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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ONDE SE FALA DO 7º PRÍNCIPE DE CONDÉ…

 

Minha Princesa de mim:

 

Luís Henrique de Bourbon-Condé, 7º Príncipe de Condé, neto de Luís XIV  -  posto que sua mãe, Luísa Francisca de Bourbon era filha legitimada do Rei-Sol e de sua amante a Marquesa de Montespan  -  foi milionário, primeiro-ministro e grande caçador. Caçador a cavalo, pelo que, no seu Chateau de Chantilly, base das suas caçadas na Oise, mandou construir uma estrebaria que albergava 240 cavalos, 500 mastins e uns 100 criados. O edifício ainda hoje é considerado exemplar notável da arquitectura civil do seu tempo (como o convento-palácio de Mafra em Portugal).  Testemunha da paixão cinegética daquele aristocrata de sangue real? Sim, e muito mais: Luís IV de Bourbon-Condé, séptimo príncipe do título, acreditava na metempsicose e sentia que,na reincarnação seguinte, seria um cavalo. Quem não tinha bem aceite ser metamorfoseado num quadrúpede cornudo fora o Marquês de Montespan, marido legítimo de sua avó, que acabou exilado nos seus domínios, por ter ruidosamente protestado, em Versailles, contra o favoritismo com que Luís XIV começara a tratar a senhora marquesa, sua mulher, da qual o rei aliás teve sete filhos. Mas falemos de metempsicose. Tal crença, como sabes, é ainda comum na Índia, como no budismo, e teve também acolhimento na filosofia de Pitágoras, e mesmo Platão. No século XVIII teve alguns prosélitos. A questão da imortalidade da alma humana é antiquíssima, já os mitos babilónicos do Sábio Supremo (Atrahásis) e da epopeia de Gigalmesh  -  que inspiraram as narrativas da criação do homem e do dilúvio do bíblico livro do Génesis  -  se debatiam com essa interrogação inicial e inevitável da condição humana, trânsfuga da natureza: -  e depois? Ou como no quadro de Gauguin, em cenário polinésio de paraíso terrestre: -  quem somos, donde vimos, para onde vamos? Claude-François-Xavier Mercier morreu em 1800, aos 37 anos. Fora editor-livreiro, republicano e revolucionário, mas vítima também de la Terreur de Robespierre. Deve aliás à queda deste o ter escapado à guilhotina. Mas na prisão política, ou depois dela, escreveu Les Nuits de la Conciergerie, rêveries mélancoliques et poésies d´un proscrit: fragments échappés au vandalisme, obra publicada em 1795, no Ano III da Revolução. No sonho ou visão nº 5 dessas rêveries, intitulada la réproduction des êtres ,fala da circulação do espírito vital de que a metempsicose será um modo possível. E Voltaire defende, no seu artigo Métamorphose. Métempsycose, que esta é um dogma natural. Já Louis-Sébastien Mercier, de apelido homónimo do Claude-François, escrevera, em 1771, num livro de ficção utópica L´An 2440 (!!!) que o espírito da Revolução se iria mantendo pela reincarnação contínua das almas dos seus actores... O outro Mercier, na sua 6ª visão, a que chama La Métempsycose, conta, afinal, uma experiência espiritual em forma de sonho. Mas, sonho ou realidade, a imortalidade da alma é uma vocação do homem. A morte final é-nos íntima e intensamente repugnante. O contador que lemos foi medíocre escritor. Mas aqui traduz, com a angústia da experiência que o confrontou com a iminência da morte numa aterradora prisão, essa antiquíssima interrogação: «Estava morto há dois anos; e o Ser supremo, sensível às desgraças que tinham marcado cada instante da minha vida terrestre, ordenara que as almas de todos os patriotas que tivessem sido vítimas do furacão revolucionário poderiam reanimar outros corpos. Grande alegria no império dos mortos. Cada um daqueles que o decreto devolve à existência irá escolher nova habitação para a sua alma; é inútil observar que, fiel às leis da igualdade, se procurasse sobretudo a envolver a sua apenas no despojo glorioso de um valente republicano morto em defesa da liberdade. Tal foi o meu lote.» E assim regressa o nosso herói à sua cidade. Com outro aspeto, não será imediatamente reconhecido pelos seus, mas a força do amor mútuo acabará por reencontrá-los, Será veemente o abraço a sua mulher, que fielmente o esperou, tomando bem conta do filho de ambos. Mas então se acaba o sonho, quando um som horrível de chaves e as vozes roucas de carcereiros bruscamente me arrancam das doçuras do sono... De redor de si desapareceram os antigos companheiros de infortúnio, e já outros desgraçados os substituiram. O abismo devorou tudo o que me rodeava, e semelhante ao altivo castanheiro que,resistindo aos golpes devoradores da tempestade,sobrevive a todas as árvores que o cercavam,eu esperava o instante em que o meu último sonho desse lugar à eternidade do nada...  ...Oh!  por que nome chamar-vos,monstros,que nos fazeis ver a nossa soberana felicidade na nossa destruição!!! Também Gilgamesh, rei da famosa cidade de Uruk, quis em vão escapar à lei universal da morte. Essa história, devo-a a Jean Bottéro, leitor e tradutor de cuneiformes há milénios manuscritos em placas de argila mesopotâmica. Colosso possante, tirano excessivo, entenderam os deuses opor-lhe adversário à altura, na pessoa de Enkidu, selvagem inculto. Na sequência do combate que travaram ,tornaram-se afinal como que nas duas faces de Janus... Juntos e contrariando a vontade dos deuses, derrotarão e matarão Humbaba, guardião dos cedros, e também o celestial touro que contra Uruk fora mandado por Ishtar, deusa-mulher por excelência, padroeira simultânea do amor e da discórdia, que Gilgamesh repudiara. Essas vitórias despertaram a cólera vingativa dos deuses, levando-os a condenar Enkidu à doença e à morte, assim privando Gilgamesh do seu alter ego. O nojo dessa morte determinará o nosso herói à procura do Supremo Sábio, sobrevivente do Dilúvio e conhecido por Encontrei-a-minha-vida. Perguntar-lhe-á a razão da sua imortalidade, e o Sábio lhe dirá que fora salvo do Dilúvio pelo deus Enki, a fim de assegurar assim a descendência dos homens. Mas tal salvamento sendo irrepetível, só a pedido de sua mulher em lágrimas, Encontrei-a-minha-vida revelará o esconderijo da Árvore da Juventude, a que Gilgamesh poderá ir buscar a mezinha que o remoçará sempre que chegar à velhice. Achá-la-á, depois de muitos perigos e fadigas. Mas a planta milagreira lhe será roubada por uma serpente. Finalmente, Gilgamesh regressará a Uruk , onde procurará ser, até ao fim da vida, um rei clemente e justo. O mito de Atrahasis ou Supremo Sábio é anterior a esta epopeia e conta-nos que, no princípio, só os deuses existiam, imortais, ainda que vivessem como vivem os homens. Assim, naquela divina sociedade, muitos trabalhavam arduamente na produção dos luxuosos bens de consumo que os deuses superiores consumiam. Por isso, os deuses inferiores apresentaram a Enlil, suprema divindade, as suas reivindicações. À ameaça de revolução responderá o mais astucioso dos deuses nobres, Enki, propondo que sejam criados os homens, e lhes sejam entregues essas mais duras tarefas. Assim foi. Só que, gozando de longa vida e sendo trabalhadores alegres e eficazes, os humanos crescem e multiplicam-se, ao ponto de chegar ao céu e incomodar Enlil o rumor que fazem. Logo a suprema divindade decide diminuí-los, enviando-lhes a doença, a seca e a fome. Mas Enki afasta o perigo, prevenindo e aconselhando o Supremo Sábio, rei dos humanos. Louco de fúria, Enlil envia-lhes então as águas genocidas do dilúvio. Desta vez, Enki apenas conseguirá preservar o Supremo Sábio, refugiando-o num barco, onde sobreviverá, de modo a assegurar a descendência dos homens, que eram invenção do mesmo Enki. Findo o Dilúvio, o Sábio confecciona um banquete para os deuses famintos que, entretanto, não tinham tido quem os servisse. Vendo que fora novamente enganado, Enlil imporá a Enki a determinação de que a vida humana se confine a um tempo muito mais curto do que a eternidade dos deuses... Não sei porquê, lembrei-me agora do Fantôme Espagnol,divertida aventura dos Bob et Bobette, que te contarei noutro dia. Por ora, digo-te, esta manhã, a lembrança de um conto intitulado Suave Milagre, do português Eça de Queiroz, que reli num dos livros que o nosso Alberto me deixou. Termina assim: «A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: - Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno e com um mal tão pesado,e que tanto queria sarar!

   E a mãe, em soluços:

   -- Oh meu filho,como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia e curta a piedade dos homens. Tão rota,tão trôpega,tão triste,até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado,e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe,o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. 

   De entre os negros trapos,erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam,a criança murmurou:

   -- Mãe,eu queria ver Jesus...

   E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

   -- Aqui estou.»

   E eu aqui tão longe, tão perto de ti ao invisivelmente te dar a mão fiel.

 

        Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveir