Tradições e misturas perigosas..
Minha Princesa de mim:
Vê-me tu bem, aqui em Kyoto, onde continuo a estar, lendo e misturando tudo, do Japão às Arábias, e mais o Tenno (imperador descido do céu) com o Papa, todos esses sonhos, projectos, manias, intenções, sistemas políticos e credos religiosos, diferentemente tão parecidos, aparentemente tão diferentes... Quiçá coincidentes no tempo, mas tão longínquos no espaço e na comunicação, comungantes em essências, talvez, divergentes nas representações... Penso sinto, como sabes, que nada inventamos, serei platónico, não sei. Nem me encantam ou preocupam as muitas reclamações de posse da "Verdade", que por aí sempre têm andado. Passeiem-se, fico bem. Irritam-me, por vezes, aí sim, quando se tornam militantemente exclusivas do sentimento dos outros, assim incapazes de ver "Aquele que é tudo em todos", encerrando, portanto, a porta ao diálogo. A tradição da minha fé diz-me que os homens todos foram criados à imagem e semelhança de Deus. O antropólogo que não sou procura sempre essa imagem nos outros, como retrato meu feito, noutro dia, pelo mesmo pintor. Paleontólogo que era, Pierre Teilhard de Chardin, já próximo do fim dos dias em que por cá andou, vai buscar o título de um romance do Graham Greene, The Heart of the Matter, para uma das suas últimas obras, Le Coeur de la Matière, explicando: O título de Graham Greene convir-me-ia maravilhosamente (mas com um sentido totalmente diferente) para um ensaio que sonho escrever já há uns tempos, com um nome que me ocorre em inglês mas é intraduzível em francês: The Golden Glow (isto é, a aparição de Deus, fora de e no Coração da Matéria)... E em epígrafe escreverá: No coração da Matéria, / Um Coração do Mundo, / O Coração de um Deus. E a sua derradeira obra escrita, Le Christique, dá à respectiva introdução o título de A Amorização do Universo, e, à conclusão, o de Terra Prometida, que começa assim: A Energia fazendo-se Presença. Aqueles que se fecham em deus ou deuses que pretendem possuir em conceitos, normas, ritos, imagens e estátuas que respeitam ou veneram, poderão fazê-lo. Desde que não se esqueçam -- e muito menos desdenhem, ataquem ou persigam -- outras devoções. É humano o erro. É divino o universal apelo do coração de Deus. Esse é católico. E eu sou católico porque acredito que Deus chama todos. E que essa vocação de Deus, Jesus claramente a disse: Amai-vos uns aos outros. Hoje, aqui em Kyoto, penso em Roma. Melhor diria na Roma, nessa que o Apocalipse de S.João descreve como mulher blasfema, com sete cabeças e dez cornos... Na sua fronte estava inscrito um mistério: Babilónia magna mãe das prostitutas da terra. E a meus olhos essa mulher se embebedava do sangue dos santos e do sangue dos mártires de Jesus. Um deles teria sido Pedro, nos anos 60 da nossa era, talvez um dos muitos crucificados e queimados como tochas ardentes a iluminar os jardins de Nero, como conta Tácito, que acrescenta: Mesmo que essa gente fosse culpada e merecesse o maior rigor, tínhamos, afinal, piedade deles, ao perguntarmo-nos se os eliminavam, não tendo em vista o interesse público, mas tão somente a satisfação da crueldade de uma só pessoa... Há nesta frase uma questão que me arrepia: sentimos pensamos o horror desumano da "eliminação" do outro, que nos repugna, e pensamos sentimos que talvez o interesse público a possa justificar...Mas logo tememos que a crueldade da medida tenha a dimensão do demónio em nós... Penso muitas vezes que a representação da Justiça, de olhos vendados e balança na mão, nem sempre terá reflectido a procura da equidade -- ou do equilíbrio da misericórdia -- mas mais nos terá ameaçado com o rigor da cegueira que vai condenar quem não terá percebido, na sua efémera, necessária, circunstância, um princípio qualquer que, por igualmente fugaz que seja, os poderes então instituídos pretendem afirmativo, imperativo e eterno. Estou hoje em maré divagante, não enche nem baixa. Tomado de muitos pensamentos, inumeramente sentidos. Cabeça e coração andam por aí às curvas, de braço dado. E eu assisto e vejo o que vêem, atrás e adiante, deste lado e do outro. Penso nas duas linhagens mais antigas do mundo, ambas tendo em comum a permanência pela sucessão e uma origem que se afirma de vínculo divino: a tradição imperial japonesa que se pretende descender da deusa solar Amateratsu; e o papado, ou sucessão apostólica de S.Pedro, primeiro bispo de Roma. A esmagadora maioria dos imperadores nipónicos pouco ou nenhum governo político exerceu, mas foi milenarmente preservando o mito fundador da ascendência divina do povo japonês, simbolizando e garantindo a sua unidade. A tal ponto que mesmo os americanos vencedores da Guerra do Pacífico, em 1945,entenderam dever poupar o imperador Showa (Hirohito) à destituição e ao juízo de tribunais de guerra. Outros foram condenados em vez dele... Pelo seu lado, muitos papas sonharam ou pretenderam exercer poderes temporais, mas o filtro do tempo histórico foi colocando na perspectiva cristã e evangélica pretensões mundanais... As primeiras tentações surgem no sec.IV, na sequência da conversão de Constantino, que percebera como o império romano, minado por lutas intestinas e externamente ameaçado pelos bárbaros, poderia encontrar no cristianismo um princípio e uma força de unificação política e religiosa. Aliás, fez questão em conservar o seu título pagão de Pontifex Maximus que, até hoje, muitos papas não desdenharam usar. Mas o imperador nunca foi nem bispo de Roma, nem papa, e morreu baptizado no seio da heresia ariana. De qualquer modo, a tal besta do Apocalipse, a nova Babilónia, Roma, tornar-se-ia, por ter sido destino e lugar do martírio de S. Pedro e S. Paulo, a sede visível da Igreja invisível. Ao papa S. Leão Magno, que salvou a Cidade Eterna dos hunos de Átila, se deve talvez a formulação que resume num conceito perene todas as discussões anteriores sobre a natureza teológica da Igreja e do papado. Antes dele, já o papa Bonifácio, dirimindo, em carta aos bispos de Tessália, em 420, questões relativas à solução adequada de divergências doutrinais, afirmara: Institutio universalis nascentis Ecclesiae de beati Petri sumpsit honore principium in quo regimen ejus et summa consistit. Ex ejus enim ecclesiastica disciplina per omnes Ecclesias fonte manavit. Ou seja: o nascimento e a instituição da Igreja universal tem a sua origem no magistério de S. Pedro, onde está o seu governo e o seu resumo. E dele brota, como de uma fonte, qualquer disciplina eclesiástica para todas as Igrejas. O dominicano frei Yves Congar, o grande eclesiólogo do concílio Vaticano II, escreve: Para S. Leão, o cargo pastoral está repartido ("multique pastores"), mas permanece um e, nesse sentido, colegial: mas de tal modo que, nessa unidade orgânica, o sucessor de Pedro é sempre caput, princeps, fons, chefe, primeiro, fonte. Há aí, portanto, simultaneamente, monarquia e colaboração. De facto, os papas do Séc.V falam amiúde em termos de "colégio"; concebem o seu primado como presidência de uma Comunhão única e universal, como o cargo de fortalecer os seus irmãos. Mas essa presidência é coisa diferente duma situação de "primus inter pares", porque, embora entre os apóstolos (os bispos) seja comum a dignidade, existe todavia uma "discretio potestatis". O colégio hierarquiza-se pelo esquema cabeça-corpo ou membros. Na verdade, este esquema e este conceito orgânico da Igreja como sociedade-corpo no sentido jurídico do termo, constituem a base de toda a eclesiologia romana. Os papas falam da unidade da Igreja e da comunhão das Igrejas, da catolicidade, da Igreja-Esposa, Corpo de Cristo, povo sacerdotal. Mas a sua preocupação dominante, a sua contribuição própria, consistem na apresentação desse corpo como uma realidade orgânica, onde eles, sucessores de Pedro, ocupam o lugar de cabeça visível, de modo que toda a vida do corpo depende deles. É a concórdia com a cabeça que assegura a concórdia entre os membros e, portanto, a unidade de todo o corpo. A essência desta visão da Igreja e do Papado permaneceu até hoje, ultrapassando desvios episódicos, ou tentações de exercício de poder temporal. À pretensão latente de uma juriditio civitatis, impôs-se uma visão da relação da Igreja com o temporal mais antropológica e próxima dos Padres da Igreja: a consciência dos fiéis, formada na Igreja, aceita a laicidade das estruturas mundanais, que não têm de ser clericalmente sacralizadas, mas sim consagradas por uma humanização segundo Deus. Ao Papa, sucessor de Pedro e príncipe (ou primeiro) dos apóstolos, cabe a missão de fortalecer a fé e a unidade dos fiéis, que estão em diálogo contínuo com o mundo. Daí a importância de uma persistente abertura aos outros, atenta aos sinais dos tempos. No Japão, a linhagem imperial que, de acordo com as Nihon Shoki (crónicas do Japão) se teria iniciado em 660 a.C., pelo imperador Jimmu, é, mais do que uma de chefes de Estado, a sucessão de sumos pontífices do mesmo sangue, como princípios unificadores da nação nipónica. Hoje ainda, no seu palácio, o imperador do sol nascente procede, em cada ano, à plantação ritual do arroz que, como sabes, é o pão essencial do seu povo. O professor Hiraizumi Kiyoshi, nacionalista, que se demitiu da Universidade Imperial de Tokyo a 15 de Agosto de 1945,aquando da rendição do Japão, escreve na sua História do Japão: A Bíblia consiste no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Aqui "testamento" significa promessa; por outras palavras, a Bíblia é o registo das promessas feitas entre Deus e o homem. No Japão, o Eterno Decreto de Amaterasu Ômikami foi uma promessa como essa, e foi feita para muitas gerações. E noutro passo afirmará: O princípio do povo Japonês vem desde a antiguidade. A sociedade deveria ter sido dispersa e irregular, sem qualquer propósito único. Mas quando veio a unificação para lhe dar, sob uma vontade singular, o propósito da sua responsabilidade face às outras nações, teve lugar a fundação da nação. Há quem diga que os Japoneses são uma raça mista. Os Japoneses incorporam bem os outros, e por isso terão aceite outros povos e miscigenado. Mas o seu fulcro central, a fonte principal de vigor, é de carácter distinto. Esta vocação para o encerramento étnico e político, ainda que invocando um fundamento religioso, não impediu o proselitismo budista, importado da China e da Coreia no sec.VII, de formar, com o shintoísmo indígena uma prática religiosa sincrética. E mesmo as perseguições que marcaram o fim do século cristão ou português, na primeira metade do sec.XVII, terão sido talvez motivadas mais por razões de ordem política do que pela aversão cristã ao sincretismo. A tradição que, durante muitos séculos, esvaziou o pontificado imperial de poder político concreto e da consequente prática governativa, terá mantido o Império do Sol Nascente em estado de seclusão. Com a restauração Meiji (1868), porém, organizou-se o Estado como monarquia europeia, com a ideia inerente de que uma nação forte e moderna tem missão "civilizadora": donde a consequente colonização da Coreia, a invasão de território chinês e, finalmente, a trágica guerra pan-asiática. Para fortalecer a autoridade interna e a projecção expansionista, foi-se acentuando o carácter divino e o poder teocrático do Tenno. Vês, Princesa? Há ideias, desejos e práticas que não se devem misturar. A César o de César a Deus o de Deus. E à consciência o sentido de si e dos outros. Dou-te a mão.
Camilo Maria