MISFITS…
Minha Princesa de mim:
Neste voo tão longo, sorumbático, sonolento para alguns, televidente para outros - e a todos nos levando, em meio dia, de Tokyo a Paris - releio uns passos de Le Rouge et le Noir de Stendhal. Julien Sorel está no cárcere anterior à sua execução e acaba de partilhar com dois celerados que voltarão para a cadeia, uma garrafa de vinho de Champagne, que pôde adquirir por ocasião da visita de seu pai. Está só e pensa:" Não há direito natural, tal palavra não passa de uma velha ingenuidade, bem digna do procurador geral que há dias me perseguiu e cujo avô se enriquecera com um confisco de Luís XIV. O direito só existe quando há uma lei que proíba fazer qualquer coisa, sob pena de castigo. Antes da lei, natural é só a força do leão, ou a necessidade do ser que tem fome, que tem frio, a necessidade simplesmente... Não, as pessoas a que prestamos honras não passam de uns malandros que tiveram a sorte de não serem apanhados em flagrante delito. O procurador que a sociedade lança para cima de mim, foi enriquecido por uma infâmia... Cometi um assassinato e sou justamente condenado, mas, com exceção quase só dessa ação, o Valenod que me condenou é cem vezes mais prejudicial à sociedade!" Leste já o romance, não volto à história ali contada. Partilho contigo, desta cabine em que estou a milhas de ti, em distância e altitude, uma reflexão sobre essa realidade humana do desacerto social, as pessoas a que o célebre romance de Scott Fitzgerald chamou The Misfits. Julien Sorel, mesmo depois de "promovido" a de la Vernaye, não encaixa na sociedade onde, todavia, já apresentara, pela sua inteligência e cultura, trunfos que longe o levariam na ascenção social. Não sabe, não consegue ser, nem inconscientemente hipócrita, nem convictamente mundano. Com todos os seus defeitos e ambições, contradiz-se constantemente, sonha e deseja glórias, mas não aceita, nem quer aceitar, a traição interior que a convenção exterior lhe imponha. Quer manter-se ele mesmo, com as suas representações e projeções, sem cuidar de qualquer acomodação a uma circunstância que o assimile. O romance de Stendhal é uma crónica da França da restauração monárquica após a queda do 1º Império. Em função de interesses vários, se afrontam ou tornam cúmplices - com mais ganância ou traição, ou menor solidariedade e lealdade - personalidades paradigmáticas que se misturam no processo de uma nova amálgama social: regressados do antigo regime, alta nobreza criada por Napoleão, novos ricos e burgueses, legitimistas e liberais, jesuíticos e jansenistas, uns poucos de todos... Raros e perdedores serão os que, em virtude da sua fidelidade a uma causa, uma classe, uma filosofia, uma religião, ou mesmo a um amor romântico ou onírica ambição, não souberem, sem escrúpulo, escolher a melhor oportunidade de "triunfo na vida". Enfim, nada ali se relata que, mutatis mutandis, não tenhamos visto noutras paragens e épocas. Talvez o misfit seja um falhado, não por não ser um winner, mas por se ter limitado ao seu horizonte, o da sua circunstância. Falhou a entrada que queria, ou gostaria de poder ter. Já o herege é um caso diferente. Sobretudo quando a heresia - mesmo que abafada e trucidada - sobrevive como interrogação ou simples interpelação. Ao ponto de nos perguntarmos se - no final de contas - não será herética a maioria... Nunca tive, como sabes, qualquer simpatia pelo protesto como afirmação de modo de ser com os outros. Só por ser , ab initio, contra. Mas sempre me interroguei sobre a manifestação, erga omnes, de fidelidades íntimas... E muitas vezes tive de concluir que havia mais verdade no discurso de certos filhos pródigos do que na razão obsoleta do "menino bonito". Como pensei, e penso, que todas as parábolas evangélicas sobre a misericórdia que procura aquele que se perdeu -- o tal que não quer, como o fariseu, um lugar acima ou à frente dos outros, no templo - nos chamam, insistentemente, à conversão do nosso coração em porto de abrigo. Um dos maiores assiriólogos europeus e mundiais, professor na EPHE, com vastíssima obra escrita e publicada, foi Jean Bottéro, dominicano ligado à Escola Bíblica de Jerusalém, posteriormente dispensado das ordens recebidas e dos votos proferidos, assim reduzido, a seu pedido, ao estado leigo. Justiça lhe seja feita por isso, por ser fiel e crente e considerar seu direito e dever não passar um atestado de historicidade ao livro do Génese. Sobre essa saída da Ordem dos Pregadores, ele viria a reconhecer a sua intransigência, dizendo um dia: "Poderia ter ficado. Pessoas com o Padre Lagrange e o Padre Chenu sofreram dificuldades muito piores do que a minha: mas eles ficaram, porque queriam reformar a Igreja e pensavam que só seria possível fazê-lo estando lá dentro. Eu nunca quis reformar nada: apenas me revoltei contra a ideia de que poderiam obrigar-me a uma existência hipócrita e enganadora: trabalhar e pensar o que quisesse a partir do meu trabalho, mas disso nada dizer aos outros - não está no meu temperamento... A única solução razoável e leal era partir." Até 2007, ano da sua morte, Jean Bottéro, um dos mais considerados assiriólogos do mundo, sempre manifestou publicamente a sua dívida para com a Igreja e os dominicanos,como exemplifica este texto em que fala mais pessoalmente de frei Marie-Dominique Chenu: "Ele não era apenas um grande teólogo, inteligente, penetrando tudo, aberto a tudo e a todos, capaz de tudo integrar - e foi o que ele fez pela sua vida fora. Mas ele também era um grande historiador: quando lhe enviei um exemplar do meu Naissance de Dieu, dele recebi a mais linda de todas as cartas. Era o homem mais cristão, no sentido profundo e luminoso dessa palavra, que alguma vez encontrei no meu caminho: não condenava nada nem ninguém, mas apenas a tolice e a intolerância; fraternizava com todos. Rindo-se, dizia: tudo o que é bom é virtude. Mais fraterno, menos distante, menos isolado na sua linda velhice, era tão grande como o Padre Lagrange. Uma das sortes maiores que tive na vida foi conhecê-los e ter-lhes ficado ligado. Tanto um como o outro sempre me pareceram dessas belas imagens que a humanidade pode dar, desses êxitos totais, e em todos os planos, da nossa natureza: eram grandes e nobres em tudo. Só a sua imagem era um apoio." Curiosamente, foi com Jean Bottéro que aprendi a etimologia da palavra mesquinho: pequeno, em árabe, diz-se miskinu, derivado do acádio mesopotâmico mushquenu, aquele que se prosterna, se submete. O mesmo vocábulo designava, na Babilónia, a classe social situada entre os escravos (wardu) e as "pessoas de condição" ou awílu... E quantas vezes não serão mais musquenu - submissos, veneradores e bajuladores - tantos que se movem e promovem no seio de grupos confortáveis do que aqueles que interrogam, confrontam,enfrentam ou contestam maiorias e ideias comuns? Estes poderão cair na tentação do orgulho e tornarem-se intransigentes por simples opção ou prazer. Mas terão sempre de ser mais corajosos do que os sequazes de comodidades sociais... Vê tu, Princesa sempre de mão dada comigo,o que nos passa pela cabeça numa viagem de avião.
Camilo Maria