A Força do Ato Criador
Mira Schendel, o corpo e a alma
‘You don’t have to paint what you see, not even what you feel, but only what lives inside us…’, Mira Schendel
Mira Schendel (1919-1988) começou a pintar aos trinta anos, e fê-lo furiosamente (‘I started painting in Brazil. Life was very hard, I had no Money to pay for paint, but I bought cheap materials and painted passionately. It was a matter of life and death.’, Mira Schendel, 1981). Já vivia em Porto Alegre. Autodictaticamente, começou por pintar naturezas mortas, melancólicos retratos, interiores e composições arquitectónicas onde a assimentria adquiria alguma importância.
Mira apresentou, desde logo, um corpo de trabalho que se desenvolvia em várias direcções. Por um lado caminhava para uma depuração formal onde descrevia espaços e paisagens de grande amplitude; por outro mostrava um interesse por trabalhos manuais demorados, como se verifica na série dos ‘Bordados’ e na série das ‘Droguinhas’ (mais relacionados talvez com o universo doméstico, pois no final dos anos 50 Mira teve uma filha e trabalhava sobretudo em casa); e ainda se afirma o trabalho que faz ao usar letras e palavras sobre uma matéria quase ausente – o papel de arroz japonês, as placas de acrílico e o papel vegetal.
Em meados dos anos 50, São Paulo experienciava um boom cultural e financeiro. Mira não se interessava pelos círculos intelectuais emergentes, preferia dar antes valor a amizades selectivas e intensas que incluíam o físico teórico Mário Schenberg, o filósofo Vilém Flusser, o psicanalista, poeta e critico Theon Spanudis e o poeta concreto Haroldo de Campos. Mira interessava-se por discussões relacionadas com a ciência, a filosofia e a religião – questões sobretudo relacionadas com a busca pela verdadeira essência da vida, da existência, do ser, do vazio e do infinito. Mira era uma mulher verdadeiramente intelectual, confirma Tanya Barson, a curadora da exposição que esteve patente de Outubro a Janeiro na Tate Modern e que agora está em Museo de Serralves no Porto.
O trabalho de Mira Schendel é assim ao mesmo tempo corpo e alma.
Corpo
Os processos de fora do corpo de Mira Schendel participam na produção da sua obra – verificado sobretudo ao escolher pintar paisagens, fachadas, geladeiras e bordados e também ao entrançar o papel em ‘Droguinhas’.
É sempre visível, no seu trabalho, a presença da mão humana – mesmo nas composições de caracter mais geometrizante, as telas têm textura e espessura, as pinceladas vêem-se (‘..the texture, is always there (…) I would never make a completely smooth painting.’). As questões formais/visuais não interessam tanto a Mira – a abstracção que aparece geomérica tem origem em paisagens e fachadas que estiliza, tentando relacionar o corpo com os espaços que habita.
A matéria que aplica sobre as telas (seja ela óleo, tempera, gesso, latex ou aguarela); a presença do gesto precário; a subtileza dos traços finos feitos à mão; as letras e as palavras que surgem sobre o papel de arroz, dentro das placas acrílicas e nos livros – todos estes elementos mostram que a sua abstracção é de facto, de natureza diversa. A procura pela depuração está sobretudo ligada a preocupações ontológicas.
Alma
‘Esta é uma tentativa de mostrar ‘o lado atrás’ da transparência está na sua frente e que ‘o outro mundo’ é este.’, (Diário, 1969).
Os processos de dentro do corpo de Mira também participam na fisicalidade da sua obra. O vazio no seu trabalho representa silêncio e espírito. É o nada inerente à existência humana – uma experiência intima, próxima e incomensurável.
Na série ‘Monotípias’ o desenho é frágil – obedece a um processo de decalque (onde usava óleo e talco) totalmente concebido por Mira. Letras e palavras flutuam em diversas línguas onde se exprimem delicadamente conceitos profundamente filosóficos – como se verifica na utilização de três conceitos diferentes de mundo [mitwelt (mundo social), umwelt (mundo físico/ambiente) e eigenwelt (mundo interior)].
A introdução da transparência através da utilização do papel de arroz japonês e das placas de acrílico, onde se vê em simultâneo a frente e o verso, são para Mira uma tentativa de imortalizar o fugaz e em dar significado ao efémero. A transparência revela-se aqui como uma existência imaterial (que contrasta com a opacidade das suas telas), que elimina o tempo e o espaço e faz uma aproximação do que está para além. A estrutura da consciência do ser passa a ser fluida. E também trás à memória o conceito de ‘Obra Aberta’, introduzido por Umberto Eco no início dos anos sessenta – onde se admite a noção de que objecto artístico é múltiplo, e infinitamente interpretável, sendo capaz de receber de cada uma das personalidades interpretantes o seu modo de ver, de pensar, de viver e de ser. E de facto, Mira através das Monotípias, dos Objectos Gráficos, dos Toquinhos e logo do não palpável produz objectos capazes de ser partes totais do sujeito que frui. As letras flutuam ‘…numa cósmica poeira de palavras’ (Haroldo de Campos) e desenham espirais – a espiral também aparece nos cadernos de Paul Klee como sendo uma figura matemática de elevada importância, porque representa um movimento continuo e perpétuo no tempo e no espaço. E Mira questionava incessantemente a materialidade da obra de arte. A ideia de eternidade e de espiritualidade corporizavam sempre os objectos que produzia.
Ana Ruepp