SEMANA DA PAIXÃO
Minha Princesa de mim:
Cá estou eu, em vésperas de Semana da Paixão, hoje por aí mais conhecida por Semana Santa, de janelas abertas sobre o espreguiçar dos campos em tarde de primavera acinzentada e morna, à escuta, neste retiro, da Johannes Passion do Bach, na magnífica versão do John Eliot Gardiner, com o Monteverdi Choir e os English Baroque Soloists. Sempre gostei mais desta do que da segundo São Mateus. Para mim, como sabes, o evangelho de S.João é sempre mais inspirador do que qualquer dos sinópticos. Talvez o mesmo tenha acontecido a Bach, que também não terá resistido totalmente ao encanto do libreto de Bartoldus Henricus Brockes, cuja Paixão encontrou vários compositores, incluindo Georg Philipp Telemann, enorme na música e na amizade aos Bach... Esse libreto intitulava-se Der für die Sunde der Welt leidende und sterbende Jesus: pelo pecado do mundo sofreu e morreu Jesus. As paixões de Bach já são Paixão-oratórios, sofrem influências teatrais, operáticas, mas foram compostas para serviços litúrgicos. As várias outras com libreto de Brockes são já só oratórios da Paixão, consagram a representação,em salas de concerto ou teatro, do drama histórico da Paixão de Jesus Cristo.... Por próximos que sejam os estilos e técnicas de composição, certo é que a evolução da piedosa devoção - e do culto litúrgico - da Paixão, a foi tornando, cada vez mais, um drama mais antropológico e menos teológico. (Num à parte, ocorre-me um provérbio português, que muitas vezes ouvi ao nosso Alberto: Deus escreve direito por linhas tortas... E esse grande escritor universal que foi S.João Evangelista, di-lo tão bem, ao situar o conselho de Caifás para que Jesus fosse condenado e morto, a bem da nação: Não disse isto por si próprio; mas, porque era sumo sacerdote nesse ano, profetizou que Jesus havia de morrer pela nação; e não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus que andavam dispersos... Os engrossados são meus e sublinham a força do desígnio de Deus, até o mal por bem -- e, quiçá, muitas vezes afirmamos enganados -- isso a que o nosso lusitano Alberto chamava fado). Aliás, também a escultura e pintura europeias, ocidentais, cedo se foram emancipando das regras do hieratismo das representações e composições do império bizantino, para irem dando mais lugar e expressão ao sofrimento humano do Deus incarnado, como à dor e à alegria dos seus próximos e fiéis. Ainda na Idade Média, a Igreja foi consentindo na representação de autos ou actos teatrais de cenas e mistérios das escrituras e da fé religiosa, até no recinto de catedrais. Creio que é sobretudo a partir do sec.XIII que a celebração da Paixão de Jesus Cristo é "dramatizada" na própria liturgia: da simples leitura narrativa dos evangelhos passa-se para a reconstituição declamada dos acontecimentos, através da voz de um narrador (o evangelista), do sacerdote oficiante (Jesus Cristo) e dos fiéis presentes, quer em conjunto,quer por coros, quer por uma voz solo (a turba, Pilatos, Caifás, e os demais intervenientes). Pelo século XV, com o desenvolvimento da polifonia, se começa a musicar essa proclamação, e no sec.XVI já se conhecem três formas musicais do seu uso litúrgico: uma responsorial, uma em moteto e o princípio do oratório. Este, ainda que nascido em Itália, vai sobretudo desenvolver-se na liturgia da reforma protestante (luterana) alemã, até atingir, de meados do sec.XVII a meados do XVIII, numerosas produções. O recurso aos textos evangélicos e a outros, litúrgicos, em forma declamada, em recitativo e em árias cantadas, para além da beleza emocional, procura comover a assembleia dos fiéis, apresentando-se assim a Paixão,não só na perspectiva teológica de resgate do pecado e salvação dos homens, mas na compaixão da humanidade sofredora de Cristo. O próprio mistério teológico é sentimentalizado, humanizado... Traduzo-te, do libreto de Brockes, trechos que se seguem à palavra final de Cristo na cruz: Consummatum est, ou, em alemão, Es ist vollbracht. ( Não te esqueças de que, na Alemanha luterana, os textos bíblicos e litúrgicos já nessa altura se diziam em vernáculo).
Trio (três almas crentes):
Ó palavra fulminante, ó terrível grito!
Som que a morte e o inferno temem ouvir
porque torna irrisório o seu poder!
Rasgos de voz que racham pedras e rochedos,
põem o diabo a uivar e a tremer
e fazem explodir o abismo sombrio!
Ária (uma alma crente):
Ó santa palavra, ó grito salvífico!
Jamais terás, pecador, que temer
o poder do diabo e do inferno!
Ó som que nos curas as feridas
e nos concedes a bem-aventurança
que Deus há muito nos destinava!
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Duo (Filha de Sião):
Serão as chagas profundas da minha alma
ligadas pelas tuas chagas?
Herdarei eu agora, pelo teu sofrimento
e pela tua morte, o paraíso?
Estará próxima a salvação do mundo?
(uma alma crente):
Eis as perguntas da Filha de Sião.
Como Jesus não pode falar das suas dores,
deixa tombar a cabeça
e silenciosamente diz: sim!
Recitativo (Filha de Sião):
Ó generosidade! Ó coração digno de piedade!
Evangelista:
E rendeu o espírito.
E é cheio de dolorosa força o arrependimento de Pedro, após o terceiro canto do galo:
Que dor imensa
inteiramente me invade!
Um arrepio de gelo me corta a alma!
O braseiro feroz da sombria gruta das torturas
já me incendeia o coração!
O meu coração e a minha alma se consomem como carvões ardentes!
Quem destruirá esta ignomínia?
Como poderei eu salvar-me?
Na música de Telemann e na voz do tenor Donát Havár, com direcção de René Jacobs, a Welch ungeheurer Schmerz de S.Pedro soa-me como um De profundis: a compaixão transforma o sofrimento em esperança. Porque compaixão não é ter facilmente pena. É compatir, sofrer com. Não é ser espectador, é participar no drama. Partilhá-lo. E a música, anima-nos, põe as almas a cantar. E qualquer canto afugenta o demónio, que não gosta de harmonias. Dou-te a mão em sol maior.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira