Paul Bowles: podemos embelezar as feridas?
Paul Bowles nasce em NY e vem a falecer em 1999 em Tanger onde vivia desde 1947 , local onde escutaria Mozart durante um ano inteiro. A sua casa cedo passou a ser um acolher da geração beat, os novos boémios hedonistas que celebravam a não conformidade. A “Beat generation”, fez parte do grande movimento de “contracultura”, no qual os Beatles acrescentaram força e germinaram novos princípios de livre criatividade e generosa interpretação de uma solta sexualidade.
Tenesse Williams, Truman Capote entre outros, faziam da estada na casa de Marrocos de Bowles, uma viagem a viver e a partilhar como oração a uma liberdade em profunda mudança num especialíssimo caminhar pela estrada, na qual se encontraria gelo, deus e cada qual e todos: os sailboats moving.
Paul era também compositor, para além de poeta e escritor de viagens, e quando li o seu livro “ O Céu que nos protege”( The Sheltering Sky), obra adaptada por Bertolucci ao cinema com o título “Um chá no deserto”, senti o quanto a mensagem forte era, a de que é necessário, fazer o que é preciso. Sempre. E neste fazer o que é preciso, cabe o fazer de nós actores e espectadores da vida, e, conhecer de nós, a nossa ausência nela.
John Malkovich (Port) e Debra Winger(Kit), nos finais dos anos 40 chegam ao Norte de África com o comum amigo George. Surge-me neste filme, um modo de estar de Port e Kit nas suas deslocações, como viajantes e não como turistas, interpretando sons, cores e cheiros e luz, e agora numa exótica e mística atmosfera do deserto. Port e Kit viviam juntos, mas cheios de incertezas na sua relação. Kit procura-se perdidamente, e Port numa viagem muito própria e enroscada num campo aberto ao discernir, vem a adoecer e morre, confessando a Kit que afinal vivera para ela, como quem confirma da vida que dela fez um amor nómada e leal à infidelidade consentida.
A solidão do Saara, afinal, propõe-se esclarecer o casal que sempre buscou algo mais, viajando. Enfim, de modo estrangeiro e próximo, segredam-lhes as dunas tudo o que a vontade quer sob o garrote do sol.
Pela densa filosofia do livro «The Sheltering Sky», vai-se mais fundo no modo de conhecer este casal que, para se recuperar em paixão, defronta-se com o desespero isolado da morte que tudo mudará para sempre.
«Quantas vezes mais contemplarás a lua cheia a erguer-se? Talvez vinte. E, no entanto, tudo parece ilimitado».
«A morte vem sempre a caminho mas o facto de não sabermos quando chegará parece afastar a natureza finita da vida. É essa terrível precisão que odiamos tanto. Mas, como não a sabemos no seu inteiro significado, pensamos que a vida é um poço inesgotável.»
No poema de Bowles
Tudo é demasiado tarde
Não somos dignos uns dos outros.
(…)Deixa-me fazer-te compreender
(…)Deixa de lutar contra a verdade
SIDI AMAR NO INVERNO
Penso que nunca vi o teu rosto
(…)A água corre. Nunca te vi chorar.
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
«Canção de amor»
Os lábios estão onde está o sangue
Os olhos são o que os dedos prendem
Sabendo agora o que podia ter sido
Dirão os lábios o que os olhos viram?
E temos vontade súbita de dizer
Leva-me.
Somos breves neste mundo e como tudo o que julgamos garantido tem um prazo limitado!
E redigo: talvez o idoso sentado à mesa do café às portas do deserto, nos aguardará sempre, para nos confirmar em silêncio, uma partida e uma chegada; deambulação e perda. Encontro, afinal contido, mas em que houve um tempo.
It is the only way out.
Em 2007 o CCB em Lisboa executou várias obras musicais de Paul Bowles. Dedicou a Paul Bowles, uma larga reflexão. Fui relendo blessed be god and I, blessed be all his angels and all my thoughts, we have ice god and I.
A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa celebrou profundamente o centenário de Paul Bowles estendendo-se o evento à Cinemateca e ao Museu Oriente.
Foi-me aos poucos ressurgindo “Um chá no deserto” nas memórias também de nómada. E talvez tenha conseguido ver com claridade o céu da noite mudo de tanto milagre.
E Deus!, do deserto de sal, de estepe ou de areia, eu vi, que de todos, a noite cai, pétala a pétala, aproximando-se da terra.
E sim, sim fui com ela até ser manhã.
Poderemos embelezar as feridas?, ou secá-las como missão de um sol?
À janela o tigre ri.
Responde-nos, Paul Bowles.
Teresa Vieira
Obs. Saúdo a chancela Assírio & Alvim e a tradução de José Agostinho Baptista, ed. 2008.