da máquina administrativa para arregimentar votos, enquanto haveria o risco da degenerescência das democracias em governos da multidão, contra o qual alertavam já A. de Tocqueville e B. Constant. Assim, o cidadão comum é pouco informado e facilmente conduzido a fazer escolhas políticas contrárias aos seus interesses, enquanto as elites influentes, fortemente racionais e calculistas, são capazes de agir mais eficazmente para atingir os seus fins. As classes médias dos subúrbios perdem-se pela segregação social e pela desigualdade económica. E os partidos deixam de ser guardiães de doutrinas, sendo gestores de coligações rivais associadas para conquistar o poder.
DE NOVO ATENÇÃO À IGUALDADE
Em 1967, Robert Dahl assumiu a presidência da Associação Americana de Ciências Política, no auge das lutas civis no seu país, o que o levou a repensar as suas conclusões, aperfeiçoando-as. Qual seria o catálogo das condições procedimentais e culturais mínimas que permitiriam confirmar a realização do ideal democrático? Perante a imperfeição, importaria proceder a uma análise muito rigorosa sobre as diferentes situações existentes, de modo a corrigir a aplicação de um ideal permanentemente inacabado. A partir de 1971, Dahl vai referir-se à democracia, como governo responsável para todos os cidadãos, tendo a igualdade política como pré-requisito básico; à igualdade, como a referência indispensável para que os cidadãos exprimam escolhas e preferências, igualmente consideradas, para a conduta do governo; e à democratização, como um processo ascendente de contestação política associada à expansão dos direitos de participação. Fala assim de hegemonia fechada quando não há eleições competitivas nem direitos de participação; em hegemonia inclusiva quando não há eleições competitivas, mas direitos de participação; em oligarquia competitiva quando há eleições competitivas sem inclusão política e em poliarquia no caso dos regimes inclusivos, abertos à participação política. E Dahl refere caminhos diferentes de chegada à poliarquia: ora a liberalização precedeu a inclusão (como na Inglaterra e na Suécia); ora a inclusão veio antes da liberalização (como na Alemanha); ora houve um processo de simultaneidade (como em França). No entanto, não pode falar-se de inclusão e liberalização sem considerar o desenvolvimento económico, impulsionado por três fatores: o acesso à educação, à informação e à comunicação: o pluralismo político e a redução das desigualdades nos rendimentos. E aqui está uma das chaves de grande atualidade relativamente ao pensamento de Robert Dahl: é que a estabilidade e a igualdade estão intimamente ligados, alternando a sua influência relevante. Fernando Vallespín fala, pois, de um sentido profético no seu pensamento: chamando a atenção sempre para a sua máxima preocupação sobre o perigo para a saúde democrática resultante da globalização, da concentração do poder económico e do agravamento das desigualdades. A poliarquia começa por se apresentar como justa e virtuosa, mas corre o risco de se corromper, assumindo a monstruosidade do Leviatã, não por via da repressão, mas por força da apatia política, da resignação pública, que cede campo ao egoísmo especulativo do «homo economicus»… Que maior atualidade?
Guilherme d'Oliveira Martins