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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SERÁ A VELHICE SINAL DOS TEMPOS?

 

Minha Princesa de mim:

 

Levantei-me e recolhi ao meu gabinete, ainda não batiam as 6 no oculto e distante campanário que aqui se houve tão bem. Dizem que as Variações Goldberg foram compostas para sedativo do dedicatário, mas eu gosto de as escutar pela manhã, harmonizando o dia. Hoje, todavia, aliei-me à Segunda (ou Nova) Escola de Viena: Schoenberg, o da Verklärte Nacht, abraça-a toda: a noite iluminada e a Escola de Viena. Nasceu nove anos antes de Webern, onze antes de Alban Berg. Morreu seis anos depois do primeiro, dezasseis do segundo. De 1874 a 1951, atravessou as décadas mais dramáticas, orgulhosas, divertidas, interrogadoras e fúnebres da Europa do nosso tempo. Os quartetos para cordas nº 1 e 2, de 1905 e 1908, já nos dizem muito do drama íntimo das consciências europeias. Escuto, no surpreendente silêncio de mais uma manhã que se anuncia, a voz de Margaret Price, tecendo, com as cordas do quarteto Lasalle, o 3º e 4º andamentos do nº 2, ao puxar o fio de um poema de Stefan George (traduzo): 

 

          É profunda a tristeza que me assombra

          e uma vez mais entro, meu Senhor, em tua casa.

          Longa foi a jornada, fraco o meu corpo,

          vazios os cofres, cheia só a minha mágoa.

          Sedenta, a língua anseia vinho para refresco,

          foi duro o combate, rígido ficou o meu braço.

          Dá descanso aos pés que falham,

          alimenta o faminto, parte com ele o teu pão!

          O pesadelo corta-me o sopro,

          esvazia-me as mãos,enche-me de febre a boca.

          Dá-me a tua frescura, sacia tu as chamas

          esquece a esperança morta, manda-nos a tua luz!

          Abertos ardem incêndios dentro de mim,

          e lá bem no fundo ainda desperta um grito.

          Mata qualquer saudade,sara a ferida do meu peito,

          tira-me amor, mas dá-me a tua paz!

 

   Ontem, antes de me deitar, ouvi a 9ª do Beethoven, com a ode de Schiller à alegria, à amizade, mas nem assim me livrei desse mal-estar que me persegue, física e mentalmente, e me vai tornando alheio... É como se já me despedisse. Se  viver é comunicar, e amar é ser em comunhão, sinto-me a falar cada vez mais com o lado de lá da minha última surpresa. Não é cansaço desta vida... será insatisfação? Ou será estranheza? É certo que convivo mal com uma cultura de robotização dos homens pelos padrões de consumo, pela inexplicação das ideias, estas tornando-se, cada vez mais, meros semáforos indutores de comportamentos económicos e políticos, cujas consequências ninguém consegue projectar. Os media, os meios que deviam ser de comunicação humana e social, são hoje meros transmissores de mensagens cuja origem e cujos propósitos ou objectivos  os seus próprios agentes desconhecem, eles mesmos já presas conformadas pelos seus programas. Os discursos políticos, ou esses fogos fátuos que ingenuamente se apelidam de propostas de governo, não passam de promessas enganosas como qualquer publicidade barata... Mais alarmante ainda é ser razoável pensarmos que aqueles que, com ar convicto e esperançoso, as vão fazendo dia após dia, nem sempre serão aldrabões de feira: alguns, coitados, até acreditarão no que afirmam. Uns, que a crise está debelada; outros, que ela se agravou. Nenhum percebe que a crise não é a que pensam... Falam no ar, fora de contexto. Crise mesmo é a lastimável e generalizada ausência de espírito crítico e de capacidade de imaginação de soluções para problemas que já excedem os enquadramentos mentais de uso corrente. O mundo mudou e vai mudando, e há quem se iluda pensando que tudo se reivindica como se reivindicava ou se resolve como se resolvia, quando qualquer processo de solução se esgota e já não serve.  Qualquer solução antes encontrada necessariamente determinou situações e problemas novos, que nos pedem um esforço de lucidez. É o que menos se vê, infelizmente, na feira das vaidades. Tenho-me consolado a ler os Diálogos políticos entre três bêbedos (Sansuijin keirin mondo), escritos por Nakae Chomin (Tokusuke) (1847-1901) em 1887. Quando, no Japão surto da restauração Meiji, se discutia, viva e politicamente, a assimilação possível e desejável de conceitos e valores, éticos, políticos e sociais, vindos do estrangeiro. A conversa dá-se entre um professor original (auto-caricatura do próprio Nakae Chomin?) e um "Cavalheiro" pacifisto-progressista-internacionalista e democrata e um "Valente Guerreiro" tradicionalo-nacionalista, talvez belicoso... Tudo a partir de Rousseau e Montesquieu... Já te disse que as lumières despertaram, e despertam ainda, muito do discurso intelectual japonês... Mas, por estranho que te possa parecer, a alma japonesa, desconfiada e curiosa, terá sido aquela que, no Extremo-Oriente, melhor entendeu o nosso pensarsentir, ainda que o tenha assimilado à sua maneira... Nem sempre bem, diremos nós, ou melhor ainda... Conto-te depois, Dou-te uma mão que descansou na tua.

   

          Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira