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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O “Não” de António Vieira

 

António Vieira, o “imperador da língua portuguesa”, como o designou o enorme Fernando Pessoa, dizia que o “Não” é terrível.

A sua longa vida foi uma conta-corrente de múltiplos “Não”, em oposição aos poderes reinantes da sua época.

Ardoroso defensor da causa das Missões do Brasil e dos direitos dos índios, verberou os comportamentos da sociedade portuguesa, incapaz de compreender e de secundar o seu idealismo missionário. Daí encontrarmos em muitos dos Sermões de Vieira críticas contundentes aos poderosos do seu tempo.

A sua energia acusatória é uma constante dos seus Sermões, enunciando-se aqui, a título de exemplos o “Sermão de Santo António aos Peixes”, “Sermão do 3º Domingo da Quaresma de 1655, pregado na Capela Real e “Sermão do Bom Ladrão”, pregado na Igreja da Misericórdia, em Lisboa.

O “Não” de Vieira era contundente e zurzia-se contra os seus superiores jesuítas, contra os agentes do poder e rapidamente caiu nas malhas da Inquisição. O Santo Ofício não suportava o ardor do missionário Vieira e vislumbrava no exercício das suas competências um perigo para a sociedade e valores  caducos que nela predominavam.

É certo que a forte personalidade e a superior inteligência e cultura de A. Vieira também arrastaram o apoio e admiração de poderosas figuras da época como o Rei e duque de Cadaval, seu futuro sucessor. Numa das suas idas a Roma conseguiu mesmo do papa Clemente X a garantia da isenção relativamente á Inquisição portuguesa, ficando para sempre sujeito apenas á jurisdição do Santo Ofício Romano, que o absolveu de todas as penas até então proferidas contra si.

É certo que a admiração e proteção do  monarca permitiram ao incansável andarilho obter a provisão régia a favor da libertação dos índios, pela qual foram mandadas recolher todas as expedições que andavam pelo sertão do Maranhão a capturar índios e obrigando os captores a libertar todos aqueles que tinham cativos. A reação dos colonos foi violentíssima. Esgrimindo-se na qualidade de superior da missão, Vieira mandou julgar e degredar os cabecilhas da oposição e consagrou todas as suas energias á preparação de novas expedições.

Apesar destes sucessos, resultantes da sua gigantesca atividade diplomática, desenvolvida entre o Brasil e Portugal e entre este e Roma, os seus inimigos não desarmaram.

 Após a morte de D. João IV (6.11-1656),a perseguição ao emérito jesuíta intensificou-se. A tal não foi alheia a reiteração das suas ideias visionárias acerca das profecias do Bandarra e da sua aplicação ao papel de D. João IV como a cabeça suprema do Quinto Império, que a morte viera tornar de todo o impossível. Mas mesmo que morresse teria por força que ressuscitar, para que pudesse encabeçar o futuro reino universal de Cristo na Terra. Esse “bandarrismo” foi defendido por A.V. em dois sermões, proferidos em Maranhão, de cujo texto apenas se conhece uma parte. Conseguiram, entretanto, os inimigos do insigne jesuíta, por processos de tirânica maldade, divulgar o conteúdo de uma carta dirigida ao Padre André Fernandes, bispo eleito do Japão, no qual Vieira se alargava em considerações acerca do missionarismo de Bandarra. O seu novo pensamento convertia-se de uma nova conceção do Sebastianismo, segundo o qual o regresso do Rei Encoberto não trazia já D. Sebastião. Mas significava, de acordo com o atrás alegado, o advento de D. João IV. Entretanto, no Reino fervilha a intriga feroz, A incapacidade do Rei Afonso VI gera uma disputa feroz pelo poder. Vieira não se intimida e em princípios do ano de 1662 desfere do púlpito da Casa Real um tremendo libelo contra os colonos, o que lhe vale praticamente o regime de residência fixa, verdadeira prisão, já que ficava impedido de regressar ao seu querido Brasil. Em fins de Maio de 1622, foi notificado para se apresentar no Tribunal de Santo Oficio de Coimbra e a 21 de Julho submetido ao primeiro interrogatório. Cinco anos e meio depois, nas vésperas do Natal, após os autos terem sido remetidos a Lisboa e a Roma, era proferida a sentença, não em auto público de fé, mas na sede do Colégio da Companhia de Coimbra.

Apesar de se ter retratado quanto às afirmações consideradas erradas e de se ter submetido, como filho obediente da Igreja às determinações do Papa, via-se para sempre privado da sua voz crítica e da capacidade de pregar, devendo viver recluso numa casa da Ordem a determinar pelo Santo Ofício.

Não há dúvida que foi o movimento da restauração que concedeu á obra de António Vieira a coesão de pensamento e de discurso que a caracterizam. Pôde construir uma imagem do Homem, onde a consciência da debilidade terrena lançava sombras de pecado e de miséria, mas a ser redimida por Cristo. Os fundamentos teológicos do seu pensamento inseriu-os numa obra que nos legou “Clavis Prophetarum”. Nesse Império, o quinto na história da humanidade se reuniriam pela conversão de todos os povos da terra, sob a égide espiritual de um único pastor, personificado no Papa e sob um governo temporal único regido pelo Rei de Portugal. A dimensão universal e divina deste projeto implicava uma forte exigência do seu sentido de pátria. Organizou sempre a sua luta de forma a poder servir a Pátria e os seus contemporâneos de um manual de uma cidadania do futuro, onde cada homem aprenda a preparar a sua ascese á Eternidade.

Como se depreende desta brevíssima e despretensiosa sinopse da vida de António Vieira, o “Não” foi uma arma permanente contra a desigualdade, contra a ambição de poder, contra a intriga e a inveja, contra a injustiça.

Esse “Não terrível” permanece nos nossos dias pelo silêncio a que, nós portugueses, temos votado a obra de António Vieira, um dos grandes escultores da língua portuguesa.

O “Não” de António Vieira é uma obra humanista e uma obra de arte.

 

Joaquim Sarmento