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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SAUDANDO EM CINZENTO DIA A PRIMAVERA…

 

      Zéfiro, volta e traz-nos brisa amena,

      Tua família de verdura e flores!

      Ria-se Eros, e chore Filomena,

      A Primavera é vermelha de amores!

      

      Riam os prados sob o céu sereno:

      Pois Júpiter se  alegra em sua filha !

      E, na água,terra e ar, o amor é pleno

      E, nele, ser-se vivo é maravilha!

 

      Mas  em mim, já tão lasso, se somaram,

      Mágoas,marcas no coração profundo:

      As graças que amor me levou deixaram

 

      O canto das aves,as flores do prado,

      As muito honestas donas,todo o mundo,

      Como deserto fero e desolado...    

 

É de Petrarca o soneto que esta noite traduzo: Zephiro torna, e´l bel tempo rimena...Saí para o campo esta manhã, estive em festa de família, bodas de ouro celebradas em casa, com padre, missa, filhos, netos, amigos, criados e metecos... Começou a celebração ao meio-dia, despedi-me  --  cansado, divertido, comovido e grato aos noivos  -  às 7h30 da tarde!!! Anoitecera. Vim para esta toca de muitas janelas sobre campos verdes que, à noite, são só silêncio e sombra, já que, como diria Álvaro de Campos, ela os fundiu num campo único, e tão só seu. Não trouxe comigo o texto italo-toscano original, cuja tradução já ontem iniciara, bem longe daqui. Soube-me bem recordá-lo, não para ser obediente à letra, mas por ser fiel  -  pensossinto  -  à ideia. Mas nada garanto: nem quanto terei transformado o poema, nem, muito menos, quanto me terei transformado com ele. Mas asseguro que desconheço, no que fiz, qualquer valor ou mérito. Apenas me moveu o gosto meu em encontrar-me num texto distante na circunstância e no tempo, e escrito em língua diferente da minha. Em novo dia te saúdo, Princesa de mim! Acordei com o clarear da aurora e o chilrear dos pássaros a acolher o sol. Melhor diria: a cantar a luz! Na verdade, penseissenti que os pássaros devem temer a noite e ter horror ao escuro, e por isso são contentes a saudar o dia... Deus nos dê hoje também a alegria da sua luz! Mas teremos, nós também, de algo fazer por ela: não temos a simplicidade confiante dos passarinhos. Subitamente, silenciaram-se os campos. Em acção de graças. Mas pouco depois, o silêncio reinante foi rompido pelo canto rebolado das rolas. Há muitas por aqui, e estas nunca mais se calavam. Porque cantarão as rolas? Ocorreu-me a melopeia com que os remadores se animam, ou as mulheres, na labuta do campo... E, pela monotonia enrolada, como coragem que se retoma e se quer guardar, o cantar das rolas lembrou-me uma canção da Beira Baixa, em Portugal, que as mulheres entoavam ao ritmo do rodízio de rega que moviam com o seu pisar: era ainda pequenina... Ouvi-a pela primeira vez ao nosso Alberto, que a aprendera com o Edmundo Bettencourt e a cantava, ao jeito dos estudantes de Coimbra, em tom muito alto e tempo acelerado. Foi o mesmo Alberto que, mais tarde, me apresentou um italiano, Michele Giacometti, salvo erro, que gravara a canção completa, na voz ainda de uma camponesa beirã, que ele também filmara, descalça e de lenço negro na cabeça, a fazer  -   com tamanha nobreza!  -    girar o rodízio:

     Era ainda pequenina, era ainda pequenina,

     acabada de nascer.

     Inda mal abria os olhos, inda mal abria os olhos.

     já era para te ver!

     Quando um dia eu for velhinha, quando um dia eu for velhinha,

     acabada de morrer,

     olha bem para os meus olhos, olha bem para os meus olhos:

     sem vida inda sei te ver!

Soaram já as nove, os campos desertos de gente respiram, envoltos numa luz dourada e difusa, que o sol erguido vai filtrando pelo céu cinzento. E neste silencioso mistério do ar, da terra e dos astros, nasce-nos na alma a secreta alegria de Deus. E, parafraseando Francisco de Assis, até já lhe chamo meu irmão Deus! E que assim, em todos os dias, alegres acolhamos a Primavera! Dou-te a mão, uma mão cheia de flores.

 

          Camilo Maria

   

       
Camilo Martins de Oliveira