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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MISFITS…

 

Minha Princesa de mim:


Neste voo tão longo, sorumbático, sonolento para alguns, televidente para outros  -  e a todos nos levando, em meio dia, de Tokyo a Paris - releio uns passos de Le Rouge et le Noir de Stendhal. Julien Sorel está no cárcere anterior à sua execução e acaba de partilhar com dois celerados que voltarão para a cadeia, uma garrafa de vinho de Champagne, que pôde adquirir por ocasião da visita de seu pai. Está só e pensa:" Não há direito natural, tal palavra não passa de uma velha ingenuidade, bem digna do procurador geral que há dias me perseguiu e cujo avô se enriquecera com um confisco de Luís XIV. O direito só existe quando há uma lei que proíba  fazer qualquer coisa, sob pena de castigo. Antes da lei, natural é só a força do leão, ou a necessidade do ser que tem fome, que tem frio, a necessidade simplesmente... Não, as pessoas a que prestamos honras não passam de uns malandros que tiveram a sorte de não serem apanhados em flagrante delito. O procurador que a sociedade lança para cima de mim, foi enriquecido por uma infâmia... Cometi um assassinato e sou justamente condenado, mas, com exceção quase só dessa ação, o Valenod que me condenou é cem vezes mais prejudicial à sociedade!" Leste já o romance, não volto à história ali contada. Partilho contigo, desta cabine em que estou a milhas de ti, em distância e altitude, uma reflexão sobre essa realidade humana do desacerto social, as pessoas a que o célebre romance de Scott Fitzgerald chamou The Misfits. Julien Sorel, mesmo depois de "promovido" a de la Vernaye, não encaixa na sociedade onde, todavia, já apresentara, pela sua inteligência e cultura, trunfos que longe o levariam na ascenção social. Não sabe, não consegue ser, nem inconscientemente hipócrita, nem convictamente mundano. Com todos os seus defeitos e ambições, contradiz-se constantemente, sonha e deseja glórias, mas não aceita, nem quer aceitar, a traição interior que a convenção exterior lhe imponha. Quer manter-se ele mesmo, com as suas representações e projeções, sem cuidar de qualquer acomodação a uma circunstância que o assimile. O romance de Stendhal é uma crónica da França da restauração monárquica após a queda do 1º Império. Em função de interesses vários, se afrontam ou tornam cúmplices  -  com mais ganância ou traição, ou menor solidariedade e lealdade  -  personalidades paradigmáticas que se misturam no processo de uma nova amálgama social: regressados do antigo regime, alta nobreza criada por Napoleão, novos ricos e burgueses, legitimistas e liberais, jesuíticos e jansenistas, uns poucos de todos...  Raros e perdedores serão os que, em virtude da sua fidelidade a uma causa, uma classe, uma filosofia, uma religião, ou mesmo a um amor romântico ou onírica ambição, não souberem, sem escrúpulo, escolher a melhor oportunidade de "triunfo na vida". Enfim, nada ali se  relata que, mutatis mutandis, não tenhamos visto noutras paragens e épocas. Talvez o misfit seja um falhado, não por não ser um winner, mas por se ter limitado ao seu horizonte, o da sua circunstância. Falhou a entrada que queria, ou gostaria de poder ter. Já o herege é um caso diferente. Sobretudo quando a heresia  -  mesmo que abafada e trucidada  -  sobrevive como interrogação ou simples interpelação. Ao ponto de nos perguntarmos se  -  no final de contas  -  não será herética a maioria... Nunca tive, como sabes, qualquer simpatia pelo protesto como afirmação de modo de ser com os outros. Só por ser , ab initio, contra. Mas sempre me interroguei sobre a manifestação, erga omnes, de fidelidades íntimas... E muitas vezes tive de concluir que havia mais verdade no discurso de certos filhos pródigos do que na razão obsoleta do "menino bonito". Como pensei, e penso, que todas as parábolas evangélicas sobre a misericórdia que procura aquele que se perdeu   --  o tal que não quer, como o fariseu, um lugar acima ou à frente dos outros, no templo  -  nos chamam, insistentemente, à conversão do nosso coração em porto de abrigo. Um dos maiores assiriólogos europeus e mundiais, professor na EPHE, com vastíssima obra escrita e publicada, foi Jean Bottéro, dominicano ligado à Escola Bíblica de Jerusalém, posteriormente dispensado das ordens recebidas e dos votos proferidos, assim reduzido, a seu pedido, ao estado leigo. Justiça lhe seja feita por isso, por ser fiel e crente e considerar seu direito e dever não passar um atestado de historicidade ao livro do Génese. Sobre essa saída da Ordem dos Pregadores, ele viria a reconhecer a sua intransigência, dizendo um dia: "Poderia ter ficado. Pessoas com o Padre Lagrange e o Padre Chenu sofreram dificuldades muito piores do que a minha: mas eles ficaram, porque queriam reformar a Igreja e pensavam que só seria possível fazê-lo estando lá dentro. Eu nunca quis reformar nada: apenas me revoltei contra a ideia de que poderiam obrigar-me a uma existência hipócrita e enganadora: trabalhar e pensar o que quisesse a partir do meu trabalho, mas disso nada dizer aos outros -  não está no meu temperamento... A única solução razoável e leal era partir." Até 2007, ano da sua morte, Jean Bottéro, um dos mais considerados assiriólogos do mundo, sempre manifestou publicamente a sua dívida para com a Igreja e os dominicanos,como exemplifica este texto em que fala mais pessoalmente de frei Marie-Dominique Chenu: "Ele não era apenas um grande teólogo, inteligente, penetrando tudo, aberto a tudo e a todos, capaz de tudo integrar  -  e foi o que ele fez pela sua vida fora. Mas ele também era um grande historiador: quando lhe enviei um exemplar do meu Naissance de Dieu, dele recebi a mais linda de todas as cartas. Era o homem mais cristão, no sentido profundo e luminoso dessa palavra, que alguma vez encontrei no meu caminho: não condenava nada nem ninguém, mas apenas a tolice e a intolerância; fraternizava com todos. Rindo-se, dizia: tudo o que é bom é virtude. Mais fraterno, menos distante, menos isolado na sua linda velhice, era tão grande como o Padre Lagrange. Uma das sortes maiores que tive na vida foi conhecê-los e ter-lhes ficado ligado. Tanto um como o outro sempre me pareceram dessas belas imagens que a humanidade pode dar, desses êxitos totais, e em todos os planos, da nossa natureza: eram grandes e nobres em tudo. Só a sua imagem era um apoio." Curiosamente, foi com Jean Bottéro que aprendi a etimologia da palavra mesquinho: pequeno, em árabe, diz-se miskinu, derivado do acádio mesopotâmico mushquenu, aquele que se prosterna, se submete. O mesmo vocábulo designava, na Babilónia, a classe social situada entre os escravos (wardu) e as "pessoas de condição" ou awílu... E quantas vezes não serão mais musquenu  -  submissos, veneradores e bajuladores  -  tantos que se movem e promovem no seio de grupos confortáveis do que aqueles que interrogam, confrontam,enfrentam ou contestam maiorias e ideias comuns? Estes poderão cair na tentação do orgulho e tornarem-se intransigentes por simples opção ou prazer. Mas terão sempre de ser mais corajosos do que os sequazes de comodidades sociais... Vê tu, Princesa sempre de mão dada comigo,o que nos passa pela cabeça numa viagem de avião.

 

     Camilo Maria

MARCEL PROUST


portrait par Jacques-Émile Blanche


Marcel Proust, escritor que viveu entre 1871 e 1922, continua a ser, na sua substância, um ilustre desconhecido, sendo certo que muitos o folheiam, mas poucos prosseguem a sua leitura até ao fim. A publicação do primeiro volume da sua obra “Em Busca do Tempo Perdido” foi recusada pela editora da Nova Revista Francesa (N.R.F.), recusa assinada por André Gide, decisão que se tornou num enorme escândalo e que levou aquele futuro Nobel a confessar que tal decisão constituía o maior remorso da sua vida.

Ao lermos e relermos as cerca de 3ooo páginas que perfazem os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, Proust chega a parecer possesso de inspiração, tal a frescura da sua escrita, ondulada por uma imaginação inaudita que transporta para  os retratos dos personagens que povoam a obra romanesca uma profundidade que nos confunde.

O frémito de felicidade que o assalta, quando, numa manhã de inverno, levou à boca uma colher de chá, “onde deixara amolecer um pedaço de madalena...”e foi invadido por um prazer delicioso, ”um prazer isolado, sem a noção da sua causa…” e mais tarde, tem as mesmas sensações quando pisa as pedras irregulares do palácio do príncipe de Guermantes, está imbuído duma magia que as leis da psicologia não explicam de todo.

Dizem alguns estudiosos de Proust que este, no fim da sua vida se refugiou num quarto da Boulevard Haussmann, entre fumigações e narcóticos, o que poderá a levar a pensar que teria escrito a obra, sob o efeito da droga. Verdade ou não, o certo é que construiu a bomba atómica da literatura como um crítico designou “Em Busca do Tempo Perdido.” É uma viagem que enceta no Tempo, o “Tempo que habitualmente não é visível e que para o ser, procura corpos e, onde quer que os encontre, se apodera deles para neles projetar a sua lanterna mágica.”. Não surpreende, por isso, que o escritor descreva os seus personagens como “bonecos mergulhados nas cores imateriais dos anos”.

Proust não acredita numa literatura que se limita a descrever as coisas e um extrato delas, mas sim aquela que permite a comunicação do nosso “eu” presente com o passado, cuja essência é conservada pelas coisas e, com o futuro, no qual elas “nos incitam a saboreá-las de novo”.

Os personagens “proustianos” são moldados pelo Tempo, são estátuas que nascem, crescem, envelhecem e morrem e cujas transformações resultam do facto de serem um efeito do tempo perdido que a memória capta sabiamente. O seu retrato é diacrónico e sincrónico, o que possibilita observar-lhes as linhas de continuidades e descontinuidades no seu rosto e no seu espírito, no seu caráter e nas suas opções doutrinárias, afetivas e comunicacionais. Esse escultor implacável que é o Tempo, tudo devora, incluindo os melhores vestidos e tem a particularidade de vencer o disfarce e as aparências mais sofisticadas.

“La Recherche” não é um livro de duques e duquesas. É um fresco da sociedade parisiense do seu tempo, cujos salões mundanos o autor frequentou, numa época que capta a última década de oitocentos e os anos que antecedem a primeira guerra mundial. É a designada “Belle Époque” que atravessa a sociedade francesa, num período de prosperidade e desenvolvimento e que no aspeto cultural atinge um apogeu, só comparável aos primeiros tempos do iluminismo. É nos salões de Madame Aubernon, de Armand Cavailher ou da Condessa de Grefulle que Proust vai buscar a inspiração para ungir e gizar os personagens que povoam os salões dos Guermantes e dos Verdurin, as famílias mais reluzentes do romance de Proust.

Nesses salões encontra Swann, a estrela nuclear da obra. É a estrela das visitas a casa dos pais de Marcel e cuja silhueta o transporta ao último beijo materno que antecede o sono das noites de infância e aos seus amores pela filha Gilberte, passados nos Campos Elísios. Condensa o que o “faubourg” tem de mais criativo no campo da cultura. O Swann que levava para a casa dos pais de Marcel cestos de fambroesas era o mesmo que constituía: “um dos membros mais elegantes do Jockey-Club, amigo íntimo do Conde de Paris, um dos homens mais requestados da alta sociedade do faubourg Saint Germain”.

É através de Swann,  de “nariz curvo, de olhos verdes, debaixo de uma testa alta de cabelo loiro quase ruivo” que nos penetra nos diversos domínios do saber e entretenimento. Ao conceder-lhe ascendência judaica, o autor adensa-lhe o mistério e a inteligência, já que a sociedade do seu tempo era predominantemente anti-semita e vivia atormentada e dividida pelo processo “Dreyfus”.

É um ciclo onde a aristocracia em declínio e a burguesia em ascensão se confrontam e confluem. O salão dos Verdurain exprime “grosso modo” a nova burguesia endinheirada que não tem títulos nobiliárquicos para seduzir fiéis, mas tem, em contrapartida, dinheiro para os cativar. O “clã das quartas-feiras” é constituído por figuras da vida mundana, da política, da arte e dos meios académicos.

A Senhora Verdurain, a “Patroa”, congrega alguns dos condimentos mais perversos da alma humana: Astuta como a raposa, ágil como o lince, vaidosa como o corvo, perigosa como o crocodilo, a “Patroa” atraía ao seu clã as mais diversas personalidades, que manipulava a seu bel prazer. Pelo seu clã desfilam Odete de Crécy, a cocotte Odete que conquista o amor de Swann e o Barão de Charlus, figura que entronca a homossexualidade, comportamento sexual que acompanha outros personagens relevantes do romance, como é o caso de Albertina, um dos amores de Marcel.

Contudo, é nos salões dos Guermantes e nas presenças sociais destes, mormente os da deslumbrante duquesa Orianne, que o esplendor do luxo e a frivolidade decadente melhor se entrelaçam, e onde o narrador melhor exibe o seu “eu”.

No último volume ” Tempo Redescoberto” as figuras proustianas ou já pereceram ou estão na posse das traças do Tempo, Tempo que a memória descreve mas que devora os seus objetos numa lentidão predadora.

Proust transporta até ao limite do infinito do olhar, uma profundidade, não comparável com qualquer outra obra literária, a relação da consciência humana com a espessura do tempo. Este é fraturado por Proust, através duma memória afetiva que lhe capta os “flashes” mais significativos e que retratam a força intrínseca da alma humana. O Tempo deixa-se fotografar ou fraturar, mas não deixa de colocar nos fragmentos que lhe arrebatamos as suas marcas felinas ou outonais, transformando-os em folhas caídas.

Esta crónica é uma modesta abordagem à obra de Proust e, por isso, múltiplas coisas ficaram por dizer. Não posso, contudo. deixar de referenciar Orianne, a duquesa de Guermantes, amiga e admiradora de Swann que possuía “olhos de ónix” e só gostava de “veludo com diamantes” e que Marcel, em criança amou ardorosamente.

“Em Busca do Tempo Perdido” é uma obra perfeita e sublime. É uma universidade de luz, de inteligência e de saber. E o maior hino à língua francesa.

 

JOAQUIM SARMENTO

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