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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

COMO ÁRVORES ANDAMOS…

 

          Minha Princesa de mim:

 

Envelheço, já te lo tenho dito. E repito. Quando falo ou escrevo, se por qualquer razão sou interrompido, perderei sempre o fio à meada. Retomá-lo-ei, quiçá, mais adiante, mas não garanto que o fio seja do mesmo novelo... Numa das cartas que te escrevi, talvez a que recebeste antes desta, o telefone tocou quando eu recitava o verbo solor, solaris, solari, solatus sum... Saiu-me solaratus o particípio, tive uma qualquer esquecida conversa, e só agora me relembro do resto: ia dizer que solatus sum (consolei, sou consolador) será, é, necessariamente consolatus sum (estou consolado). Quando passo de mim para o outro, o que dou é já o que me foi dado. Como se, não tendo nada, déssemos o que já recebemos. Eis o que  queria dizer-te, e não soube. Talvez por isso tivesse pensado esta manhã que um velho  é uma árvore enraizada, já não se mexe... Mesmo o seu discursar se perde ao som vário de ventos que já não sabe. Subterrâneas permanecem as raízes que a semente criadora deixou bem fundas, mas contendo-se, quase imóveis, como os ramos que ainda vão estendendo abrigo e sombra. Li hoje, no evangelho segundo S. Marcos, o relato da cura de um cego. Primeiro, Jesus tomou o cego pela mão e levou-o para fora da localidade. Depois deitou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e perguntou-lhe; "Vês alguma coisa?" Ele abriu os olhos e disse: "Vejo pessoas, que parecem árvores a andar". Em seguida Jesus impôs-lhe novamente as mãos sobre os olhos e ele começou a ver bem: ficou restabelecido e via tudo claramente. E então Jesus mandou-o para casa e disse-lhe: "Não entres sequer na povoação". Porquê esta interdição? Para que o cego não contasse que, no milagroso decurso da sua cura, reconhecera primeiro as pessoas como árvores que andam, e só depois entendesse claramente que o sentido de tudo nos é dado pelo olhar do homem? Se a semente morta e enterrada renasce e cresce e dá guarida, não poderá a árvore velha mexer-se? Mas para onde irão as árvores que andam? Até onde alcança o meu olhar? Por pensar em árvores, lembro-me de Zaqueu, empoleirado numa para poder ver Jesus que passa. Assim se curará de outra cegueira, ou talvez da mesma, é-me difícil explicar como o nosso olhar se transforma e vê bem, quando claramente percebe que são gente mesmo as árvores que andam. Que as raizes que nos prendem à terra são a nossa comunhão no barro de todos, não nos imobilizam, antes nos fazem sorver o húmus que nos levantará. O ser humano é ser levantado do chão. A imagem de Zaqueu lembra-me frei Maurício Cocagnac, dominicano francês que, acompanhando-se à guitarra, cantava umas cançonetas bíblicas, de sua autoria, aí pelos anos 50/60, quando o padre Duval, este jesuíta, também era trovador de Deus, e eu me deliciava com Georges Brassens... Zachée era uma das canções do padre Cocagnac que, além disso, dirigia a revista Art Sacré, escrevia contos bíblicos para crianças, era também desenhador,quase arquitecto, e amigo de Le Corbusier. Naquele seu cadinho ou almofariz de leituras bíblicas e contemplações de artes humanas, dos sons da vida,do anseio e da esperança  --  frei Maurício tocava,que eu recorde, guitarra e flauta, pelo menos  -  tudo a misturar-se com um alegre sentimento de Deus, e assim nasciam ideias,imagens e melodias... E muitos livros. Um tenho muito comigo: Les Symboles Bibliques. Aí vou respigar uns passos que nos falam de árvores, do poder de fascinação da árvore: A árvore é um sinal da presença da água, logo da vida. A sua sombra é um abrigo. Os seus frutos podem alimentar o homem, mas também podem intoxicá-lo ou levá-lo a pensar que é Deus. Quando é de folha caduca, é um símbolo de morte e de ressurreição. A árvore rebenta, verdeja, estende-se, renasce de um cepo que julgávamos inerte. A árvore sempre verde evoca a eternidade. A semente de uma árvore não tem comum medida com o espaço que ela ocupa no ar e debaixo de terra. A árvore pode ser de essência comum, mas há espécies raras que fornecem madeiras preciosas, capazes de enobrecer a casa do rei e de reflectir a glória do Senhor no seu Templo. A árvore pode ser uma armadilha se a adorarmos, mas os profetas e os sábios conhecem a linguagem da árvore que pode falar de Deus. Lemos no Livro do Génesis que o Senhor Deus fez germinar da terra todas as árvores de aspecto atraente e apetitoso, a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal...  Da árvore de vida, pouco ou nada se tem dito ou representado: uns antigos autores referem que dela se extrairia a ambrósia, iguaria servida aos deuses (igual designação se deu a um doce conventual de ovos cozidos em leite,açúcar e canela...) ou licor de imortalidade; e foi ainda pintada ou desenhada em iluminuras ou tapetes muçulmanos. A Epopeia de Gilgamesh também nos conta que o rei-herói a descobrira, por cumplicidade do Supremo Sábio, o sobrevivente do Dilúvio, por isso nomeado Encontrei a Minha Vida; mas a planta ser-lhe-á roubada por uma serpente... Na narrativa do Génesis, a imortalidade ser-nos-á também retirada por uma serpente  - mas esta estenderá a Eva o fruto do conhecimento interdito, e é pela infracção de um tabú que fomos castigados. E de então por diante muito se tem escrito, desenhado e esculpido sobre o tema do pecado original. Pois ter comido dessa árvore nos condena ao afastamento da outra : O Senhor disse: Eis que o homem se tornou como um de nós pelo conhecimento do que é bom ou mau. Então, que não estenda agora a mão para colher também o fruto da árvore de vida e dele comer para viver para sempre (Genesis, 3,22). Surgirão na Bíblia árvores malditas, sempre ligadas aos temas da infidelidade, do orgulho ambicioso, à ignorância de Deus e da sua palavra (à desobediência). Antes da maldição lançada por Cristo sobre a figueira infrutífera, anatemizadas serão essas árvores verdejantes a que se referem o Deuterónimo e os Livros dos Reis, porque à sua copa se abrigavam cultos e sacrifícios idólatras. Outras, de grande porte, como o carvalho, poderão ser a referência da casa que Deus visita, como a de Abraão, junto aos carvalhos de Mambré: aí saberá Sara que será mãe e Abraão o pai dos povos. (Lembras-te do ícone de Rublev, representando a visão que Abraão e Sara teriam tido dos três anjos que prefiguram a Trindade?). Mas essas mesmas árvores poderão igualmente, como os cedros do Líbano  -  cuja preciosa madeira já Gilgamesh procurara  -  ser material de construção do Templo, e significarem ainda o orgulho dos homens. Como diz Isaías: Sim, será um dia do Senhor Sabaot sobre tudo o que é orgulhoso e altivo, sobre tudo o que se elevou para que seja rebaixado; sobre todos os cedros do Líbano, altivos e altaneiros, sobre todos os carvalhos de Bashan... Como Jesus, nos ensinamentos  sobre a humilhação do orgulho e a exaltação da humildade, ou  na parábola  sobre o grão de mostarda como imagem do reino do céu, o profeta Ezequiel anuncia:  Assim fala o Senhor Deus: "Na copa do grande cedro, no cimo dos seus ramos, colherei um raminho, e eu mesmo o plantarei no topo de uma montanha muito elevada. Plantá-la-ei sobre a alta montanha de Israel. Rebentar-lhe-ão ramos, produzirá fruto e tornar-se-á um magnífico cedro. Todas as aves do céu morarão debaixo dele, todos os que voam descansarão à sombra dos seus ramos. E todas as árvores dos campos saberão que sou EU, o Senhor, que humilha a árvore levantada e levanta a árvore humilhada, que seca a árvore verde e reverdece a árvore seca. EU, o Senhor, digo e faço" (Ezequiel 17, 22-24). Assim encontrei o caminho das árvores que andam. Nesta hora do dia a dia do meu definhar, já não era sem tempo. Tempo para voltar a ser como as criancinhas, a poder crescer  -   olhando para cima sem esquecer o húmus da terra donde vimos e a que, com os outros, pertencemos  -  e sem o orgulho de olhar para baixo com a vaidade ilusória de ter subido mais alto. Assim, como árvores, andaremos. E eu de ramo dado contigo. 

 

       Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira