Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Tenho sentido hoje muito essa tão grande saudade de ti. Há encontros únicos: em ti toco um mistério muito próximo de mim. Visto de fora, seria talvez uma comunhão alheia, improvável, impossível. Mas assim sentido, com tanta ternura na alma, é como o ser: belo e bom. Sempre e só o amor nos cria. Fora dele há uma água escura que se chama nada. Ocorre-me, neste enredo de alma, triste, relho e velho, que a fortuna em mim deixou durar muito, aquele anagrama de Leonardo da Vinci: L´Amore mi fa sollazar. Escreveu-o numa pauta de música, assim te deixo em grosso as notas re mi fa sol la. L´Amo, em italiano é o anzol que nos prende. L´Amor mi fa sollazar quer dizer o Amor consola-me. É curioso que, em inglês, se diz ainda solace, para conforto,consolação. Do latim solatium ou solacium, que também significa alívio. O verbo latino para consolar, ajudar, acalmar enuncia-se solor, solaris, solari - eu consolo, tu consolas, consolar - mas é depoente: a enunciação termina com solatus sum: estou consolando, consolei. Gosto dele, é um verbo bonito. Se eu fosse chinês ou japonês, e mulher, confundindo as líquidas l e r, diria soror para dizer eu consolo... Rio-me com mais uma das minhas parvoíces, mas quiçá mal: ou não será o amor, afinal, irmandade, confraternização? O contrário de amar talvez não seja odiar (o ódio pode ser amor disfarçado,frustração), mas é certamente alhearmo-nos. Vermos o outro como sendo,definitivamente,um estranho. Recuso-me,como sabes,quase sempre,a dar esmolas na rua - e não dou, nunca, à porta das igrejas. Mendigos há que são negociantes, outros explorados, outros viciados sabe-se lá em quê. A ocorrência, por muito que se repita, incomoda-me sempre. Porque, seja qual for a minha reacção e a justiça que ela possa ter, passo sempre para a outra margem. Houve, naquele instante, a oportunidade de um gesto de mim para um irmão... E eu atrapalhei-me! Se dei (o que é raro), tê-lo-ei feito por falta de coragem, por vergonha, ou ainda com aquela hipocrisia de quem se desmbaraça de uma maçada lançando uns cobres supérfluos. Se ignorei o pedido, mesmo ciente de que há por aí instituições várias de socorro aos necessitados, não terei faltado à caridade? Porque não terei eu corrido o risco essencial do amor, isto é, porque é que não entrei em comunhão com um ser humano que,mesmo aldrabão - e por muito aldrabão que seja,ou fosse ou possa ser - tem comigo esse indelével ponto comum que se chama sofrimento? Quisera eu, minha Princesa de mim, ter esse dom divino da proximidade, da incarnação no outro. Tivesse ou não dado uma esmola, antes houvesse, haja,haja sempre uma palavra amiga, um gesto de simples reconhecimento de uma existência de condição igual à minha, pois esse fico a dever sempre. E quando penso no que poderia ter contribuído para que fosse mais fraterno o mundo - este mundo,mais ou menos ao meu alcance,onde tantas vezes tão estupidamente me agito - percebo, com grande mágoa minha, que o silêncio de Deus é o que nós calamos. Vi há pouco a Dama de Espadas do Tchaikovsky. O libreto escrito por seu irmão Modeste, inspira-se num conto de Pushkin, que Dostoievsky considerava uma obra-prima. Trata uma história de demónio e jogo, desse engano que é o desejo ou a ilusão do ganho, como ganância obsessiva e totalitária, que, finalmente, nos torna estranhos e alheios ao amor. O desejo de possuir tem sempre uma semente de destruição: de outros e de nós. Quando Hermann, servindo-se da oportunidade que lhe abre o amor de Lisa, confunde tudo, o amor e a satisfação do ganho, a vida e a morte, o ser-se e o fantasmar-se, virá a acertar no 3 e no 7 das cartas vencedoras, mas morrerá por perder todo esse ganho ao jogar, em vez do ás, uma dama de espadas, fantasma da velha condessa, conhecida como "Vénus moscovita", deusa material que nunca amara. Amar é estender a mão para a outra margem de nós. Quando te vejo no outro lado e nos damos a mão, entre nós corre um rio que é nosso.
Por todas as perfeitas comunhões, queria dar-te Antoine de Saint Exupéry, alguma coisa esplêndida. Aceita assim, esta toalha de renda, feita pelas mãos da minha avó, essa mesma que, na capela ou na mesa das ceias dos homens, nela tem escrito que se não morre «contra», morre-se «por».
Assim dizemos que o encontro do Direito com a Poesia, em particular, constitui um vivo casamento de um «por». Direito e mão do Poeta coexistem na aproximação à verdade, na procura do interpretar o cerne das coisas.
Ao Direito pede-se, muitas vezes, ordem, enquanto à Poesia se exige transgressão. Contudo, em muitos casos, só se realiza o Direito pelas portas da transgressão, pois que a título de mero exemplo, que mais caminhos são, os dos movimentos de desobediência civil?
E é nosso dever lutar pelo Direito como se luta por um vento corpóreo que dê mais visível verdade ao poema.
Charles Chaplin, com a sua profunda sensibilidade, puxava as orelhas ao jurista que se divorciava das angústias humanas, gritando aos juízes: “não sois máquinas! Homens é o que sois!”
E grita o Poeta que reparte trigo e pão sem outra luz que não seja a de saciar a fome do justo, construindo e glosando o partir, o voltar, o ter, o deter, o calendário e o relógio dos sentires e dos percursos.
O Direito, desenvolvendo-se, geração após geração, numa caminhada sem fim, rumo ao horizonte do dever ser da ordem jurídica, pretende também levar o bem estar à humanidade, em reflexos claros que dissipem as noites dos homens na busca da tutela do jus.
Mas atentemos que a pureza gera distinção, e que a distinção gera intolerância. Porventura a centralidade do Direito e o rumo do Poeta, avaliam os núcleos da natureza das vidas que, as pessoas, numa mole estatística, não questionam, afastadas prematuramente da preocupação pela organização social e dos sentires, que minam a raiz da nossa paz.
E pode nunca haver uma verdade clara para dar aos Homens. E pode haver muitas pressas de certezas que abrem mundos sem harmonia, sem coesão social. Realmente, não é o mesmo, acarinhar a nossa liberdade, ou ter no colo, distraído, uma ditadura embalada pelo ritmo da própria vida.
Aqui chegados, há que dizer o quanto Direito e Poesia perseguem valores, filosofias, liberdades, diferentes regiões do mundo e do saber, tendo presente que maior liberdade, é maior oportunidade no assumir da responsabilidade do que nos é precioso, e atinente, à capacidade de decidir o viver como gostaríamos.
À poesia e ao Direito, também pode suceder, que se atribua uma especial importância ao processo de escolha em si mesmo para que se atinjam as realizações que visamos: isto é, pode vir a revelar-se de grande alcance, o antecipar tanto quanto possível, o saber gerir a caixa mágica que abre o mundo das relações entre Direito e Arte, alimento orgulhoso, guia para uma equidade que aproxima distâncias na fase constitucional das ideias.
É certo que o homem nunca se afastou de expor ideias para fomentar debates, nem nunca se separou da linguagem como base da expressão. De resto, a partir da leitura da clássica Poesia de Homero, os versos produzidos pelo autor, constituem rica fonte de temas para a Filosofia do Direito, ou, por outras palavras, sensibilidade à luta pela verdade, que, de muitas maneiras, define o seu próprio ritmo na criação das normas.
A harmonia evolutiva e a componente emotiva do Poeta, assistem também, deste modo, ao Direito, para que se construa no carril que vai sendo o caminho dos homens, o ritmo prudente e arrojado do futuro, não, de um futuro estático, antes Ilíada e Odisseia, e também muito para lá de Rawls, nunca descurando fontes de iluminação, nomeadamente na abordagem rawlsiana da equidade fundacional.
E eis que o Poeta também tenta deixar ao poema, o evitar qualquer parcialidade na valoração do que descreve, não só pela razão da poesia, na sua sintese, mas igualmente pela razão do justo e da verdade. Afinal, tem a Poesia tal como o Direito, uma relação intima com a religião e com a arte fundadas numa vontade esclarecedora.
E um rio tanto anda que o vão entendendo como fonte histórica, e aceitando no leito, a proposta da garantia juridica dotada de imanente ponderação. Ora, a plausibilidade dogmática de um Direito ambicioso, reside também de muitos modos subjacente ao poema, todo ele autonomia, resposta, preocupação, atributo, colisão, legitimidade, recursos a parâmetros externos e internos de conformidades e inconformidades com os limites, ou, quando não, hábeis nas lacunas que permitem novíssimas interpretações.
Retoma-se a fotografia que documenta o Grupo Fernando Pessoa no Brasil e atesta a projeção da tournée, já pela qualidade dos atores portugueses, já pelo extraordinário conjunto de escritores brasileiros que os rodeiam: e desses escritores brasileiros, os melhores de entre os melhores, temos dado notícia, bem como dos artistas portugueses, o que agora se prossegue.
Recorde-se que a tournée ao Brasil foi feita no âmbito da programação do Grupo Fernando Pessoa, fundado por Fernando Amado no Centro Nacional de Cultura.
Na foto no Rio de Janeiro, vemos na primeira fila Glória de Matos, que já aqui referimos, e ao lado João d’Avila, que agora evocaremos. Ambos aliás ativos e marcantes, passado que foi mais de meio século… Em 1962, eram todos muito jovens. Mas jovens ou não, reuniram, para os ouvir, o que de melhor representa a literatura brasileira contemporânea, como temos visto nesta série de crónicas.
João d’Avila merece também o destaque da sua grande qualidade artística, excelente ator que é. Devemos assinalar a internacionalização da sua formação e da sua carreira. Diplomou-se como ator em Lisboa, no Conservatório Nacional, onde terá tido professores do alto nível de Samuel Dinis, Gino Saviotti, Eurico Lisboa Filho, Carlos de Sousa, Margarida de Abreu, penso que, ainda, Álvaro Benamor. É um dos fundadores do Grupo Fernando Pessoa, em 1960: participa, como vemos, na longa tournée do Brasil e, em 1963, em nova grande viagem por Angola e Moçambique.
Em seguida, muda-se para Inglaterra, onde prossegue estudos na Royal Dance School e na London School of Dramatic Art, integrando o London Theatre Group, onde ficou 10 anos a trabalhar em Inglaterra e um pouco por todo o mundo, em sucessivas tournées.
No regresso, a partir de 1975, continuou até hoje uma carreira diversificada, mas com incidência na revelação ou dramatização de autores portugueses, em textos escritos para a cena ou dramatizações de outras obras da autoria de Almada, Sá Carneiro, Cesariny, Régio, David Mourão Ferreira, Mário Cláudio, Melo e Castro, Lídia Jorge…
E precisamente: Lídia Jorge, no texto que serve de prefácio a uma recente biografia de João d’Avila, considera-o “um imenso ator (com) uma notável capacidade de deslocação no palco, um ator concentrado, ao mesmo tempo na personagem que desempenha em si e que de si faz outra máscara, sempre em conexão perfeita com o conjunto das outras personagens.” (in Luciano Reis - “João d’Avila - do Teatro à Poesia” 2013).
E, por ocasião de nova tournée de João d’Ávila ao Brasil, ao Canadá e a outros países onde trabalhou para as comunidades portugueses e para os leitorados de português em diversas Universidades, Manuel Bandeira, que aparece na fotografia do GFP, afirma - “jamais esquecerei a emoção com que escutei O Menino de Sua Mãe e O Sino da Minha Aldeia ditos por João Ávila”
Resta acrescentar que João d’Avila é autor de pelo menos um texto dramático - “Mater”, levada á cena pela com companhia A Barraca.
And never never do anything eccentric. O mandamento é parcela de uma clássica trilogia local que um e outra jamais terão equacionado sem algures sorrir. Duas figuras icónicas da paisagem pública britânica partem e deixam um palpável sentimento de perda em todos os quadrantes. Ele é um político e diarista e ela é uma master chef e historiadora. — A l'œuvre, on connaît l'artisan! A singularidade de Mr Tony Benn e Mrs Clarissa Dickson Wright leva-os a intenso ativismo pelo direito à tranquilidade. Note-se o Viscount Stansgate patrono da paz com um qualquer cartaz tipo Stop war em rally por Hyde Park-London e eis a filha do Royal surgeon como advogada do countryside style of life com uma espingarda de ilegalizada caça. O efeito igualiza na legião de fãs. —The greatest thoughts come from the heart! Num tempo de frases e gestos resumíveis ao his master’s voice, dois seres autênticos deixam-nos em pleno regresso a new Cold War.
Num dos seus vivíssimos diários, Mr Tony Benn informa do momento em New York quando a capa de uma diretoria telefónica o questiona sobre a formulação do calendário de atividades em 2015, andaria ele então nos seus 90s, para discorrer sobre o leque de alternativas que necessariamente se abre à ação de cada qual além do political digest nas PM Questions ou dos sound-bytes das máquinas partidárias. O quadro ocasional serve ao argumento democrático de um socialista convicto que, desde tenra idade, adota o hábito de todas as noites registar quanto durante o dia lhe acontece. Para a história ficam as memórias do aviador da RAF durante a II World War, Member of Parliament eleito em 1950 como representante de Bristol South East pelo Labour, alguém que renuncia ao título nobiliárquico em 1963 e força à revisão do Peerage Act para permanecer na House of Commons como procurador dos que não têm voz, até ao serviço nos governos de Mr Harold Wilson e Mr James Callaghan entre 1964 e 79. Em linha de coerência, sai de Westminster em 2001 para liderar a oposição no tocante à Irak War.
Someone totally different é Mrs Clarissa DW, também um peso pesado e idêntico gentle humour mas este pautado com nota de senseless. Celebriza-se ao viajar em side-car na série da BBC’ Two fat ladies e ainda hilariante ataque aos vegetarianos e intransigente combate pelo ginger bread, a onion soup ou a qualidade régia dos old cooking books. O desaparecimento da colega Mrs Jennifer Paterson não a retira de cena e procede a pública declaração de impostos ao torrar a £2.8million inheritance. Se com RH Anthony Wedgwood-Benn as situações terão acontecido exatamente como narra, já os episódios históricos da jolly lady decerto não poderiam como tal ter ocorrido. Porém, lógica exemplar: cabendo Paris numa garrafa com ifs and buts, o cozido só prova com ingredientes, medida e mão certa. Parte aos 66 anos de idade e o famossíssimo tea-drinker aos 88.
Em torno de uma Crimea que é igualmente parcela integral no imaginário de todos na república universal das letras, tal qual é o berço cristão na Rússia eslava, produz Mr William Hague assinalável statement face à anexação hoje proclamada pelo President Vladimir V. Putin no St. George’s Hall do Grand Kremlin Palace (Moscow). Para o Secretary of State for Foreign and Commonwealth Affairs, a crise na Ukraine é já um incontornável teste à paz europeia e segurança internacional. — I would not describe it as a new cold war, but that will depend on the course of events over the coming days.
"Por Tierras de Portugal – Un Viaje com Unamuno" de Agustin Remesal (La Raya Quebrada, 2014) é uma recriação, ancorada em testemunhos históricos coevos e na escrita do próprio D. Miguel de Unamuno, da relação do reitor de Salamanca com Portugal, feita de um modo tão especial que Teixeira de Pascoaes chegou a dizer se todos os espanhóis fossem como o escritor de "La Agonia del Cristianismo" isso tornar-se-ia perigoso para nós outros…
UM ROTEIRO APAIXONANTE
Agustín Remesal é um experimentado jornalista, autor de obras importantes sobre a relação raiana luso-espanhola e correspondente estrangeiro na área política, com provas dadas e reconhecimento geral. Venceu em 2008 o Prémio Eduardo Lourenço, galardão máximo dos estudos ibéricos. Com esta obra, realizada no âmbito das comemorações dos 150 anos do nascimento de Miguel de Unamuno (que contará com a participação ativa do Centro Nacional de Cultura), o escritor assina um testemunho de grande interesse, que permite compreender um pouco melhor o amor de Unamuno para Portugal e os portugueses. Se a obra se lê com facilidade, pelos diálogos que procura recriar entre o escritor, a terra portuguesa e os seus amigos do ocidente peninsular, o certo é que também é uma excelente introdução à leitura direta da obra do mestre de Salamanca sobre Portugal. Nota-se que o autor desta obra percorreu cuidadosamente os lugares que descreve, conhecendo-os, possuindo um bom poder evocativo, pelos diálogos que recria. Estamos, assim, perante um roteiro geocultural, mais do que diante de uma análise do pensamento e das influências e reflexões do pensador, mas Remesal nunca pretendeu fazer mais do que fez, dando um pendor quase romanesco a esta sua obra. Daí aparecerem figuras contemporâneas, que Unamuno não poderia conhecer. Sabemos, porém, pelos ensaios do professor salmantino que o diálogo com os seus principais interlocutores portugueses abrangeu temas e preocupações mais amplas do que as relatadas à primeira vista. Trata-se de um roteiro apaixonante em que se sente uma ligação efetiva entre a natureza e um certo sentimento panteísta, por um lado, e uma procura das idiossincrasias próprias justificativas da autonomia de Portugal, por outro. Nesse sentido, o diálogo com Teixeira de Pascoaes, especialmente atento, procurando ser fiel, não só a Unamuno, mas também à importância da obra do escritor de Gatão. São dez os capítulos do percurso, o que nos permite sonhar como se estivéssemos a refazer esse misterioso percurso.. Tudo começa na linha férrea Salamanca – Barca d’Alva e na estação de Fregeneda, entretanto desativada. Depois, temos Coimbra, envolvendo os prazeres sensuais e uma noite de fado, ante o pórtico de Santa Cruz. Segue-se o Porto, onde o oceano começa, entre livros, galeões e gaivotas e a orelha esquerda do rio vinhateiro. Vem Amarante e o sossego do Tâmega, um doce retiro, o vale do vinho verde; e a recordação de um antepassado de Pascoaes, o bisavô, D. Joaquim Teixeira de Vasconcellos, comandante dos Dragões da Rainha, que mesmo morto (a lenda tornou-se avassaladora) sobre a sua montada, pôde reconquistar aos franceses o rincão ancestral da quinta familiar em chamas. Em Barca d’Alva encontramos deuses e cavadores na Quinta da Batoca, o porto e a terra dos Guerra Junqueiro. Braga é a cidade levítica, a harmonia antiga d cidade dos arcebispos, entre o funicular e o monte dos milagres. Lisboa, Alcobaça e Guarda são polos de uma viagem improvisada; entre os rios Alcoa e Baça, situa-se o panteão do amor português, sob a memória intensa e trágica de Inês e Pedro, lugar dos monges de Cister e do amor à terra, Guarda ventosa e húmida e as Beiras, terras velhas de judeus sefarditas, reminiscência de terra prometida. Espinho é o passeio do Atlântico entre o amor e a morte, no encontro com Manuel Laranjeira, com as suas verdades e enganos, entre companhas e outros trabalhos do mar. «Em Portugal (dizia Laranjeira) o suicídio é o recurso nobre, uma espécie de redenção moral». As praias desertas da Figueira da Foz ilustram o longo verão que tem como pano de fundo uma terrível guerra, enquanto os mestres Joaquim de Carvalho e Eugénio de Castro contribuem para dar sentido filosófico, culto e poético a esse lugar atlântico. Por fim, uma viagem final a Lisboa, a convite de António Ferro, numa luzida embaixada de intelectuais europeus em 1935, Gabriela Mistral, Maeterlink, Maritain, Mauriac, Maeztu…, perante a incomodidade de um tempo em que a península ardia em febre, nas vésperas de uma grande tragédia.
"ESTA É A MINHA TERRA!"
A obra de reconstituição memorial merece ser lida de uma ponta à outra, e o leitor dileto e atento contará com o imenso prazer de se tornar testemunha privilegiada do contacto com figuras míticas. Miguel de Unamuno dialoga com Teixeira de Pascoaes: «D. Quixote e Jesus são parentes próximos, talvez irmãos; assim mostrou nos seus escritos. D. Quixote reinara no ocidente, Jesus no oriente. Oxalá que voltem a governar esta terra e que a dinastia saxónica dos traficantes se vá para sempre» - diz o português. E, sobre o suicídio, acrescenta: «A incompreensão da alma sai da nossa tristeza e conduz ao suicídio, esse é o extremo diabólico da saudade». E recorda o suicídio de um irmão seu, para evitar opróbrio de uma humilhação académica. Unamuno lembra ainda Camilo, Antero e Soares dos Reis, e até Alexandre Herculano. Mas o entusiamo do reitor de Salamanca atinge o “climax”, quando diz: «Admirei sempre a capacidade dos portugueses para absorver a paisagem que lhes anestesia a alma como um sedativo». E fala ainda do encontro entre o Marão e o Tâmega e grita: "Esta é a minha terra!". E Pascoaes acrescenta: «A alma lusitana tem a sua origem na fusão dos antigos povos que habitaram a península e na fortaleza destas paisagens. É o fruto de um choque de contrastes entre o mourisco e o celta num bosque druida ou talvez num deserto maometano». E o basco retorque: "Portugal está unido a Espanha por espinhaços rochosos, mas Castela ossuda e austera é tudo menos um jardim, apesar dos grandes rios que atravessam e enlaçam os países da Ibéria. Estas paragens confundem-nos". O celta e o mouro chocam-se. E Pascoaes diz a sua poesia: "Ó Serra das divinas madrugadas, / Das estrelas, das nuvens e do vento / E das águias enormes, chamuscadas / Do sol e dos relâmpagos vermelhos! / Ó trágico Marão…". Há que ler Camões. "Creio que a alma lusitana tanto existe nos seus montes coroados de pinheiros, essas elegias vegetais que sobem até ao céu, como nos versos oceânicos de “Os Lusíadas”. A história de Portugal é uma tragédia erótico-marítima" (Unamuno).
UMA PAIXÃO ESPECIAL
O idílio não é de amor. É a própria natureza, entre o monte e o rio, o Marão e o Tâmega, que faz nascer os sentimentos íntimos das gentes na terra. É a montanha que sela a beleza do amor. Quase a terminar a rota, temos um guia sentimental de Lisboa, escrito num momento cheio de incertezas, que culminariam no triste episódio de 12 de outubro de 1936 no paraninfo de Salamanca, perante o grito «Abajo la Inteligencia! Viva la Muerte!» de Millán Astray, em que Unamuno respondeu como sumo-sacerdote de um Templo de Inteligência, pondo em xeque a declaração do militar. Ele não poderia ficar calado, e pôs em risco a sua vida. Morreria pouco depois, mas não poderemos esquecer essa sua capacidade, de no momento próprio, não deixar de dizer. «Portugal seria o meu outro lugar mais próximo, mas devo continuar na luta (dirá no cair do pano da obra, como fantasma presente). O afastamento pesa sempre como uma lousa sobre a vida, em qualquer paisagem. Conheci bem o desterro e o exílio. A marca dos desterrados é a resignação. Só fogem os pessimistas. Não, nunca fugirei»… Mas o que fica aqui neste guia é que «quando o viajante deve deixar Lisboa, sente sempre amargor nos lábios e névoa no coração»…
Neste vai e vem da Europa ao Japão, quase sempre por Paris, conheci um leitor assíduo de Marcel Proust e da sua Recherche. É o único japonês que eu tenha encontrado com olhos de côr cinzenta-esverdeada. É poeta, melhor diria: filósofo-poeta. Homem muito manso, fotógrafo por convicção e exercício espiritual, chama-se Yoshimasu Gozo. Foi um dos entrevistados e filmados por Jean d´Istria, trabalho donde resultou o livro de Yann Kassile Penseurs japonais, dialogues du commencement. Aí fala Yoshimasu de si mesmo, de modo tal que o sinto muito próximo de mim, na medida em que, desde menino, me fui descobrindo a disposição maior de me espantar com todas as coisas, de me surpreender com tudo como se uma bombita explodisse. Esta tendência a ficar estupefacto perante as coisas talvez não se deva apenas a um espanto no fundo de mim. Talvez seja também devida a uma tristeza que mexe no fundo de mim. O sentimento de maravilhamento mistura-se talvez com um sentimento de tristeza. Mas essa tendência leva-me a ter afecto por tudo o que me espanta,mesmo se nem sempre consiga chegar a amar... Quando residia e trabalhava em Tokyo, em todos os dias úteis percorria, entre casa e ofício, a Aoyama-dori (ou avenida da montanha azul) e também passava por um cemitério que, na Primavera, se floria de sakura, o Aoyama-reyen. Conta Yoshimasu Gozo, na sequência da citação acima feita, que certa vez, no decurso de uma aula que estava a dar, na Universidade Seika, em Kyoto, sobre fotografia, um aluno lhe perguntou porque é que havia tanto azul nas fotografias que ele tirava. O professor surpreendeu-se até com a surpresa da pergunta que nele despertara um sentimento de que algo de si mesmo estaria por esclarecer. E confessa: Fiz viagens à procura de poemas,à procura de pensamentos. Era uma espécie de trabalho sobre a própria vida. Fiz essas viagens por mar, no Sul, por Okinawa e alhures, em busca do mundo do sal (shio) e do mundo do poema (shi). Isso tornou-se num poema chamado Tatuarem-me o coração. Mas deveis saber que a palavra japonesa para tatuar significa literalmente fazer uma incisão de azul. O azul do mar reflecte a côr misteriosa do mundo dos espíritos das gentes de antanho. Agora já percebo: sou atraído pela beleza da côr azul e simultâneamente sinto-a como côr vinda do mundo da morte. Ultimamente tenho lido Dôgen (monge e mestre budista da primeira metade do sec.XIII). Entre as suas máximas muito poéticas, uma menciona a montanha azul. A montanha azul implica o cemitério. Quando fui surpreendido pela pergunta sobre o azul nas minhas fotografias, sem dúvida que experimentei indistintamente tudo isso, pelos biliões de circuitos da memória. Também no meu costumado passeio pela Avenida da Montanha Azul e defronte do Cemitério da Montanha Azul, muitas vezes me perguntei se não deveria antes ser midori (verde) em vez de aoi (azul) mas fiquei com o sabor do azul do céu no coração. E cheguei a propor, como já te contei, ao Pierre Prigent, dono e chefe do restaurante Chez Pierre, sito mesmo defronte do tal cemitério, que, sendo ele Pedro,talvez aquele recanto de divinais iguarias se pudesse chamar Aux Clés du Paradis... É sempre com um riso qualquer que saio da angústia, da perplexidade ou da simples dúvida insolúvel. Como de uma aflição. Como as crianças se riem depois do choro de um trambolhão, ou do perdão da mãe que lhes alivia um disparate. As japonesas, quando, involuntariamente, pisam ou acotovelam alguém numa carruagem do metro atulhada de gente, poderão dizer sumimasen, gomenasai ou shitsurei shimasu, a pedir desculpa,mas taparão a boca em que lhes nasceu riso... Riem então, não por troça, mas pela atrapalhação da vergonha sentida. Em todos nós, a qualquer momento, surge uma contradição qualquer. O afrontamento de nós, o nosso verso e reverso, é-nos inerente. Mexe-se quase sempre muito a nossa alma, não tem passo possível sem contestação. O gosto da vida, essa surpresa agradecida com todas as coisas, tem necessariamente a irmã tristeza a acompanhá-lo, mais que não seja como aviso cautelar, como lembrança de imperfeição ou da variação dos tempos e dos ventos. Ou como aquilo a que poetas portugueses chamam saudade de mim, um anseio que vem do nascimento desconhecido da alma e procura alturas invisíveis, quiçá apenas alcançáveis para além da última surpresa, essa a que chamamos morte. Assim levantamos os olhos, e o azul do céu, sereno e límpido, nos enche a alma de uma misteriosa alegria. E assim, surpreendentemente se converte a tristeza.
Lembras-te do Testament da Maria Helena Vieira da Silva? Começa assim:
Je lègue à mes amis
un bleu céruleum pour voler haut
un bleu de cobalt pour le bonheur
un bleu d´outremer pour stimuler l´esprit...
E eu dou-te a mão que aberta ergui ao céu tão azul que nos sorri cá dentro.
António Vieira, o “imperador da língua portuguesa”, como o designou o enorme Fernando Pessoa, dizia que o “Não” é terrível.
A sua longa vida foi uma conta-corrente de múltiplos “Não”, em oposição aos poderes reinantes da sua época.
Ardoroso defensor da causa das Missões do Brasil e dos direitos dos índios, verberou os comportamentos da sociedade portuguesa, incapaz de compreender e de secundar o seu idealismo missionário. Daí encontrarmos em muitos dos Sermões de Vieira críticas contundentes aos poderosos do seu tempo.
A sua energia acusatória é uma constante dos seus Sermões, enunciando-se aqui, a título de exemplos o “Sermão de Santo António aos Peixes”, “Sermão do 3º Domingo da Quaresma de 1655, pregado na Capela Real e “Sermão do Bom Ladrão”, pregado na Igreja da Misericórdia, em Lisboa.
O “Não” de Vieira era contundente e zurzia-se contra os seus superiores jesuítas, contra os agentes do poder e rapidamente caiu nas malhas da Inquisição. O Santo Ofício não suportava o ardor do missionário Vieira e vislumbrava no exercício das suas competências um perigo para a sociedade e valores caducos que nela predominavam.
É certo que a forte personalidade e a superior inteligência e cultura de A. Vieira também arrastaram o apoio e admiração de poderosas figuras da época como o Rei e duque de Cadaval, seu futuro sucessor. Numa das suas idas a Roma conseguiu mesmo do papa Clemente X a garantia da isenção relativamente á Inquisição portuguesa, ficando para sempre sujeito apenas á jurisdição do Santo Ofício Romano, que o absolveu de todas as penas até então proferidas contra si.
É certo que a admiração e proteção do monarca permitiram ao incansável andarilho obter a provisão régia a favor da libertação dos índios, pela qual foram mandadas recolher todas as expedições que andavam pelo sertão do Maranhão a capturar índios e obrigando os captores a libertar todos aqueles que tinham cativos. A reação dos colonos foi violentíssima. Esgrimindo-se na qualidade de superior da missão, Vieira mandou julgar e degredar os cabecilhas da oposição e consagrou todas as suas energias á preparação de novas expedições.
Apesar destes sucessos, resultantes da sua gigantesca atividade diplomática, desenvolvida entre o Brasil e Portugal e entre este e Roma, os seus inimigos não desarmaram.
Após a morte de D. João IV (6.11-1656),a perseguição ao emérito jesuíta intensificou-se. A tal não foi alheia a reiteração das suas ideias visionárias acerca das profecias do Bandarra e da sua aplicação ao papel de D. João IV como a cabeça suprema do Quinto Império, que a morte viera tornar de todo o impossível. Mas mesmo que morresse teria por força que ressuscitar, para que pudesse encabeçar o futuro reino universal de Cristo na Terra. Esse “bandarrismo” foi defendido por A.V. em dois sermões, proferidos em Maranhão, de cujo texto apenas se conhece uma parte. Conseguiram, entretanto, os inimigos do insigne jesuíta, por processos de tirânica maldade, divulgar o conteúdo de uma carta dirigida ao Padre André Fernandes, bispo eleito do Japão, no qual Vieira se alargava em considerações acerca do missionarismo de Bandarra. O seu novo pensamento convertia-se de uma nova conceção do Sebastianismo, segundo o qual o regresso do Rei Encoberto não trazia já D. Sebastião. Mas significava, de acordo com o atrás alegado, o advento de D. João IV. Entretanto, no Reino fervilha a intriga feroz, A incapacidade do Rei Afonso VI gera uma disputa feroz pelo poder. Vieira não se intimida e em princípios do ano de 1662 desfere do púlpito da Casa Real um tremendo libelo contra os colonos, o que lhe vale praticamente o regime de residência fixa, verdadeira prisão, já que ficava impedido de regressar ao seu querido Brasil. Em fins de Maio de 1622, foi notificado para se apresentar no Tribunal de Santo Oficio de Coimbra e a 21 de Julho submetido ao primeiro interrogatório. Cinco anos e meio depois, nas vésperas do Natal, após os autos terem sido remetidos a Lisboa e a Roma, era proferida a sentença, não em auto público de fé, mas na sede do Colégio da Companhia de Coimbra.
Apesar de se ter retratado quanto às afirmações consideradas erradas e de se ter submetido, como filho obediente da Igreja às determinações do Papa, via-se para sempre privado da sua voz crítica e da capacidade de pregar, devendo viver recluso numa casa da Ordem a determinar pelo Santo Ofício.
Não há dúvida que foi o movimento da restauração que concedeu á obra de António Vieira a coesão de pensamento e de discurso que a caracterizam. Pôde construir uma imagem do Homem, onde a consciência da debilidade terrena lançava sombras de pecado e de miséria, mas a ser redimida por Cristo. Os fundamentos teológicos do seu pensamento inseriu-os numa obra que nos legou “Clavis Prophetarum”. Nesse Império, o quinto na história da humanidade se reuniriam pela conversão de todos os povos da terra, sob a égide espiritual de um único pastor, personificado no Papa e sob um governo temporal único regido pelo Rei de Portugal. A dimensão universal e divina deste projeto implicava uma forte exigência do seu sentido de pátria. Organizou sempre a sua luta de forma a poder servir a Pátria e os seus contemporâneos de um manual de uma cidadania do futuro, onde cada homem aprenda a preparar a sua ascese á Eternidade.
Como se depreende desta brevíssima e despretensiosa sinopse da vida de António Vieira, o “Não” foi uma arma permanente contra a desigualdade, contra a ambição de poder, contra a intriga e a inveja, contra a injustiça.
Esse “Não terrível” permanece nos nossos dias pelo silêncio a que, nós portugueses, temos votado a obra de António Vieira, um dos grandes escultores da língua portuguesa.
O “Não” de António Vieira é uma obra humanista e uma obra de arte.
Luís Henrique de Bourbon-Condé, 7º Príncipe de Condé, neto de Luís XIV - posto que sua mãe, Luísa Francisca de Bourbon era filha legitimada do Rei-Sol e de sua amante a Marquesa de Montespan - foi milionário, primeiro-ministro e grande caçador. Caçador a cavalo, pelo que, no seu Chateau de Chantilly, base das suas caçadas na Oise, mandou construir uma estrebaria que albergava 240 cavalos, 500 mastins e uns 100 criados. O edifício ainda hoje é considerado exemplar notável da arquitectura civil do seu tempo (como o convento-palácio de Mafra em Portugal). Testemunha da paixão cinegética daquele aristocrata de sangue real? Sim, e muito mais: Luís IV de Bourbon-Condé, séptimo príncipe do título, acreditava na metempsicose e sentia que,na reincarnação seguinte, seria um cavalo. Quem não tinha bem aceite ser metamorfoseado num quadrúpede cornudo fora o Marquês de Montespan, marido legítimo de sua avó, que acabou exilado nos seus domínios, por ter ruidosamente protestado, em Versailles, contra o favoritismo com que Luís XIV começara a tratar a senhora marquesa, sua mulher, da qual o rei aliás teve sete filhos. Mas falemos de metempsicose. Tal crença, como sabes, é ainda comum na Índia, como no budismo, e teve também acolhimento na filosofia de Pitágoras, e mesmo Platão. No século XVIII teve alguns prosélitos. A questão da imortalidade da alma humana é antiquíssima, já os mitos babilónicos do Sábio Supremo (Atrahásis) e da epopeia de Gigalmesh - que inspiraram as narrativas da criação do homem e do dilúvio do bíblico livro do Génesis - se debatiam com essa interrogação inicial e inevitável da condição humana, trânsfuga da natureza: - e depois? Ou como no quadro de Gauguin, em cenário polinésio de paraíso terrestre: - quem somos, donde vimos, para onde vamos? Claude-François-Xavier Mercier morreu em 1800, aos 37 anos. Fora editor-livreiro, republicano e revolucionário, mas vítima também de la Terreur de Robespierre. Deve aliás à queda deste o ter escapado à guilhotina. Mas na prisão política, ou depois dela, escreveu Les Nuits de la Conciergerie, rêveries mélancoliques et poésies d´un proscrit: fragments échappés au vandalisme, obra publicada em 1795, no Ano III da Revolução. No sonho ou visão nº 5 dessas rêveries, intitulada la réproduction des êtres ,fala da circulação do espírito vital de que a metempsicose será um modo possível. E Voltaire defende, no seu artigo Métamorphose. Métempsycose, que esta é um dogma natural. Já Louis-Sébastien Mercier, de apelido homónimo do Claude-François, escrevera, em 1771, num livro de ficção utópica L´An 2440 (!!!) que o espírito da Revolução se iria mantendo pela reincarnação contínua das almas dos seus actores... O outro Mercier, na sua 6ª visão, a que chama La Métempsycose, conta, afinal, uma experiência espiritual em forma de sonho. Mas, sonho ou realidade, a imortalidade da alma é uma vocação do homem. A morte final é-nos íntima e intensamente repugnante. O contador que lemos foi medíocre escritor. Mas aqui traduz, com a angústia da experiência que o confrontou com a iminência da morte numa aterradora prisão, essa antiquíssima interrogação: «Estava morto há dois anos; e o Ser supremo, sensível às desgraças que tinham marcado cada instante da minha vida terrestre, ordenara que as almas de todos os patriotas que tivessem sido vítimas do furacão revolucionário poderiam reanimar outros corpos. Grande alegria no império dos mortos. Cada um daqueles que o decreto devolve à existência irá escolher nova habitação para a sua alma; é inútil observar que, fiel às leis da igualdade, se procurasse sobretudo a envolver a sua apenas no despojo glorioso de um valente republicano morto em defesa da liberdade. Tal foi o meu lote.» E assim regressa o nosso herói à sua cidade. Com outro aspeto, não será imediatamente reconhecido pelos seus, mas a força do amor mútuo acabará por reencontrá-los, Será veemente o abraço a sua mulher, que fielmente o esperou, tomando bem conta do filho de ambos. Mas então se acaba o sonho, quando um som horrível de chaves e as vozes roucas de carcereiros bruscamente me arrancam das doçuras do sono... De redor de si desapareceram os antigos companheiros de infortúnio, e já outros desgraçados os substituiram. O abismo devorou tudo o que me rodeava, e semelhante ao altivo castanheiro que,resistindo aos golpes devoradores da tempestade,sobrevive a todas as árvores que o cercavam,eu esperava o instante em que o meu último sonho desse lugar à eternidade do nada... ...Oh! por que nome chamar-vos,monstros,que nos fazeis ver a nossa soberana felicidade na nossa destruição!!! Também Gilgamesh, rei da famosa cidade de Uruk, quis em vão escapar à lei universal da morte. Essa história, devo-a a Jean Bottéro, leitor e tradutor de cuneiformes há milénios manuscritos em placas de argila mesopotâmica. Colosso possante, tirano excessivo, entenderam os deuses opor-lhe adversário à altura, na pessoa de Enkidu, selvagem inculto. Na sequência do combate que travaram ,tornaram-se afinal como que nas duas faces de Janus... Juntos e contrariando a vontade dos deuses, derrotarão e matarão Humbaba, guardião dos cedros, e também o celestial touro que contra Uruk fora mandado por Ishtar, deusa-mulher por excelência, padroeira simultânea do amor e da discórdia, que Gilgamesh repudiara. Essas vitórias despertaram a cólera vingativa dos deuses, levando-os a condenar Enkidu à doença e à morte, assim privando Gilgamesh do seu alter ego. O nojo dessa morte determinará o nosso herói à procura do Supremo Sábio, sobrevivente do Dilúvio e conhecido por Encontrei-a-minha-vida. Perguntar-lhe-á a razão da sua imortalidade, e o Sábio lhe dirá que fora salvo do Dilúvio pelo deus Enki, a fim de assegurar assim a descendência dos homens. Mas tal salvamento sendo irrepetível, só a pedido de sua mulher em lágrimas, Encontrei-a-minha-vida revelará o esconderijo da Árvore da Juventude, a que Gilgamesh poderá ir buscar a mezinha que o remoçará sempre que chegar à velhice. Achá-la-á, depois de muitos perigos e fadigas. Mas a planta milagreira lhe será roubada por uma serpente. Finalmente, Gilgamesh regressará a Uruk , onde procurará ser, até ao fim da vida, um rei clemente e justo. O mito de Atrahasis ou Supremo Sábio é anterior a esta epopeia e conta-nos que, no princípio, só os deuses existiam, imortais, ainda que vivessem como vivem os homens. Assim, naquela divina sociedade, muitos trabalhavam arduamente na produção dos luxuosos bens de consumo que os deuses superiores consumiam. Por isso, os deuses inferiores apresentaram a Enlil, suprema divindade, as suas reivindicações. À ameaça de revolução responderá o mais astucioso dos deuses nobres, Enki, propondo que sejam criados os homens, e lhes sejam entregues essas mais duras tarefas. Assim foi. Só que, gozando de longa vida e sendo trabalhadores alegres e eficazes, os humanos crescem e multiplicam-se, ao ponto de chegar ao céu e incomodar Enlil o rumor que fazem. Logo a suprema divindade decide diminuí-los, enviando-lhes a doença, a seca e a fome. Mas Enki afasta o perigo, prevenindo e aconselhando o Supremo Sábio, rei dos humanos. Louco de fúria, Enlil envia-lhes então as águas genocidas do dilúvio. Desta vez, Enki apenas conseguirá preservar o Supremo Sábio, refugiando-o num barco, onde sobreviverá, de modo a assegurar a descendência dos homens, que eram invenção do mesmo Enki. Findo o Dilúvio, o Sábio confecciona um banquete para os deuses famintos que, entretanto, não tinham tido quem os servisse. Vendo que fora novamente enganado, Enlil imporá a Enki a determinação de que a vida humana se confine a um tempo muito mais curto do que a eternidade dos deuses... Não sei porquê, lembrei-me agora do Fantôme Espagnol,divertida aventura dos Bob et Bobette, que te contarei noutro dia. Por ora, digo-te, esta manhã, a lembrança de um conto intitulado Suave Milagre, do português Eça de Queiroz, que reli num dos livros que o nosso Alberto me deixou. Termina assim: «A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:- Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno e com um mal tão pesado,e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
-- Oh meu filho,como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia e curta a piedade dos homens. Tão rota,tão trôpega,tão triste,até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado,e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe,o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos,erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam,a criança murmurou:
-- Mãe,eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
-- Aqui estou.»
E eu aqui tão longe, tão perto de ti ao invisivelmente te dar a mão fiel.
Falar da pessoa do Cardeal Patriarca Emérito, D. José da Cruz Policarpo, sob o impacto da notícia brutal e inesperada da sua morte, é muito difícil, sobretudo por se tratar de um Amigo, com quem tive uma relação de grande admiração e estima pessoais. Não posso, por isso, limitar-me a palavras de circunstância, incompatíveis com os elos que nos ligavam. Antes do mais, devo recordar o homem de Igreja, que soube plenamente assumir o espírito do Concílio Vaticano II, numa sociedade em profunda mudança como a portuguesa, com tensões contraditórias. O seu ministério foi exercido com serenidade e determinação, constituindo-se num fator de coesão, de abertura, de equilíbrio, de diálogo, de compromisso, de verdade e de justiça. D. José foi em Portugal fundamental para a Igreja e para a democracia. Soube continuar a ação extraordinária do Cardeal D. António Ribeiro, abrindo portas e horizontes - bem evidenciados na tese de doutoramento que defendeu, e que é um dos ensaios mais importantes, no panorama da historiografia e da teologia universais, sobre o Concílio Vaticano II, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes e o impulso profético de João XXIII na renovação da Igreja Católica. Como Cardeal Patriarca de Lisboa contribuiu decisivamente para o diálogo com o mundo contemporâneo e com a modernidade cultural. Lembramo-nos do diálogo com Eduardo Prado Coelho e a admiração que granjeou junto do intelectual e académico. Acrescente-se ainda o empenhamento do Cardeal na criação de um espírito de respeito mútuo e de diálogo e de liberdade religiosa; Ao lermos a sua vasta obra, reconhecemos um espírito culto, aberto e disponível para o diálogo, em nome de uma laicidade saudável, por contraponto a qualquer dogmastismo laicista. Os gestos de abertura, de respeito, de hospitalidade para com todos os homens e mulheres de boa vontade são dignos de destaque. Importa ainda salientar o homem de fé e de esperança. Ambas as qualidades têm presença bastante evidente no testemunho de D. José. Acrescente-se o percurso académico e de homem de cultura. Foi Reitor da Universidade Católica e seu Magno Chanceler, num período em que a instituição registou um notável impulso de imagem de conhecimentos e na internacionalização. O que ficará da sua memória? O incansável diálogo com a sociedade portuguesa; a abertura às diferenças e à complexidade; a colegialidade e o trabalho em equipa; o incentivo à vida e à qualidade académica e universitária; a consciência da incerteza e do risco; a plena consciência da fragilidade do actual contrato social. Homem de Igreja e de fé; de cultura e solidariedade, de ciência e de educação, D. José é uma das grandes referências da cultura portuguesa e da Igreja, constituindo seu desaparecimento uma grande perda para a sociedade portuguesa e para a Igreja Católica».