A MISERICÓRDIA É IRMÃ GÉMEA DA ESPERANÇA…
Minha Princesa de mim:
Cá estou em Paris, em reuniões da OCDE. Jantei hoje com o nosso primo Hubert, sempre inteligente e interessante, com uma pontinha de génio apimentado a pôr muito encanto na conversa. Falámos muito, sobretudo ele... Vinha eufórico, ainda que um pouco contrito, de uma sessão na Academia: pretendia ter dado uma monumental lição - urbi et orbi, disse ele - num auditório magno e cheio de sumidades; mas, no entusiasmo do verbo explosivo, não se contivera em referências carregadas de ironia feroz a um trabalho que um colega seu apresentara de manhã. Lamentava agora tê-lo feito, sobretudo depois de ter reparado no semblante humilhado e triste da sua vítima, de quem não se despedira à saída. Felizmente, concluiu, faço amanhã a minha confissão semanal ao padre Balthazar, e tirarei este peso da consciência! Como sabes, somos parentes e grandes amigos, e o Hubert também é um homem bom e, fora dos achaques de vaidade extravasante, muito compassivo e sensível aos outros. Havias de ver a cara dele -- parecia uma criança apanhada a roubar chocolates -- quando lhe fiz o sermão que de seguida te conto: "Sabes como Jesus manda que, primeiro, nos reconciliemos com os outros, antes de ir rezar ou levar ao altar a nossa oferta. Pedir perdão a Deus faz-se pedindo-o aos que ofendemos, e perdoando aos que nos ofenderam. O que, em consciência cristã, tens de fazer é ir ter com o teu colega e, se possível em nova sessão da Academia, pedires-lhe publicamente desculpa... Aliás, nos chamados capítulos ou reuniões de governo comunitário e correcção fraterna regularmente celebradas pelas comunidades religiosas (fossem de cónegos das sés ou de monges ou frades das ordens ditas regulares), aplicando a chamada regra de Santo Agostinho, o reconhecimento de desvios ou faltas contra Deus, a norma comum ou irmãos, sempre se fez abertamente. A própria designação de confissão deriva do verbo latino confiteor que, sendo depoente, se diz, no particípio passado, confessus sum, isto é, reconheço, declaro,confesso. À letra, ser confessado é ter proclamado a sua fé e a sua adesão a uma norma e à comunidade que a transmite (à tradição). Não será assim confessor o que ouve, mas o que proclama. Há aí uma vocação à consciência de cada um, não para que murmure um segredo em condições sombrias, como as que dispunham os confessionários pós-tridentinos, a partir do sec.XVI, mas para que reconheça perante a comunidade e os seus membros, a sua falta ou infidelidade." Na Igreja primitiva, o sacramento da reconciliação era esse reconhecimento e esse perdão recíproco, na celebração da eucaristia, acção de graças comunitária, em comunhão fraterna e real com Cristo. Só para finais do primeiro milénio se começou a propagar a confissão individual, secreta e auricular, que, aliás, era feita a monges, ordenados ou não. Os primeiros difusores dessa prática foram monges russos, no oriente, e irlandeses, no ocidente. A obrigação dela data já do segundo milénio, do Concílio IV de Latrão, em 1215. Trabalhei, como sabes, nos cinco continentes. Fosse onde fosse, cumpri sempre o hábito de partilhar, com a frequência possível, uma refeição descontraída com os meus colaboradores. Como uma espécie de capítulo, em confissão livre e fraterna. No formalíssimo Japão, era um momento de oiro: até aos subordinados se perdoava dizerem o que pensavamsentiam do Chefe. E nunca me esquecerei do que certa vez me disse uma japonesa, a Takei-san: O sensei (eu) é católico e, para os católicos tudo se torna mais fácil: erram, podem fazer mal, mas vão confessar-se e o padre logo lhes perdoa tudo... É claro que, logo também, lhe retorqui que o importante - a condição sine qua non do perdão - era o arrependimento ou contriçaõ do faltoso... Ao que aquela shinto-budista contestou - e bem evangelicamente - que a responsabilidade do infractor não é descartável por segredo, mas pelo reconhecimento dela perante o ofendido e a assembleia. Desde então, muitas vezes me interroguei sobre a possível hipocrisia - até de cada um consigo mesmo - de práticas que, mutatis mutandis, psicanaliticamente seriam transferir a responsabilidade para o inconsciente... Nada deve nem se pode interpor entre a nossa consciência e Deus. Nem o alívio. Deus vê tudo, é justo e misericordioso. Mas o modo de o entendermos forma-se no tempo. O tempo e o modo de cada momento de nós, no decurso desta vida, o tempo e o modo da nossa circunstância, da cultura em que vivemos. Podemos hoje entender melhor como os romanos perceberam os cristãos enquanto seita: a mensagem cristã era, definitivamente, fracturante, porque César não queria, não quis, nunca quererá, apenas o que é de César: necessariamente ambicionará sempre o que é de Deus. Comunidade minoritária de fé, rebento definitivamente profético de Israel, do povo de Deus na história, os cristãos primitivos, no império romano, eram motivados pela necessidade de conversão ao que só a Deus pertence: a alma que se despoja do mundo, a pessoa que se lava do pecado, pelo baptismo. Este é, assim, um rito iniciático também: o que é baptizado separa-se de outros mundos, a confissão da sua fé é sustentada na e pela comunidade dos crentes. A libertação do pecado não é só uma conversão ou profissão individual, é a íntima adesão a uma comunhão dos santos. Assim, ser pecador será sempre romper com a comunidade dos crentes, sobretudo quando sentida numa circunstância adversa e persecutória. A partir do sec.V, após a queda do império romano -- entretanto já constantiniano e cristão -- a festa da Páscoa, da Ressurreição de Cristo, será o momento anual da penitência e reconciliação dos trânsfugas, da absolvição pública dos pecadores.. Mas tal graça acabará por ser disponível apenas uma vez na vida, pelo que muitos se candidatarão a ela in articulo mortis, até porque as penitências impostas eram pesadíssimas. Será portanto benvindo o alívio penitencial que, a partir dos secs.VII/VIII, começou a ser proposto pelos monges: não só se poderia sempre repetir o perdão das faltas, como ainda se tornariam mais leves as penas, sobretudo após a divulgação de uns livros chamados penitenciais, que foram minimizando os arbítrios justiceiros de túnicas ou togas mais castigadoras... Séculos mais tarde, mesmo penitências de anos de jejum ou de abstinência de relações sexuais, foram desaparecendo, em benefício de peregrinações a lugares santos. Muitas e muitas vezes pensei como é tão ténue e tão difícil a distinção entre uma pena imposta como castigo e outra -- mesmo que materialmente idêntica -- como apelo à conversão, isto é, ao esforço de nos melhorarmos. Voltei a olhar, ontem ou anteontem, de visita à Maison de Victor Hugo, para o Ecce, esse desenho a tinta da China e guache branco, em que o autor de Les Misérables representa Tapner, um criminoso de Guernesey, enforcado por sentença judicial. O título que o mesmo Hugo - militante abolicionista - dá ao seu desenho é uma referência à Paixão de Cristo: a pena de morte é contra o próprio Deus, único Senhor da vida e do juízo final. Noventa anos mais tarde, em 1944, Georges Rouault pinta, inspirado no Ecce, o seu Homo homini lupus, que vemos hoje no Centre Pompidou. O artista católico que nos legou a série Miserere, dolorosa e compassivamente pintada durante a Primeira Grande Guerra - um grito de profundis em que o sofrimento imposto aos homens se identifica com a Paixão de Cristo - insiste agora em recordar-nos que só a Deus pertence o direito de julgar... E já que, pela infelicidade das nossas culpas, é necessário administrar a justiça humana para que males maiores não advenham, esteja sempre presente no espírito de quem tiver de proferir sentença que o poder que usa e para tal lhe foi confiado não lhe pertence. Sinta o miserere como súplica do próprio Deus que diz preferir a misericórdia ao sacrifício. E tenha mais alegria na conversão de quem falhou ou faltou do que no exercício cego, ou simplesmente rigoroso da autoridade que lhe foi delegada. A misericórdia é irmã gémea da esperança. Dou-te a mão, Princesa.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira