A LUZ DE DAMASCO E A NOSSA MODERNIDADE
O poeta Rimbaud declarou, em 1872, que era necessário ser absolutamente moderno, tendo decidido abandonar a poesia, não se coibindo de viajar num circo e acabando por arranjar emprego numa feitoria africana. A realidade, passados mais de cem anos, não confirma tais vaticínios e os confrades poetas de Rimbaud, como Herberto Helder, retomam a ideia do sagrado, na procura de uma nova ordem, onde a inquietude sobreleva.
Assiste-se a um implosão de religiosidade que se reflete em diversas formas de arte, como é o caso da arte sacra, nomeadamente a que entronca com a iconografia de Cristo, a qual suscita um interesse cada vez maior, interesse que não é meramente académico, mas também espiritual, bem expresso nas criações de pintores consagrados, como Nolde, Munch, Picasso, Chagal, Bacon e Rouault. Em alguns dos seus melhores quadros , ao invocarem a figura de Cristo, combatem a sociedade opaca, a sociedade despojada de valores em que vivemos.
Entre os quadros de maior esplendor, escolheria “A conversão de São Paulo”, cujo original podemos observar na parede lateral da Capela Cerasi da Igreja Santa Maria del Popolo, em Roma. Esta obra foi encomendada ao pintor, juntamente com a “Cruxificação de S. Pedro” outra realização soberba.
As primeiras versões dos dois quadros foram liminarmente rejeitadas, consideradas profanas, num tempo histórico (1600/1602) dominado pela Contra-Reforma e seu braço secular, a Santa-Inquisição.
A segunda versão e cingimo-nos nesta texto apenas ao quadro “Conversão de S.Paulo”, de Caravaggio, aceite pelas autoridades religiosas com enormes perplexidades, é, quiçá, a pintura mais revolucionária de toda a história da arte sacra.
Diz a propósito Roberto Longhi: “Caravaggio é mestre das trevas, entreabe-as somente o necessário para não minorar o seu pessimismo viril e trágico”. A espantosa combinação do claro com o escuro fornece ao quadro uma luminosidade sublime, sendo evidente que a luz que incide sobre o cavalo e sobre o apóstolo nos transportam para o milagre da conversão. O cavalo está no centro da pintura e o apóstolo está em terra, disposição que escandalizou a hierarquia da época. Um dos prelados da Igreja de Santa Maria terá mesmo questionado o pintor sobre as razões da centralidade do cavalo, ao que o mesmo respondeu com um indiferente: ”porque sim”. Este cavalo é Deus? Insistiu o prelado. Caravaggio respondeu que não, mas acrescentou: está na luz de Deus.
O fogoso romano Saulo, perseguidor dos cristãos encontra na estrada de Damasco a luz que o ofusca e o inspira a dar outro rumo á sua vida, passando a ser um dos apóstolos eminentes da Igreja.
Nas minhas insónias, nos meus intervalos de reflexão e solidão, penso frequentemente na simbologia dessa luz que cega por breves instantes S. Paulo ( Saulo) e o transforma numa das referências maiores de santidade e apostolado da Igreja fundada por São Pedro.
O mundo globalizado em que vivemos, gerador das maiores desigualdades económicas e sociais, ao contrário do raciocínio de Rimbaud, só pode acertar a agulha da modernidade, deixando-se cegar de luz, como S. Paulo. É nessa luz de espiritualidade que a nova sociedade deve afirmar-se, agregando todos os homens que pugnam pela primazia do homem em detrimento dos bezerros de ouro que adornam o neo-liberalismo, doutrina sem retidão e equidade.
Referenciei “A Conversão de São Paulo” obra emblemática do barroco, como um elemento de eterna modernidade, entendendo esta como elemento de reflexão e perseguição de uma nova ordem de valores.
A arte crística suscita, por isso mesmo, pela sua beleza artística e pelo esplendor dos valores que encerra o exercício do debate sobre a modernidade e nunca a oposição a uma ideia de se ser absolutamente moderno.
Não têm fim as criações artísticas da arte crística que nos comovem e resistem a este tempo de frivolidade.
Recordamos, contudo, o quadro de Rembrandt “Os Peregrinos de Emaús”, cujo episódio tem por objeto atestar a ressurreição carnal de Cristo.
Sendo assim, ser absolutamente moderno é necessariamente um impulso imanente que não se compagina com os arautos e artífices da morte da arte, nas quais se destacam a literatura e as artes plásticas.
Sem darmos por isso, a cada passo, a estrada de Damasco nos ofusca. É essa luz que arrasta as sombras das soberbas verdades que nos inquietam mais que as incertezas dos nossos solstícios, pejadas de uma interrogação permanente.
A modernidade não dispensa a luz de Damasco que o génio de Caravaggio corporiza na sua obra mais célebre. Como não dispensa a poesia de Rimbaud e de todos os poetas que carregam no papiro as dúvidas da sua sagração como homens.
JOAQUIM SARMENTO