SÓ AMANDO PURGAMOS…
Minha Princesa de mim:
Vi no Tokyo Kokuritsu Hakubutsukan - o Museu Nacional de Tokyo - dois zosh, rolos de papel que se abrem na horizontal e se vêem ou lêem da direita para a esquerda, descrevendo cenas arrepiantes do Jigoku ou inferno budista, e pintados nos finais do sec.XII, na transição da era Heian para a de Kamakura. Um Jigoku-zoshi imagina a cena horrível de vermes necrófagos a desfazerem o corpo nu de uma senhora de alta linhagem; o outro é um Gaki-zoshi, pinta-nos uns danados (gaki) famélicos e esqueléticos a devorarem, numa ignóbil fossa, excrementos humanos... Já um século antes, uma Fujiwara no Michitaka, primeira mulher do imperador Ichijo, encomendara, para sua espiritual admoestação, um biombo com representações do inferno. Mas não conseguira olhar mais para ele... Porquê? Teria sido só por repugnância, por nojo? Nojo, aliás, é ainda hoje o que juridicamente se adjectiva aquele período em que o luto nos dispensa de outras obrigações. Ou seria por avassalador sentimento de culpa, ou por medo? O primeiro tem que ver com o temor do inferno, o qual é um caleidoscópio das nossas angústias... O segundo, que é temor imediato e não apenas interrogação sobre um eventual castigo futuro, tem só que ver com a consciência da nossa condição... Aí, medo é o receio do desconhecido: quem somos?, donde vimos?, para onde vamos? - receamos a resposta, não por ela, mas pela nossa ignorância. O medo do inferno agita-se perante nós, e todos nos perguntamos como, com que obras, dádivas ou actos de contrição e reparação, poderemos fugir aos horrores dessa eterna prisão e tortura. Conta o Evangelho que, só depois de no Jigoku já ter caído, um rico se lembrou de Deus e de Lázaro, esse pobre que ignorara em vida, in tempore oportuno. Para então suplicar que fossem avisados os seus (dele rico) familiares de que a injustiça e o coração fechado só ao inferno conduzem... Teria sido tarde, talvez, na parábola certamente o foi. Na misericórdia de Deus, tudo, ainda hoje, como sempre, dependeu e dependerá da resposta que quem tiver ouvidos, depois da escuta, quiser dar. A dureza crua dos Jigoku-zoshi contrasta com a serenidade das representações do Buda Amida, esse que promete a Terra Pura. Muitas vezes me interroguei sobre a tranquila, seráfica aparência de Buda, contraposta ao sofredor retrato de Cristo, seguido da imagem triunfante do Redentor. .. Talvez tenha a ver com uma diferença, quase imperceptível (e S. Francisco Xavier que o diga!), entre o conceito de felicidade alcançável pela imanência transcendente da meditação, e o da bem-aventurança possível pela encarnação de Deus, transcendência imanente... Mas não me deu hoje o fígado para teo-filosofias. Antes me surpreendeu, nesses zoshi, a lembrança da marmórea pedra tumular de Guillaume de la Salle, cavaleiro da Ordem de Malta, no pavimento da catedral de S.João, no esplendor do sec. XVIII: um capuz envolve a caveira, desdentada quase, do fidalgo. São só acusações de si, os olhos e as narinas. Ossos ainda vertebrados, o pescoço. Está ali a morte, não se enfeitou, é monástica. Não é estátua, ainda que jazente, de triunfos passados ou futuros. Se ressurgir, será para um imprevisível juízo. E logo me ocorreu outra imagem - que religiosamente guardo comigo - de um Buda magríssimo e sofredor, como outro com que deparei na Tailândia. Pintou-a o devoto Yamamoto, artista filho de um colaborador meu, que me dizia como, para ele, Buda teria vivido o sofrimento misericordioso de Cristo. Assim também me veio à cabeça outra lembrança: a de tantos e tantos monumentos tumulares que, na cristandade, procuraram enaltecer, para a eternidade, as desejáveis e imaginárias virtudes de muitos que, com pretensiosismo, se apontam como vencedores da morte. Como se a vitória sobre a morte não fosse a humilhação da vida que se perde, para se ganhar outra... Sobejam, na cristandade, exemplos do que eu chamaria quase ganância de canonização, pois esquecidos terão ficado tantos promotores de que a vitória definitiva sobre a morte conseguiu-a a paixão de Deus que se reduziu à humilhação da condição humana. Assim a morte é como o nosso esqueleto: descarnada e pobre. Como todos os pobres que, em vida deles e nossa, foram sendo esquecidos. Hieronimus Bosh representou tentações que são infernos, e infernos que continuam a ser tentações.O hediondo do mal que não nos larga a porta de casa. Desde esse misterioso instante, perdido algures, na escuridão dos tempos, em que ser humano se tornou em abrir os olhos e ver... E o que viu primeiro foi a morte, a sua morte, conscientemente. A morte com ele mesmo nascida, e que ele sabe, objectivamente, que não é só as mortes que vê à sua volta, mas a sua própria. Como sabe, precisamente porque a morte lhe habita a consciência, que não é apenas quando com ela actualmente se defronta e luta que terá de a olhar... Para o homem, a morte não é só uma eventualidade: é uma vocação que lhe traz muitas outras interrogações e representações. Seja qual for o nosso tempo e o nosso modo, a nossa fé ou o nosso desânimo. Piero della Francesca, na sua Ressurreição de Cristo (1463), hoje conservada na pinacoteca municipal de Sansepolcro, sua terra natal, mostra-nos um Senhor triunfante da morte, segurando com a mão direita a bandeira da cruz, e com o pé esquerdo bem firme sobre o túmulo que soldados adormecidos em vão guardaram... Já Matthias Grünewald nos dá um Cristo luminosamente explodindo, como saudação de vitória e paz, de um túmulo, cujos guardas ficam deslumbrados e caem... Dum e de outro modo se exprime a vitória da vida sobre a morte. Mas Cristo é Deus, e nós humanos apenas... Gosto muito das histórias sobre a dormição da Virgem Maria, tal como são contadas em textos, todos eles apócrifos, escritos em muitas línguas, do grego ao etíope, do copta ao arménio, do siríaco ao eslavo, do arábico ao latim, língua em que são conhecidas sob o título genérico de Transitus Mariae. Sobre esses contos assenta a iconografia cristã da morte e assunção de Nossa Senhora. Nas cenas da morte, ou surge o anjo anunciador que lhe estende a palma com que entrará no céu, ou a rodeiam e assistem os apóstolos, como naquela Morte de Maria, de Joos van Cleve, hoje na Alte Pinakothek de Munique, em que S.Pedro administra o santo viático. Muitas e várias são as representações da assunção, mas uma me tocou especialmente, numa visita à Galleria dell´ Accademia, em Florença: Nossa Senhora do Cinto, de Francesco Granacci. Diz a lenda que S. Tomé estaria ausente do trânsito e subida ao céu de Maria. Neste quadro, uma Virgem irónico-bondosamente sorridente, que anjos elevam ao céu, olha para Tomé ajoelhado junto ao túmulo que ela deixou - e onde florescem rosas - e oferece-lhe ,como prova de que é mesmo ela que está lá em cima, o cinto que a cingia... Na National Gallery, em Washington D.C., um quadro do Mestre da Lenda de Santa Luzia, mostra-nos Maria, Rainha do Céu, e resume bem o texto de Tiago Voragino (que na sua Legenda Aurea retoma lendas e narrativas apócrifas que considera merecedoras de crédito e de devoção) que para ti aqui traduzo: Foi assim que a alma de Maria deixou o seu corpo, e que ela voou nos braços de seu Filho e foi poupada a qualquer dor carnal, tal como fora preservada da corrupção. O Senhor disse aos apóstolos: «Levai o corpo da Virgem minha mãe para o vale de Josafat, colocai-o no sepulcro novinho em folha que lá encontrareis e esperai três dias até que eu volte para perto de vós». E logo as rosas flores de rosa -- a assembleia dos mártires -- e os lírios dos vales -- o exército dos anjos, dos confessores e das virgens -- a rodearam. Os apóstolos chamam-na,gritando: «Para onde vais, ó Virgem cheia de clarividência? Lembra-te de nós, ó Nossa Senhora!» O concerto dos anjos que ascendiam encheu de espanto as tropas que estavam no céu; precipitaram-se ao seu encontro e, vendo o seu Rei, que em braços levava a alma de uma mulher, e que esta se apoiava nele, exclamaram estupefactos: «Quem é esta mulher que sobe do deserto coberta de delícias e se apoia no seu bem-amado?» Os que a acompanhavam disseram-lhes: « É a mais bela das filhas de Jerusalém, que vístes cheia de caridade e amor». E foi assim que, cheia de alegria, ela foi acolhida no céu, colocada num trono de glória à direita de seu Filho, e os apóstolos viram que a sua alma tinha tal pureza que nenhuma língua mortal poderia exprimi-la. Mas, por uma qualquer associação temática, cromática, ou simplesmente de impressões minhas ou de composições e estilos que povoam o meu museu imaginário, o Maria, Rainha do Céu evoca-me O Juízo Final do Fra Angelico, em San Marco, Florença. Dizia Sto Agostinho que, depois da morte, só há dois lugares: o céu e o infrerno. Nos séculos XII/XIII inventámos mais um, uma espécie de câmara de descontaminação: o purgatório. Aliás, já Agostinho meditara sobre o rigor extremo de um juízo final: não poderia, ao fim e ao cabo desta vida, existir um lugar,uma condição, em que se fossem apagando, por prestações, tantas outras faltas que talvez fossem mais veniais e não merecessem o eterno exílio? A ideia dessa condição de purga -- conhecida por Purgatório -- foi ganhando corpo, esperança e crença na cristandade, facultando até a venda eclesiástica de indulgências, uma espécie de bilhetes de primeira classe na barca de Caronte... Talvez por isso, na Reforma do sec.XVI, Lutero rejeitasse o conceito de purgatório... Mas a fé e o temor populares mantiveram-no nas devotas prácticas católicas, quiçá mais lembradas do êxito da oração de Abraão, pai dos povos, suplicando a Deus que da destruição poupasse cidades inteiras se nelas encontrasse um justo. Assim, então, mais esquecidos do insucesso do rico que, em vão, lhe pedira que prevenisse, do risco de eterno ostracismo, os seus familiares, como narra o Evangelho. No Juízo Final do Angelico -- e quando voltares a San Marco, olha bem para essa magnífica pintura -- um Cristo pantocrator e trinitário, sentado no trono eterno da realeza celeste, preside, nesse acima de tudo que é o Céu, a assembleias de arcanjos e anjos a seus pés, com a Virgem sua mãe puríssima, sentada também e, toda de branco luminoso vestida, humana elevando-se acima deles, rodeados todos pelos apóstolos e os padres e fundadores religiosos da Igreja. Abaixo. à sua direita gozam já dos prazeres do paraíso, entre flores e frutos, santos desconhecidos, eleitos. E, mesmo à beirinha do abismo fechado junto a túmulo aberto que os separa dos outros, dos que se irão danar, santos já reconhecidos e venerados rezam contra a coacção que demónios exercem sobre cardeais,turcos,frades e freiras,senhores e campónios,que o diabo empurra para o inferno. Este ali está representado, em cenas de sofrimento infringido em cinco andares subterrâneos, aos quais, de foice em punho, preside a morte esquelética e feia... No seu A Morte e a Extrema Unção, H. Bosch pinta-nos um moribundo no seu leito de morte, assistido por rezas familiares e sacramentos administrados. Ao centro da cabeceira da cama, a morte espreita, com o seu dardo já apontado. Mas logo à esquerda do transeunte final, um monstro demoníaco o aguarda. Ao lado deste, um anjo de asas brancas (em tendo-as,voava ao céu...), espera-o. É a misericórdia de Deus, e talvez ganhe. Mas tu sabes bem, Princesa de mim, talvez melhor do que ninguém, como penso que é humilde o amor. Como o perdão. Perdoar, aliás, quer dizer que nos convertemos quando nos damos. Assim Deus se fez homem. Dou-te a mão, pensando no Fantôme Espagnol dos Bob et Bobette... A morte também se representa por divertidos fantasmas que nos ensinam que o purgatório, no cenário deste ou de outro mundo, é sempre e só o esforço gostoso de tentar amor maior.
Camilo Maria