MARCEL PROUST
portrait par Jacques-Émile Blanche
Marcel Proust, escritor que viveu entre 1871 e 1922, continua a ser, na sua substância, um ilustre desconhecido, sendo certo que muitos o folheiam, mas poucos prosseguem a sua leitura até ao fim. A publicação do primeiro volume da sua obra “Em Busca do Tempo Perdido” foi recusada pela editora da Nova Revista Francesa (N.R.F.), recusa assinada por André Gide, decisão que se tornou num enorme escândalo e que levou aquele futuro Nobel a confessar que tal decisão constituía o maior remorso da sua vida.
Ao lermos e relermos as cerca de 3ooo páginas que perfazem os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, Proust chega a parecer possesso de inspiração, tal a frescura da sua escrita, ondulada por uma imaginação inaudita que transporta para os retratos dos personagens que povoam a obra romanesca uma profundidade que nos confunde.
O frémito de felicidade que o assalta, quando, numa manhã de inverno, levou à boca uma colher de chá, “onde deixara amolecer um pedaço de madalena...”e foi invadido por um prazer delicioso, ”um prazer isolado, sem a noção da sua causa…” e mais tarde, tem as mesmas sensações quando pisa as pedras irregulares do palácio do príncipe de Guermantes, está imbuído duma magia que as leis da psicologia não explicam de todo.
Dizem alguns estudiosos de Proust que este, no fim da sua vida se refugiou num quarto da Boulevard Haussmann, entre fumigações e narcóticos, o que poderá a levar a pensar que teria escrito a obra, sob o efeito da droga. Verdade ou não, o certo é que construiu a bomba atómica da literatura como um crítico designou “Em Busca do Tempo Perdido.” É uma viagem que enceta no Tempo, o “Tempo que habitualmente não é visível e que para o ser, procura corpos e, onde quer que os encontre, se apodera deles para neles projetar a sua lanterna mágica.”. Não surpreende, por isso, que o escritor descreva os seus personagens como “bonecos mergulhados nas cores imateriais dos anos”.
Proust não acredita numa literatura que se limita a descrever as coisas e um extrato delas, mas sim aquela que permite a comunicação do nosso “eu” presente com o passado, cuja essência é conservada pelas coisas e, com o futuro, no qual elas “nos incitam a saboreá-las de novo”.
Os personagens “proustianos” são moldados pelo Tempo, são estátuas que nascem, crescem, envelhecem e morrem e cujas transformações resultam do facto de serem um efeito do tempo perdido que a memória capta sabiamente. O seu retrato é diacrónico e sincrónico, o que possibilita observar-lhes as linhas de continuidades e descontinuidades no seu rosto e no seu espírito, no seu caráter e nas suas opções doutrinárias, afetivas e comunicacionais. Esse escultor implacável que é o Tempo, tudo devora, incluindo os melhores vestidos e tem a particularidade de vencer o disfarce e as aparências mais sofisticadas.
“La Recherche” não é um livro de duques e duquesas. É um fresco da sociedade parisiense do seu tempo, cujos salões mundanos o autor frequentou, numa época que capta a última década de oitocentos e os anos que antecedem a primeira guerra mundial. É a designada “Belle Époque” que atravessa a sociedade francesa, num período de prosperidade e desenvolvimento e que no aspeto cultural atinge um apogeu, só comparável aos primeiros tempos do iluminismo. É nos salões de Madame Aubernon, de Armand Cavailher ou da Condessa de Grefulle que Proust vai buscar a inspiração para ungir e gizar os personagens que povoam os salões dos Guermantes e dos Verdurin, as famílias mais reluzentes do romance de Proust.
Nesses salões encontra Swann, a estrela nuclear da obra. É a estrela das visitas a casa dos pais de Marcel e cuja silhueta o transporta ao último beijo materno que antecede o sono das noites de infância e aos seus amores pela filha Gilberte, passados nos Campos Elísios. Condensa o que o “faubourg” tem de mais criativo no campo da cultura. O Swann que levava para a casa dos pais de Marcel cestos de fambroesas era o mesmo que constituía: “um dos membros mais elegantes do Jockey-Club, amigo íntimo do Conde de Paris, um dos homens mais requestados da alta sociedade do faubourg Saint Germain”.
É através de Swann, de “nariz curvo, de olhos verdes, debaixo de uma testa alta de cabelo loiro quase ruivo” que nos penetra nos diversos domínios do saber e entretenimento. Ao conceder-lhe ascendência judaica, o autor adensa-lhe o mistério e a inteligência, já que a sociedade do seu tempo era predominantemente anti-semita e vivia atormentada e dividida pelo processo “Dreyfus”.
É um ciclo onde a aristocracia em declínio e a burguesia em ascensão se confrontam e confluem. O salão dos Verdurain exprime “grosso modo” a nova burguesia endinheirada que não tem títulos nobiliárquicos para seduzir fiéis, mas tem, em contrapartida, dinheiro para os cativar. O “clã das quartas-feiras” é constituído por figuras da vida mundana, da política, da arte e dos meios académicos.
A Senhora Verdurain, a “Patroa”, congrega alguns dos condimentos mais perversos da alma humana: Astuta como a raposa, ágil como o lince, vaidosa como o corvo, perigosa como o crocodilo, a “Patroa” atraía ao seu clã as mais diversas personalidades, que manipulava a seu bel prazer. Pelo seu clã desfilam Odete de Crécy, a cocotte Odete que conquista o amor de Swann e o Barão de Charlus, figura que entronca a homossexualidade, comportamento sexual que acompanha outros personagens relevantes do romance, como é o caso de Albertina, um dos amores de Marcel.
Contudo, é nos salões dos Guermantes e nas presenças sociais destes, mormente os da deslumbrante duquesa Orianne, que o esplendor do luxo e a frivolidade decadente melhor se entrelaçam, e onde o narrador melhor exibe o seu “eu”.
No último volume ” Tempo Redescoberto” as figuras proustianas ou já pereceram ou estão na posse das traças do Tempo, Tempo que a memória descreve mas que devora os seus objetos numa lentidão predadora.
Proust transporta até ao limite do infinito do olhar, uma profundidade, não comparável com qualquer outra obra literária, a relação da consciência humana com a espessura do tempo. Este é fraturado por Proust, através duma memória afetiva que lhe capta os “flashes” mais significativos e que retratam a força intrínseca da alma humana. O Tempo deixa-se fotografar ou fraturar, mas não deixa de colocar nos fragmentos que lhe arrebatamos as suas marcas felinas ou outonais, transformando-os em folhas caídas.
Esta crónica é uma modesta abordagem à obra de Proust e, por isso, múltiplas coisas ficaram por dizer. Não posso, contudo. deixar de referenciar Orianne, a duquesa de Guermantes, amiga e admiradora de Swann que possuía “olhos de ónix” e só gostava de “veludo com diamantes” e que Marcel, em criança amou ardorosamente.
“Em Busca do Tempo Perdido” é uma obra perfeita e sublime. É uma universidade de luz, de inteligência e de saber. E o maior hino à língua francesa.
JOAQUIM SARMENTO