HÁ TANTA DOÇURA NO AR, NO VENTO...
Minha Princesa de mim:
Consolo-me, em solitário serão, a ouvir as Années de Pélerinage de Ferenc Liszt. Repito a escuta do ano segundo: Italie, procuro infantilmente cantar para mim, na música de Liszt tocada pelo Barenboim, a letra dos três sonetos de Petrarca que teriam inspirado o compositor: o 47 (Benedetto sia ´l giorno...) e o 104 (Pace non trovo...) - que já traduzi para ti em carta antiga - e ainda o 123 (I vidi in terra angelici costumi...) - que não te enviei ainda. Na realidade, Liszt começou por compor canções para os poemas de Petrarca, em 1838/39), que logo transcreveu para piano, incluindo depois essas transcrições nas Années, cuja publicação data de 1858. Confesso que não conheço as partituras das canções (que aliás tiveram duas versões, uma para tenor alto, outra para barítono), nem nunca as ouvi . Como toda a gente leiga, só tenho escutado as peças para piano solo. Por isso, me diverti, como menino que teve de passar o recreio sozinho, a trautear a letra dos sonetos, acompanhado ao piano por Daniel Barenboim (em disco, claro). Mas logo me refugio na poesia só, e me tento a traduzir - quiçá por me encontrar no modo em que estou - aquele soneto que começa assim: La vita fugge, et non s´arresta una hora...
Foge-me a vida,não pára uma hora,
Segue-me a morte em grandes jornadas,
E as coisas presentes como as passadas
Me dão guerra, e as futuras, agora;
É lembrar e esperar que me devora,
Ora e então, até que, na verdade,
Se de mim não tivesse piedade,
De tanta cisma ficaria fora.
P´rá frente volto, se qualquer doçura
Vier ao triste coração; pelo lado,
Ventos me turvam a navegação;
Tenho o fado no porto, e amargura.
Barco sem cordas , de mastro quebrado,
Sem luz dos teus olhos, sem salvação.
É assaz livre esta versão. Ou talvez não. Quando me identifico, isto é, me pensossinto em terceiro texto, sempre me tenta recriá-lo, como quem digere. Se o recrio na sua língua original, faço-o fechado no quarto, às escondidas, engulo e guardo, não mostro seja a quem for. Mas se o traduzir, aí já dou largas às minhas liberdades... Olha: já que o prometi, ensaio agora mesmo uma versão do 123:
Na terra vi angélicas aparições
E celestiais belezas neste chão.
Tais lembranças dor e alegria dão:
Vejo só sonhos, sombras, ilusões.
E vi chorar esses dois olhos lindos
Cujo lume até faz inveja ao sol,
Ouvi palavras, em suspiro mole,
Mover montes,parar rios infindos...
Amor,senso,pena e agonia
Juntos choravam mais doce concerto
Do que outro que o mundo ouvir soía
Fica o céu à harmonia tão aberto
Que em nenhum ramo folha se movia
Na doçura de além aqui tão perto...
No Petrarca, o último verso reza tanta dolcezza avea pien l´aere e ´l vento... Abri a janela da minha quase triste melancolia a esse sopro de brisa celeste. Dou-te a mão
Camilo Maria