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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O ENSINO DO TEATRO EM PORTUGAL 2 - A REFORMA DE JULIO DANTAS

 

Não posso deixar de referir o excelente conjunto de professores que marcaram a qualidade do ensino de teatro e o benefício que, pessoalmente, ao longo dos anos 60 do seculo passado, colhi sobretudo pela formação teórica e cultural praticada neste Conservatório.

Já referi aqui, reportando-me a 1836, a fundação da Escola por Garrett. O nome de Garrett, como o de José Domingos Bomtempo, desde início marcaram a qualidade e a fundamental ligação entre o ensino da musica e do teatro e a excelência do meio literário e artístico que, ao longo de seculos, tem caracterizado a Escola – o que nem sempre é reconhecido.

E no entanto, quando encontramos, a dirigir o Conservatório, nos anos 20/30, nomes como por exemplo Viana da Mota e Júlio Dantas, temos de reconhecer a importância e projeção da Escola, pese embora a controvérsia que sempre marcou a obra de Dantas, e o eco do formidável “Manifesto Anti-Dantas e por Extenso” que Almada publica em 1915: “uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio de indigentes”… e por aí fora!

Hoje, podemos avaliar com objetividade a figura e a obra de Júlio Dantas e ressaltar os aspetos qualitativos de parte das suas criações designadamente no domínio do teatro, que transcendem para melhor “A Ceia dos Cardiais” ou a “Soror Mariana” que Almada, veementemente e com razão, critica: refira-se, nesse registo positivo, por exemplo “A Severa” e outras.

E até podemos evocar o elogio ditirâmbico, no mínimo insolitamente exagerado que   Henrique Lopes de Mendonça publicará, no inicio dos anos 30, num opúsculo intitulado “Júlio Dantas -  Esboço de Perfil Literário”: “um mago das letras, o mais poderoso agente expansivo do génio português no mundo espiritual moderno”, nada menos…!

Repita-se: entre um e outro manifesto, a obra de Júlio Dantas oscila em graus opostos de qualidade e atualidade. O próprio Dantas apresenta ao Governo, também pelos anos 30, um extenso relatório, tal como noutro lado escrevi, plausivelmente “da mão dele, porque nota-se aquele domínio da língua, um bocado maneirista e um bocado ultrapassado, mas com enorme ginástica verbal”, e onde especifica o elenco de cadeiras ministradas na Secção de Teatro do Conservatório Nacional. E vale a pena referir também os professores:

Língua e Literatura Portuguesa – Alberto ferreira Vidal; Arte de Dizer – José Ferreira Moniz Alberto Ferreira Vidal; Filosofia Geral das Artes – Hipólito Raposo; Arte de Interpretar – Augusto de Melo; Arte de Representar – Lucília do Carmo e António Xavier; Estética Teatral – António Pinheiro; História das Literaturas Dramáticas – Júlio Dantas; Organização e Administração Teatral – Augusto de Castro; Ginástica Teatral – António Domingos Martins.

Há neste elenco grandes nomes da cena e da cultura teatral. O que seria o ensino, não poderemos saber em detalhe. Mas indiscutivelmente, regista-se uma evolução, desde as disciplinas da reforma de Garrett, um século antes, que no crónica anterior referi – Reta Pronuncia e Linguagem, Dança e Musica…

Vermos a seguir como era o ensino do teatro nos anos 50/60, quem o ministrava, como o fazia, e quem o frequentava.

 

DUARTE IVO CRUZ

Soneto de pernas para o ar...

 

Tu foste, neste dia, Vasco, ver

a luz dos versos todos que escreveste

e o sentido final do que disseste,

          

p´la mão escura da morte esclarecer

o que Petrarca trazia escondido

e em Shakespeare não fazia sentido,

 

e onde, em Rilke, encontraste romantismo,

e no divino Dante as estações

finais das nossas peregrinações...

E, em ti, ó português, o saudosismo

 

que tantas rimas tuas incendiava

letras de fado, pela madrugada,

pois que é passeio esta vida e mais nada...

Beije-te a luz que o coração amava!

 


Camilo Martins de Oliveira 

LONDON LETTERS

A debt-free party, 2014

Um partido de contas certas! Eis a mais recente inovação politológica destas ilhas que ergueram a democracia de Westminster. A notícia é fascinante a muitos títulos, talvez até a prenunciar uma nova dimensão na análise de tais objetos políticos. Pagar a quem devemos uma qualquer prestação de serviços é algo que nem o mais duro analista ou descolorido opositor se oporá. Assim, depois das tipologias de quadros ou de massas, sempre com organização de cartel, há agora na taxinomia estasiológica o debt-free party. Pourquoi pas?! Ce candidat promettra plus de beurre que de pain! O Conservative Party é.um partido livre de dívidas, ou assim é anunciado, pela primeira vez na sua história moderna, com faturas liquidadas na casa dos £17 million consumidos pela locomotiva vitoriosa das últimas general elections. Well, we all know some school-boy’s trick! Porém, as sondagens eleitorais revelam rugas nos gladiadores a um mês de votos local e europeu.

No debate sobre o melhor governo para a Persia, argumenta Herodotus pelas vozes de Otanes, Megabizo e Darius que o poder conduz a extremos e por isso devem os responsáveis responder pelos seus atos perante o povo. Já Hesiod em Works and days exige aos reis absterem-se da arbitrariedade com a mais poética das razões sobre a ordem natural na república. —"Júpiter quis que os peixes, os pássaros e todos os animais se devorem uns aos outros, mas aos Homens doou a justiça". A dizer das eras, em atual cursus honorum no governo das gentes, aconselhariam os líderes que bom mesmo é aplicarem o tesouro comum nos compromissos modelados como dívida. Esta, porque uns quantos lhes forneceram bens e serviços úteis na escalada; aqueloutro, pois a ele têm assim acesso e administram. Para aparelhos de conquista, defesa e perpetuação do poder, em tese, a categoria do debt-free party contém potencialidades analíticas. Denota também o quanto hoje o cifrão mescla o pensamento político, precisamente quando, fora de Whitehall, o UKIP atrai em todos em quadrantes e assombra as perspetivas de centrais MPs em áreas fustigadas pelo parte-e-reparte da austeridade via tax design: mais para os mais ricos e menos para os mais pobres.

Porque férrea power law impõe que a relação funcional entre duas grandezas varia a quantidade de uma segundo o poder da outra, a paisagem político-partidária está a mudar em vésperas de eleições e referendos. A cornucópia de boas novas no campo económico não cessa, por exemplo, em plena aposta política do governo liderado por Mr David Cameron de instilar otimismo nas mentes do investidor/eleitor. Assim: A cause celebre recebe aprovação final em Westminster, com moção Tory apoiada pelo Labour. Entre London e Birmingham circulará comboio de alta velocidade: o HS2, projeto cuja fatura ascende a £50 billion. No entretanto, mais de um milhão de pessoas laboram com zero hours contracts. São 5% dos ativos com preço em média horária de 8£83p, aos trabalhadores apenas sendo colocada uma exigência: ter disponibilidade para atender o telefone a qualquer hora e estar no local de trabalho então indicado, em 30 minutos, para desenvolver uma tarefa em modalidade go-for. Admirável antigo mundo novo, não?!

As sondagens de agências independentes mostram o quão veloz e feroz vai o inequality moment. Mas o sistema do mais forte tem riscos. Mrs Ann Maguire perde a vida em plena sala de aula, esfaqueada por um animal selvagem sem quê ou para quê. A qualidade pedagógica da professora é testemunhada pelas várias gerações que inspirou e em Leeds colocam singelo tapete de flores nos portões e muros da escola onde tragicamente lhe tiraram agora a vida a semanas da reforma. — Probably the snake is no more out doors!

 

St James, 30th April

 

Very sincerely yours, 

 

V

A VIDA DOS LIVROS

de 28 de abril a 4 de maio de 2014

 

«Portugal - A Economia de Uma Nação Rebelde», de José Manuel Félix Ribeiro (Guerra e Paz, 2014) é um conjunto de reflexões fundamentadas num pensamento solidamente estruturado, que procura superar uma análise económica centrada em projeções lineares ou em preocupações de curto prazo. A experiência longa do autor é garantia de um pensamento necessário.

 

 

QUE REFORMAS PARA PORTUGAL?
O autor começa por afirmar que Portugal não deverá ser um protetorado germânico nem uma feitoria chinesa, e parte da necessidade de olhar criticamente a União Europeia, compreendendo que importa entender o salvamento do mais importante projeto empreendido por ela, a moeda única, que foi concebido com fragilidades evidentes. O próprio Jacques Delors, desde as origens, chamou a atenção para que o Euro assentava em pressupostos incompletos, porque os critérios estritamente monetários esqueciam a «convergência social». José Manuel Félix Ribeiro (JMFR) afirma, por isso, não ter Portugal «nenhum interesse em integrar projetos de unificação continental, nos quais será sempre uma periferia tolerada». Deste modo, considera que Portugal e o espaço lusófono apenas sobreviverão «com relevância mundial num quadro da globalização, naturalmente organizado em torno dos oceanos»; daí devermos encontrar «como aliados naturais o espaço anglo-saxónico (e os Estados que com eles se articulam)». Uma parceria transatlântica é, assim, advogada – em paralelo com as relações históricas múltiplas com Estados da Ásia («que constituem elemento diferenciador de Portugal no contexto europeu» - Índia, Japão, China e Malásia)… De facto, está em causa a consideração, tão realista quanto possível, da defesa dos interesses próprios e das nossas vantagens competitivas. As reformas de estrutura têm de visar objetivos que pressuponham diversidade de alianças, que reforcem a nossa inserção europeia (recusando sermos uma periferia irrelevante e medíocre): maior crescimento na globalização, mais sólida consolidação orçamental, maiores oportunidades de progressão social e garantias de proteção e incentivo para os que tiverem maiores dificuldades em assegurar uma existência digna… Seria um erro incidir soluções sobre o custo do trabalho e sobre mão de obra mais barata, uma vez que a valorização das qualificações é incompatível com salários baixos e insegurança no emprego… Só será possível retomarmos o crescimento com mudanças em três domínios: sistema financeiro, sistema de proteção social, gestão do território e formação das pessoas.

 

UM RIGOROSO RETRATO DA CRISE
Os textos que constituem esta obra têm uma história. Correspondem a reflexões feitas pelo autor ao longo de trinta anos, onde se nota um oportuno sentido crítico. O ensaio intitulado «Portugal em Defesa de uma Nação Rebelde» é de 1985 e foi publicado na revista «Nação e Defesa»; as análises prospetivas do início de 1990 foram inseridas numa obra coletiva sobre o ano 2010; a relação entre o euro e o dólar corresponde a um trabalho no âmbito do Departamento de Prospetiva e Planeamento (DPP) (2001); o tratamento das reformas estruturais foi elaborado no âmbito do documento «Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável – 2004»; para a globalização, os desequilíbrios e as crises foram utilizados um documento publicado na revista «Prospetiva e Planeamento» e a tese de doutoramento em Relações Internacionais na FCSH da Universidade Nova de Lisboa; a análise da crise da dívida soberana na UEM foi feita a partir de um documento elaborado pelo DPP e apresentado no 4º Congresso Nacional dos Economistas. Com clareza, o JMFR dá-nos um retrato da crise financeira e económica, desencadeada em 2008, onde interagiram quatro processos: (a) o choque energético (2006-7) da explosão dos preços do petróleo, mercê do crescimento do consumo da Ásia e do declínio da produção no tempo de baixos preços, que levou os investidores institucionais e os fundos especulativos a ampliar o movimento altista, ao fazer crer que se estava perante um sério risco inflacionista; (b) a crise imobiliária, que envolveu retração da compra de novas habitações e acumulação de «stocks» para vender; (c) a grave crise no coração do sistema financeiro nos EUA, que foi geradora de grandes prejuízos nos bancos e a uma fuga generalizada dos ativos considerados tóxicos pelos fundos que atuavam no mercado monetário; e (d) o primeiro grande teste a uma revolução institucional, que se traduziu na distribuição de riscos pelos «credit default swaps» (cds), com agravamento da incerteza na atividade produtiva. Nos EUA, porém, a crise e a recessão foram menos intensas do que se esperaria, pelas intervenções rápidas que evitaram colapsos financeiros – e, ao contrário de 1929, a queda do consumo pelas famílias americanas (e o aumento das poupanças) não se multiplicou em desemprego, uma vez que parte do cabaz de compras do cidadão americano já era fornecido pela Ásia e pelo Pacífico, onde mais se fez sentir a queda do consumo norte-americano. No entanto, não pode deixar de se referir a complementaridade de respostas dos EUA e da China, que criaram uma espécie de regulação macroeconómica à escala global – daí que enquanto houve investimento no mercado interno chinês, o consumo americano retraiu-se. Assim, o futuro da globalização passa por repensar a centralidade dos EUA na economia mundial pela criação de uma parceria transpacífica de comércio e investimento, de uma parceria transatlântica semelhante, a negociar com a União Europeia, e pela transformação estratégica dos EUA em garante do abastecimento estratégico de ambas as parcerias, mercê da revolução tecnológica. Este conjunto de movimentos poderá fornecer aos membros das duas parcerias um melhor quadro regulamentar do sistema financeiro e uma melhor coordenação de respostas a eventuais crises futuras.

 

QUE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL?
A zona euro sofre três crises distintas e simultâneas: perda de competitividade e fraco crescimento, acumulação de riscos nos setores bancários e dificuldades na dívida pública. JMFR analisa quatro cenários europeus: «a Europa em bloco» (com reforço dos fundos de resgate, emissão de euro-obrigações, supervisão bancária e reforço do orçamento comunitário); «Europa em Responsabilidade Limitada (com reforço dos fundos de resgate, incentivo aos Estados em maiores dificuldades para refinanciamento nos países emergentes, com renegociação de dívida para casos graves, euro-obrigações, supervisão bancária e reforço do orçamento comunitário, ainda que limitadamente); «Uma Europa com Dois Euros» (com avanço dos Estados do núcleo central para uma cooperação reforçada que unificasse as suas políticas orçamentais e a fiscalidade, com poder acrescido no BCE); e «Um Espaço Económico com Duas Âncoras Monetárias» (os Estados que incorressem em situações de insolvência seriam convidados a sair da zona euro, podendo manter-se na União e beneficiar de uma década de fundos estruturais ou optar pelo Espaço Económico Europeu, onde não beneficiariam dos fundos, mas também não teriam as obrigações das políticas comuns – podendo optar pela âncora da libra esterlina). No caso português, torna-se necessário pôr em prática reformas estruturais em quatro áreas-chave: sistema financeiro (aproximando-o do modelo anglo-saxónico e mobilizando a poupança das famílias e investidores institucionais), sistema de proteção social, de educação, saúde e segurança social (com mais poupança e capitalização e menos dependência do Estado) e reforma da administração do território e fiscalidade (com maior responsabilidade local e subsidiariedade, competitividade, estabilidade e simplificação tributária). Urge, pois, consolidar polos competitivos: atrair rendimento do exterior (turismo, saúde e reabilitação), exportar serviços, conteúdos e conceitos (investigação científica e tecnologias de informação), bem como recentrar a tradição industrial, para aumentar valor e incentivar a localização em Portugal de operadores globais (energia, logística, transportes). Deveremos, pois, levar mais longe a exploração da natureza arquipelágica do território e assumir um novo mapa para o crescimento no mundo global: dar maior prioridade à relação atlântica, diversificar as relações asiáticas (Japão, Índia e China), estabelecer parcerias com os países nórdicos (como a Noruega e a Suécia), intensificar relações com o Mediterrâneo Oriental e o Golfo Pérsico, e privilegiar os Estados alemães que possam ter maiores vantagens mútuas. Em suma, uma leitura atenta e crítica de «A Economia de Uma Nação Rebelde» permite irmos além do imediatismo que nos corrói e adormece…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Vasco Graça Moura

 

 

É um grande amigo que perco, que conheço há cerca de quarenta anos e com quem tive sempre uma relação de admiração e estima pessoal. Membro ativo do Centro Nacional de Cultura deixa-nos um lugar insubstituível. Sempre nos encontrámos numa ligação muito próxima e de confiança mútua. É uma das grandes referências da cultura portuguesa contemporânea. Não podemos esquecer o poeta e o ensaísta dotadíssimos. Foi um escritor de todos os ofícios e sempre com elevadíssima qualidade e sensibilidade, capaz de abranger de um modo amplo e compreensivo a identidade portuguesa e a sua ligação universal desde os clássicos aos modernos. O recente ensaio sobre as identidades europeia e portuguesa é de uma grande lucidez e pertinência, devendo constituir um motivo sério e obrigatório de reflexão. Era um humanista dos tempos de hoje - frontal, corajoso, determinado. Não podemos compreender a leitura moderna de Camões sem o contributo de Vasco Graça Moura - daí que a sua versão fidelíssima de «Os Lusíadas» para os jovens seja fundamental quer nos domínios cultural e literário, quer pedagogicamente. Como tradutor, basta lembrarmo-nos de «A Divina Comédia» de Dante e de toda uma obra inultrapassável. Foi, nesse sentido, um espírito do Renascimento nos nossos dias - e nunca o esqueceremos por isso. Não há palavras neste momento. Apenas o silêncio de uma sentida homenagem a um dos nomes maiores da cultura portuguesa.


Guilherme d'Oliveira Martins

Como a aragem da manhã...

 

Minha Princesa de mim:

 

No meio de tanta aflição, procuro estar sereno, afasto angústias... Vim, pela manhã de fim de inverno a prometer primavera, apoiar-me na bengala de velho para caminhar à beira-mar. Aqui, onde o sol faz respirar a terra e subir do mar esta neblina que enche de misteriosa graça a transparência do ar. Adivinho no horizonte próximo o recorte familiar das serras que hoje não vejo e a transpiração telúrica de tudo me esconde, como promessa de noiva. Também pode ser bom sentir o que não temos nem vemos... Talvez seja mais livre o braço cuja mão não prende mais do que o fugidio ar, e no vago só alcança a vaga esperança de saber que um dia há  -  esse dia,sim, tão certo que já o sentimos antes  -  em que tudo há-de alcançar... Será, quiçá, imaginação minha, ou estranha saudade de não sei o quê, mas pensossenti agora  -  cântico épico ou prece malinké, ao som gemido de uma korá -  o conto magoado do guerreiro que sofreu o esquecimento da sua amada. Não foi traído, nenhum rival, possível ou impossível, lhe roubou um coração atento ao seu. Foi, só e simplesmente, esquecido. Preterido pelo sossego pretendido por quem, ao risco doloroso de se dar a querer bem, preferiu o dogma silencioso de ficar bem consigo. É fácil amar para fora, e tão difícil amar por dentro. E todavia... o amor só é verdadeiro quando a verdade é essa íntima certeza, tão fiel, do coração. Amar é, sempre, procurar a reunião, e pode o caminho do amor, por isso mesmo, ser sempre uma procura. Da primitiva divisão celular  -  que inspirou Georges Bataille a afirmar que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort,  -  até à morte, todos procuraremos, sejamos Don Juan ou S. João da Cruz, essa transformação do amor na cousa amada. Mas o que diferencia um frade carmelita ou um monge cartuxo dum courreur de jupons não é o objecto, mais ou menos feminino, sexual, sublimado ou carnal do seu amor:  é a fidelidade. E não se é fiel por convençaõ ou obrigação. A fidelidade é interior à alma. O amor de Deus, como o amor humano  -  e há tantos amores surpreendentes!  -  não pode ser calculado ( calculista nunca!) : dizia Pascal que le coeur a des raisons que la raison ne connait pas ... Não se referia,presumo, a arrebatamentos... E se uma ascese interior for mestra do nosso amor, é ao pensarsentir o querer bem que nos descobriremos. Mais livres, mais puros, mais verdadeiros. Esta carta talvez coubesse num bilhete postal. Ou talvez seja maior do que muita escrita. Como a aragem da manhã...  Dou-te a mão

 

      Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira.

UBI CARITAS, IBI EST DEUS…

 

Minha Princesa de mim:

 

Dei hoje um salto ao museu Guimet: é dos tais, aqui em Paris, que vou visitando quando por cá passo. Esta tarde  -  estaria menos virado para o Japão e o Sudeste Asiático  -  detive-me a contemplar um belíssimo baixo-relevo, em xisto, exemplar da arte de Gandara ( região vizinha da atual Peshawar, no Paquistão, situada entre este país, a Índia e o Afganistão), representando a prédica do Buda Dipankara. A arte gândara dos séculos I a V da nossa era é evidentemente um produto misto de tradições imaginárias e estéticas de raiz hindu, persa e helenística. Nesta magnífica escultura, o brâmane Sumeda, prostra-se no caminho de Dipankara, e sob os passos deste estende a cabeleira farta, para que o primeiro antecessor de Gautama não suje os pés. Assim conta o Budavamsa, lenda da Linhagem dos Buda, como Sumeda, contemporâneo de Dipankara, por tal humildade e tanta fé, será ali logo anunciado como Meteia ou Matreia, o Buda dos tempos futuros. Sumeda  será então Gautama, a raiz da linhagem de Sidarta (que será o Buda por excelência), cujos pais eram o rei Sudodana e sua mulher Maia. Esta rainha que, estéril, praticava a continência com seu marido, verá, em sonhos, um elefante branco penetrar-lhe o lado direito do ventre, e , a caminho de uma visita a parentes seus, sentirá, mantendo-se de pé debaixo de uma árvore, o seu flanco direito a abrir-se e dele nascer um menino que não a magoa nem fere. Livramento tão imaculado como a concepção sem intervenção de homem. E logo, rebentando do solo, surgem lótus que o recém nascido pisará sem medo, primeiro para norte e, depois, nas outras direcções cardeais... Diz-nos o Lalitavistara, narrativa da vida do Buda  -   do sec. I antes de Cristo  -  que assim o faz, qual leão sem medo nem terror, para proclamar ao mundo que vencerá a doença e a morte... Alerta-me uma dessas profecias que intituitivamente me assaltam que, daqui por uns anos, talvez em 2013, um linguista californiano, professor universitário chamado Michael Witzel publicará pela Oxford University Press, um trabalho de investigação sobre The Origin´s of the World´s Mythologies. Progredindo, por um regresso no tempo, no conhecimento das línguas humanas, de modo a desenhar-lhes os ramos até ao tronco, vai chegando a fotos de família de várias lendas e narrativas que povoam o nosso imaginário. Comuns a todos são angústias, anseios e interrogações. Várias se foram, do mesmo impulso, desabrochando as respostas: muito embora o Bodisatva incarnado em Sidarta tenha descido do céu dos deuses Tusita, para a sua última vida humana, a fim de revelar a via de uma libertação a todos acessível, esta será imanente, resultará de uma meditação purificadora do desejo terrenal de cada um.   Pelo menos assim entendi eu aquela história... Mas quando deparei com a cena de Sumeda oferecendo os cabelos ao pisar de Dipankara, o que me ocorreu logo foi a Madalena enxugando os pés de Cristo... Tal como a pintou Alessandro Bonvicino ou Moretto da Brescia  -  e nesta cidade está, na igreja de Santa Maria Calchera, a sua Ceia em casa do fariseu (1540): fecho os olhos e, aqui em Paris, diante do baixo relevo gândara reconheçoa posição de Madalena ajoelhada aos pés de Cristo. As próprias dobras da sua saia, são, quase mil anos depois, uma "cópia" do Sumeda que hoje vi aos pés de Dipankara. Todos teremos recebido, na herança dos nossos antepassados, lendas e narrativas tão semelhantes que reflectem uma origem comum, e até do mesmo modo sentiremos ou representaremos  --  sem qualquer contacto próximo  -  gestos de humildade e fraternidade, ou de orgulho e ódio: desde o antiquíssimo de nós que temos a mesma condição. Mas esta é também uma árvore enraízada na terra de que somos feitos, de cujo tronco surgiram ramos diversos e rebentos novos, flores de muitos cheiros, frutos diferentemente saborosos. A todos nos rega a mesma graça e nos alimenta a mesma seiva. E a nenhum de nós é permitido cortar ou secar outro ramo, nem qualquer rebento. Manda a minha fé que creia  -  como os que plantam ciprestes nos cemitérios  -  que a vida humana e a nossa árvore comum é como essa árvore que, depois de alargar-se em copa larga, se reúne no topo, sem nada de si esquecer, como seta apontada ao céu. Muitas vezes te disse, minha Princesa de mim  -  e em charlas e palestras e escritos  -  como pensossinto a necessidade íntima de fidelidade à comunidade a que pertenço, à cultura em que vivo, à religião que professo. Mas a fidelidade não é inerte: é sempre um esforço de atenção aos outros e aos sinais dos tempos. Como ramo de árvore que se revigora para dar mais flor e fruto e não morrer antes de chegada a hora. Como é, também, o cuidado no respeito dos outros, porque surgiram do mesmo tronco e são parte do nosso corpo. Quando alguém perguntou ao Dalai Lama se Buda corresponderia ao Absolutamente Outro, à pessoa de Deus, com que as religiões monoteístas se relacionam, ele respondeu: Não. Para nós, o Buda não é o absolutamente outro. Mas se definirmos Deus como refúgio, como o Despertador, o Buda corresponde à vossa noção de Deus... Certas pessoas podem guardar a sua fé de origem e adoptar técnicas ou prácticas de outra religião. Penso que isso é positivo. Mas outras pessoas desejam mudar de religião. É esse o fenómeno mais perigoso. Essas pessoas devem reflectir muito, e muito longamente. Porque não é natural cortarmo-nos das nossas raízes. Os que o fazem muito depressa, será , em regra e geralmente, por amargura e despeito da sua anterior religião. Tornam-se então críticos da sua religião de origem. E isso é muito grave, porque assim se destrói o próprio espírito da religião, que é feito de tolerância, de sabedoria, de amor... Sei  bem que nem todos os budistas pensam assim. Mas gostaria que nós, católicos, tivéssemos a fé necessária ao entendimento das diferenças, na medida do nosso desconhecimento dos caminhos de Deus; a esperança de que, sendo fiéis à nossa fé, veremos um dia Quem é tudo em todos; e o amor, sobretudo porque não se exalta e é paciente, paciente como o longo caminho da revelação de Deus na história dos homens... Como talvez tu comigo. Dou-te a mão.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira 

A valsa: uma partilha de comunhão.


Creio que toda a arte está cheia de uma nostalgia acordada. A arte tem mesmo um lugar que frequentemente se toca com os sonhos, e, quando isso acontece, do longe, vem o som de uma valsa numa acesa comunhão que, sem fronteiras, nos convida a ultrapassar os três tempos para que a completude se nos abrace e com o peso da secreta nostalgia, connosco dance.

O beijo que então damos em intensa plenitude, pode confundir os seres divididos que somos. É um anseio, sim, é também um anseio o que sentimos para que a vida, quantas vezes parente pobre da arte, não se fique aquém, nem se faça além. Apenas dance, dance aquela valsa. Supere os limites do tempo. Comungue.

Mas a seu favor no oposto

vivem-se tempos de grande resignação, de grandes expoentes de normalidade, a que se dá o nome de saúde das ideias. Ora, este excesso dessa saúde, não se insatisfaz por uma vida fragmentada e menor. Pelo contrário, aglutina-a em cimento, confirma-a não corrosiva, enquanto as multidões, numa existência abaixo das potencialidades humanas, criam ordens a que dão nome de tranquilidade, expostas em bandeiras de horizontes dopados.

E só a valsa, realidade esquiva, talvez nem sabendo bem o momento a que nos dá causa, aceita-nos, e dança connosco um morder de bocas tão nostálgico que nada nos prometendo, prometemos nós não a deixar.

E esse é o tudo. É a vida que na arte da sem reserva, dá, e faz sua, a luz que aconteceu.

Sem pretensões as fraquezas são forças e não deixam de perguntar à valsa:

- o que quer de mim uma revolução como a tua que em forma de morango me abraça nesta dança valsa-comunhão?

A valsa, por óbvio, não responde.

A valsa acontece, para que cada um, enquanto vive, retire à sua vida as formas de noite. E que mesmo no mau do mundo, possa morrer um velho dentro dele, mas que resista na esperança forte de a saber fundamentar no até antes.

Basta que saiba que fez um quase tudo o que podia, e mesmo que não tenha dançado a valsa, tenha-a ele ouvido, e, para ele, valha sempre o que valeu.

A comunhão.

 

M. Teresa Bracinha Vieira

Sec.XXI 

O ENSINO DO TEATRO EM PORTUGAL - A REFORMA DE GARRETT

Propomo-nos evocar aqui, numa série de textos, a trajetória do ensino do teatro em Portugal, a partir da reforma iniciática de Garrett e da evolução, até aos nossos dias, com algum destaque para a experiencia pessoal de aluno de disciplinas teóricas e de docente de História do Teatro no Conservatório Nacional, hoje denominada Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa (ESTC): aluno e professor que fui, num total intermitente de dezenas de anos, nas disciplinas históricas e teóricas da instituição, que existe sem interrupção desde 1835/36 até hoje.

Em 5 de Maio de 1835, o velho Seminário da Patriarcal, onde se ministrava o ensino da música, é transformado em Conservatório de Música, instalado na Casa Pia e dirigido por José Domingos Bontempo. E em 1836, Garrett é encarregue por Passos Manuel de preparar e elaborar “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”, abrangendo toda a estrutura da criação, ensino e profissionalização do teatro, desde a escrita dramática (“Concursos do Conservatório”) até à criação do Conservatório Geral de Arte Dramática, que absorverá a Escola de Música e será dirigida, até 1841, pelo próprio Garrett.  

É discutível, no que se refere ao ensino do teatro, falar de “reforma” de Garrett: em rigor devemos falar em “criação” pois, antes do diploma legal que instituiu a Escola - Portaria de 15 de Novembro de 1836, redigida por Garrett, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manuel, diploma consagrador da reforma estrutural da teoria e prática do teatro em Portugal - havia obviamente teatro entre nós, mas não havia ensino estruturado e sistematizado no ponto de vista cientifico e pedagógico.

De notar que Garrett fora exonerado, nesse mesmo ano, das funções de Ministro Plenipotenciário junto da corte de Bruxelas, através de uma carta pouco lisonjeira de D. Maria II que além do mais erra-lhe o nome – chama-lhe Garretti…

Em qualquer caso, Garrett assume a direção do Conservatório, instalado no antigo Convento dos Caetanos, de acordo com um Relatório do “Regimento” das três Escolas integradas – Declamação, Musica e Dança, datado de 24 de Novembro de 1838 e aprovado por D. Maria II em 27 de Março de 1839.

Garrett é exonerado do Conservatório por Costa Cabral em 16 de Julho de 1842. O cargo e a função trouxeram-lhe dissabores - e talvez o maior, dada a proverbial vaidade garrettiana, terá sido a alcunha que nessa fase lhe puseram: como o currículo da Escola de Declamação se resumia a três disciplinas, denominadas “Reta- Pronuncia e Linguagem”, Dança e Música, Garrett, bem como outros membros do corpo dirigente da Escola, eram por vezes designados por “reta-pronuncia”, o que muito o irritava.

Em qualquer caso, o Conservatório, depois ESTC, teve sempre uma qualificada seleção de diretores e professores. E de lá saíram e saem, até hoje, grandes nomes da História do Teatro Português. Evocarei aqui alguns deles, referindo em particular duas fases da Escola: quando a frequentei como aluno-ouvinte do que então se denominava Filosofia do Teatro, a partir de 1958, sendo diretor o meu pai, Maestro Ivo Cruz, e iniciando eu, no mesmo ano, a licenciatura em Direito; e depois, quando assumi a regência da cadeira de História do Teatro no Conservatório e na ESTC.

 

DUARTE IVO CRUZ 

LONDON LETTERS

 

A Queen of hearts, 2014

As Easter holydays disponibilizam uma agradável pausa para refrescar as ideias e enriquecer o olhar com os lilacs em volta e as magnolias de St James. Em 1926, April 21, nasce em Mayfair Lilibet of Windsor cuja coronation em 1953 como monarca assegura seis décadas de estabilidade política ao United Kingdom onde são notas marcantes o poder moderador, o reformismo social e o cosmopolitismo global. — Chérie, a l'œuvre on connaît toujours l'artisan! Muito se escreverá sobre o reinado que emerge das trevas da II World War (1939-45). Mas nos anais pontuará a atual taxa de aprovação popular de HRM The Queen e mesmo da Royal Family. Em 100 Britons, 77 apoiam a manutenção da monarquia parlamentar face a 17 que favorecem a república. –Well, we don't just make a kilt. We build it! Estes números representam um assombroso diplomatic triumph.

The Queen Elisabeth II completou ontem mais um aniversary day em excelente saúde, pessoal e política. Aos 88 anos de idade Her Royal Majesty permanece com aquela star quality que cedo encanta sir Winston S Churchill. Com o avanço das décadas, porém, adquiriu um lugar particular nas longas linhas da realeza destes reinos e que o seu mais recente e graining portrait evoca com a cortesia do Buckingham Palace: a suavidade natural do aço. Uma caraterística pessoal, com que escolta um constitucionalismo assente na escrupulosidade da separação de poderes e da rule of law.

No 1957 Christmas Broadcast, uma jovem Elisabeth of Windsor refletia desde Norfolk sobre o seu papel num sistema político modelar das democracias ocidentais: "In the old days the monarch led his soldiers on the battlefield and his leadership at all times was close and personal. Today things are very different. I cannot lead you into battle, I do not give you laws or administer justice but I can do something else, I can give you my heart and my devotion to these old islands and to all the peoples of our brotherhood of nations." Nesta mensagem, a primeira a ser televisionada, a partir da Long Library de Sandringham, com 25 anos, concluía: "I believe in our qualities and in our strength, I believe that together we can set an example to the world which will encourage upright people everywhere."

Ao parabenizar a monarca saúda-se a eficácia e a longevidade da The Queen of People’s hearts. Nos dias de bonança e de tempestade, HRM suaviza friends and foes. Tanto que o seu tradicional family model mantém um tipo de liderança onde manner and form conjugam a autenticidade do poder. — Vivat Regina Elizabetha.

 

St James, 22nd April

 

Very sincerely yours,

 

V.

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