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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A MUSICA DA MÃO…

 

Minha Princesa de mim:

Mais uma manhã, mais um esforço de reconstrução desta fortaleza que o tempo e seus caprichos vão gastando. Sozinho, sereno, rezei de madrugada assim: temos duas mãos que para rezar juntamos ou juntas abrimos para tapar a cara e chorar ou ainda as unimos para pedir perdão e de novo a rezar as abrimos para perdoar e limpos nos unimos dando cada mão a quem talvez nos espere de um e do outro lado do nosso sentir... Eis o que, tivesse eu dote, seria um poema sem pontuação possível, como angústia grávida de alegria... Já de janela aberta, à luz de um sol envergonhado, reli a Histoire de Pauline da Mme.de Staël: sombrio signo, funesto fado o dessa jovem que, na França iluminada e pré-napoleónica, padece a libertinagem de uns e o rigorismo canónico de outros. Como numa tragédia grega, em que são incapazes de respirar as almas humanas, porque assim as determina o capricho dos deuses... Tarde demais perceberá Eduardo  - e, afinal, pela antevisão do sacrifício fatal de sua mulher  -  que a pureza inicial não é necessariamente uma imaculada conceição, será muitas vezes mais o milagre do regresso do filho pródigo. Tão lindamente nos conta Mme.de Staël o amor novo de Pauline, que não resisto a transcrever: Nunca conhecera ela o sentimento que agora experimentava: como comparar esse amor puro e terno, que confunde a nossa vida com a de outro, que jamais nos permitirá viver sem ser para ele, com aquele delírio de uma imaginação desgarrada que, querendo adiantar-se à felicidade, para si toma o primeiro objecto oferecido aos seus olhares e, prontamente desenganada, em vão procura prolongar a sua ilusão. Magoada e tolhida pela pesada lembrança do seu passado, Pauline hesitará até ao sacrifício. Se Medeia foi vítima da sua autofagia amorosa, a trágica Pauline se destruirá pelo peso imperdoável de pecados infantis. Assim, em sociedades de civilização cristã, por vezes a maldição furiosa de deuses pagãos e ciumentos tem vencido, no coração dos homens, o puro gesto da misericórdia, a mão de Deus que cada um de nós pode dar a um e outro lado do nosso sentir. Se ontem fui escutando o C.Ph.E.Bach interpretado pelo Andres Staier ao pianoforte, silencio-me hoje com as sonatas para violoncelo e piano de van Beethoven (literalmente,em bom flamengo, o "de hortas de beterrabas", como se divertia a dizer o nosso avô Camilo) em registo do Mischa Maisky com a Martha Argerich ao piano. Há quem diga, muito justamente, que foi Ludwig van Beethoven o inventor da sonata para violoncelo e piano. O violoncelo já fora antes destacado como instrumento solista  --  e não mero acompanhante  --  em concertos de Bach, Vivaldi,Haydn e Boccherini. Também Mozart ajudou à sua "libertação"... Mas as primeiras sonatas para violoncelo e piano terão sido as nº1 e 2, opus 5 de Beethoven, compostas em 1796, no ano em que o futuro autor da sinfonia coral (a 9ª) produziu as doze variações sobre o tema Ein Mädchen oder Weibchen de Die Zauberflöte de Mozart. Essas sonatas algo devem ao "contraponto bachiano" ou, ainda, ao "diálogo" dos concertos mozartianos. Mas têm muito a ver com o grande pianista que Beethoven também foi, e com uma sentida necessidade de comunicação com outro instrumento. Na verdade, já se compunham e executavam sonatas para piano solo ou para violino e piano, mas não ainda para violoncelo e piano. Na corte de Berlim, no reinado de Frederico Guilherme II, sobrinho e sucessor de Frederico o Grande, se encontrou Beethoven com Jean-Pierre Duport, violoncelista francês, filho e irmão de violoncelistas, 29 anos mais velho do que ele. Era esse músico primeiro violoncelista da capela real da Prússia, e fora ele que ensinara Frederico Guilherme, quando ainda príncipe herdeiro, a tocar aquele instrumento. Fê-lo bem, pois o futuro rei se tornou num considerado excelente executante. Terá sido para Duport que Beethoven escreveu a parte para viloncelo das sonatas opus 5. Já em 1762  -  ainda não nascera o compositor alemão e o violoncelista francês tinha apenas 21 anos  -  o Mercure de France escrevia sobre Jean-Pierre e o seu violoncelo: Nas suas mãos, o instrumento já não é reconhecível: fala, exprime e torna tudo mais encantador do que o que pensávamos ser exclusivo do violino. O vigor da sua execução é sempre acentuado pela mais exacta precisão na superação de dificuldades de que ninguém pode ter ideia sem conhecimento do instrumento. Parece ser unânimemente aceite que este jovem é o fenómeno mais singular que surgiu nos nossos salões... Fosse porque o virtuosismo de Duport lhe tivesse aberto novas pistas para explorar as potencialidades sonoras e melódicas do violoncelo, fosse ainda para agradar ao rei melómano e violoncelista, o certo é que então inaugurou Beethoven o modo das sonatas para violoncelo e piano. Ou talvez isso se deva sobretudo ao prazer que o próprio compositor sentia de tocar o seu piano acompanhado pelo violoncelo de Jean-Pierre. Curiosamente, já anteriormente, em Abril de 1789, Mozart esperara ser recebido pelo mesmo Frederico Guilherme em Potsdam, mas foi acolhido apenas pelo violoncelista francês. E sobre um minueto deste, compôs Wolfgang-Amadeus as suas variações para piano, em ré maior, KV573. Àquele rei também Joseph Haydn ofereceu o manuscrito das suas seis sinfonias Parisienses e dedicou os seis quartetos opus 50, por isso hoje designados Quartetos Prussianos, que aliás iniciaram, em 1787, uma corrente contínua de produção, pelo mesmo compositor, de belíssimos e venerados quartetos para cordas. Por Prussianos são também conhecidos os quartetos mozartianos KV575, 589 e 590, publicados em 1791, os únicos compostos na sequência de uma encomenda do rei que, após o incidente de Potsdam, recebera finalmente Mozart em Berlim, onde este tinha ido assistir a uma representação de Die Entführung aus dem Serail. O protagonismo do violoncelo faz-se sentir sobretudo no 575 e nos dois primeiros andamentos do 589. Para tua recomendável hilariedade, transcrevo o relato de um episódio, quiçá imaginário, do encontro de Wolfgang-Amadeus com Frederico Guilherme, em 26 de Maio de 1789, na corte de Berlim, onde o compositor fora convidado a dar um concerto. Conta Johann Friedrich Rochlitz (1769-1842), chefe de redação do Allgemeine Musicalische Zeitung, de Leipzig, jornal onde publicou, de 10 de Outubro de1798 a 27 de Maio de 1801, vinte e sete histórias acerca de Mozart, numa série intitulada Anedotas certificadas exactas tiradas da vida de Wolfgang Gottlieb Mozart. Contribuição para um melhor conhecimento desse homem como ser humano e como artista, na anedota nº2: Certo dia em que ele e o rei estavam sós, o rei perguntou-lhe o que pensava da orquestra da corte de Berlim. Mozart, a quem nada era mais alheio do que o elogio, respondeu: - "Vós tendes a maior colecção de virtuosi do mundo, e nunca ouvi um quarteto tão bom como aqui, mas quando tocam todos juntos podiam fazer melhor... Sinto-me eu melhor, hoje. Dou-te a mão.

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira