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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UBI CARITAS, IBI EST DEUS…

 

Minha Princesa de mim:

 

Dei hoje um salto ao museu Guimet: é dos tais, aqui em Paris, que vou visitando quando por cá passo. Esta tarde  -  estaria menos virado para o Japão e o Sudeste Asiático  -  detive-me a contemplar um belíssimo baixo-relevo, em xisto, exemplar da arte de Gandara ( região vizinha da atual Peshawar, no Paquistão, situada entre este país, a Índia e o Afganistão), representando a prédica do Buda Dipankara. A arte gândara dos séculos I a V da nossa era é evidentemente um produto misto de tradições imaginárias e estéticas de raiz hindu, persa e helenística. Nesta magnífica escultura, o brâmane Sumeda, prostra-se no caminho de Dipankara, e sob os passos deste estende a cabeleira farta, para que o primeiro antecessor de Gautama não suje os pés. Assim conta o Budavamsa, lenda da Linhagem dos Buda, como Sumeda, contemporâneo de Dipankara, por tal humildade e tanta fé, será ali logo anunciado como Meteia ou Matreia, o Buda dos tempos futuros. Sumeda  será então Gautama, a raiz da linhagem de Sidarta (que será o Buda por excelência), cujos pais eram o rei Sudodana e sua mulher Maia. Esta rainha que, estéril, praticava a continência com seu marido, verá, em sonhos, um elefante branco penetrar-lhe o lado direito do ventre, e , a caminho de uma visita a parentes seus, sentirá, mantendo-se de pé debaixo de uma árvore, o seu flanco direito a abrir-se e dele nascer um menino que não a magoa nem fere. Livramento tão imaculado como a concepção sem intervenção de homem. E logo, rebentando do solo, surgem lótus que o recém nascido pisará sem medo, primeiro para norte e, depois, nas outras direcções cardeais... Diz-nos o Lalitavistara, narrativa da vida do Buda  -   do sec. I antes de Cristo  -  que assim o faz, qual leão sem medo nem terror, para proclamar ao mundo que vencerá a doença e a morte... Alerta-me uma dessas profecias que intituitivamente me assaltam que, daqui por uns anos, talvez em 2013, um linguista californiano, professor universitário chamado Michael Witzel publicará pela Oxford University Press, um trabalho de investigação sobre The Origin´s of the World´s Mythologies. Progredindo, por um regresso no tempo, no conhecimento das línguas humanas, de modo a desenhar-lhes os ramos até ao tronco, vai chegando a fotos de família de várias lendas e narrativas que povoam o nosso imaginário. Comuns a todos são angústias, anseios e interrogações. Várias se foram, do mesmo impulso, desabrochando as respostas: muito embora o Bodisatva incarnado em Sidarta tenha descido do céu dos deuses Tusita, para a sua última vida humana, a fim de revelar a via de uma libertação a todos acessível, esta será imanente, resultará de uma meditação purificadora do desejo terrenal de cada um.   Pelo menos assim entendi eu aquela história... Mas quando deparei com a cena de Sumeda oferecendo os cabelos ao pisar de Dipankara, o que me ocorreu logo foi a Madalena enxugando os pés de Cristo... Tal como a pintou Alessandro Bonvicino ou Moretto da Brescia  -  e nesta cidade está, na igreja de Santa Maria Calchera, a sua Ceia em casa do fariseu (1540): fecho os olhos e, aqui em Paris, diante do baixo relevo gândara reconheçoa posição de Madalena ajoelhada aos pés de Cristo. As próprias dobras da sua saia, são, quase mil anos depois, uma "cópia" do Sumeda que hoje vi aos pés de Dipankara. Todos teremos recebido, na herança dos nossos antepassados, lendas e narrativas tão semelhantes que reflectem uma origem comum, e até do mesmo modo sentiremos ou representaremos  --  sem qualquer contacto próximo  -  gestos de humildade e fraternidade, ou de orgulho e ódio: desde o antiquíssimo de nós que temos a mesma condição. Mas esta é também uma árvore enraízada na terra de que somos feitos, de cujo tronco surgiram ramos diversos e rebentos novos, flores de muitos cheiros, frutos diferentemente saborosos. A todos nos rega a mesma graça e nos alimenta a mesma seiva. E a nenhum de nós é permitido cortar ou secar outro ramo, nem qualquer rebento. Manda a minha fé que creia  -  como os que plantam ciprestes nos cemitérios  -  que a vida humana e a nossa árvore comum é como essa árvore que, depois de alargar-se em copa larga, se reúne no topo, sem nada de si esquecer, como seta apontada ao céu. Muitas vezes te disse, minha Princesa de mim  -  e em charlas e palestras e escritos  -  como pensossinto a necessidade íntima de fidelidade à comunidade a que pertenço, à cultura em que vivo, à religião que professo. Mas a fidelidade não é inerte: é sempre um esforço de atenção aos outros e aos sinais dos tempos. Como ramo de árvore que se revigora para dar mais flor e fruto e não morrer antes de chegada a hora. Como é, também, o cuidado no respeito dos outros, porque surgiram do mesmo tronco e são parte do nosso corpo. Quando alguém perguntou ao Dalai Lama se Buda corresponderia ao Absolutamente Outro, à pessoa de Deus, com que as religiões monoteístas se relacionam, ele respondeu: Não. Para nós, o Buda não é o absolutamente outro. Mas se definirmos Deus como refúgio, como o Despertador, o Buda corresponde à vossa noção de Deus... Certas pessoas podem guardar a sua fé de origem e adoptar técnicas ou prácticas de outra religião. Penso que isso é positivo. Mas outras pessoas desejam mudar de religião. É esse o fenómeno mais perigoso. Essas pessoas devem reflectir muito, e muito longamente. Porque não é natural cortarmo-nos das nossas raízes. Os que o fazem muito depressa, será , em regra e geralmente, por amargura e despeito da sua anterior religião. Tornam-se então críticos da sua religião de origem. E isso é muito grave, porque assim se destrói o próprio espírito da religião, que é feito de tolerância, de sabedoria, de amor... Sei  bem que nem todos os budistas pensam assim. Mas gostaria que nós, católicos, tivéssemos a fé necessária ao entendimento das diferenças, na medida do nosso desconhecimento dos caminhos de Deus; a esperança de que, sendo fiéis à nossa fé, veremos um dia Quem é tudo em todos; e o amor, sobretudo porque não se exalta e é paciente, paciente como o longo caminho da revelação de Deus na história dos homens... Como talvez tu comigo. Dou-te a mão.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira